Ao abordar os crimes sexuais contra vulneráveis, conforme os artigos 217 a 218-C do Código Penal, é imprescindível o entendimento de que, além da sensibilidade natural que os crimes sexuais exigem tanto da defesa quanto da acusação, os atos praticados contra crianças demandam uma postura ainda mais criteriosa por parte dos profissionais envolvidos.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, consagra a proteção integral da criança e do adolescente como um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, princípio este que foi subsequentemente ratificado pela Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), além de outras legislações que visam resguardar a integridade do menor em todos os âmbitos de sua vida.
Neste contexto, à luz do conceito de “revitimização”, conforme abordado pela Vitimologia[1] — ramo da criminologia dedicado ao estudo da vítima, de sua personalidade e estatuto psicossocial, e dos efeitos psicológicos resultantes do crime — foi instituído pela Lei nº 13.431/2017 o Depoimento Especial. Essa legislação visa garantir parâmetros claros e objetivos para a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes em casos de crimes sexuais, com especial atenção para a preservação do bem-estar psicológico da vítima.
A Lei do Depoimento Especial pode ser vista como parte do “microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas”, que inclui a Lei nº 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer), a Lei 14.321/2022 (tipifica o crime de violência institucional), a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a recente Lei 14.344/22 (Lei Henry Borel), as quais consolidam mecanismos de adaptação do ordenamento jurídico brasileiro às necessidades da vítima, tratada a partir disso não apenas como um meio de prova para o Estado, mas como sujeito processual ativo com direitos próprios.
Como amplamente reconhecido, o depoimento pessoal da vítima em crimes sexuais possui elevado valor probante, sendo diferenciado em relação aos laudos periciais e depoimentos testemunhais. No entanto, justamente por reconhecer a necessidade de ouvir a vítima e o peso de suas palavras, é fundamental empregar técnicas especiais para a coleta desses depoimentos.
Ao tratarmos de crianças, surge um obstáculo ainda maior relacionado à formação de memórias e ao processo de verbalização da situação vivida, pois muitas vezes elas sequer entendem o que aconteceu. No contexto forense, frequentemente nos deparamos com um dos fenômenos mais prejudiciais à precisão da memória e, consequentemente, à confiabilidade da prova testemunhal infantil: a sugestionabilidade. Compreender os efeitos da sugestionabilidade em diferentes faixas etárias é crucial, pois esse fenômeno tem implicações práticas significativas no campo jurídico, especialmente no modo como os questionamentos são feitos e repetidos.
A distorção da memória é um fator crítico em casos legais, pois impacta diretamente a credibilidade dos testemunhos. Há uma vasta quantidade de pesquisas que corroboram a ideia de que entrevistas sugestivas podem levar a níveis mais elevados de falsas memórias, especialmente em crianças com menos de 5 anos de idade.
Nos crimes sexuais, devido à natureza intrínseca do delito, há uma escassez de evidências físicas, tornando os relatos das vítimas a principal fonte de prova. A vítima, portanto, torna-se uma peça-chave na investigação do crime. Dessa forma, é essencial tratar da questão da prova testemunhal, da oitiva da criança e dos efeitos que podem distorcer seu testemunho. A prova testemunhal infantil deve ser cuidadosamente analisada para confirmar ou refutar a existência de suporte factual ao delito sexual, sendo a credibilidade do relato da criança e a sua confrontação com as demais provas essenciais para fundamentar a decisão judicial.
No entanto, o depoimento infantil pode apresentar falhas psicológicas que comprometem a formação de um juízo de plena certeza sobre determinados fatos de relevância jurídico-penal. Tais falhas constituem uma ameaça à veracidade do testemunho infantil, razão pela qual, apenas em situações excepcionais, o depoimento de uma criança deve ser considerado como prova suficiente para a condenação penal.
Quando crianças são questionadas em contextos forenses ou chamadas a testemunhar em processos judiciais, frequentemente são convidadas a relatar incidentes extremamente angustiantes ou traumáticos que vivenciaram ou presenciaram. O ambiente formal e intimidante, aliado à falta de capacitação técnica de muitos profissionais envolvidos, pode transformar essa experiência em algo ainda mais traumático que o próprio ato vitimizador. Esse trauma reflete-se diretamente em seu testemunho, resultando, por vezes, na incapacidade da criança de relatar os fatos com precisão, ou levando-a a ajustar seu relato às expectativas dos questionadores, respondendo a perguntas sugestivas e intimidadoras.
Assim, é crucial reconhecer os benefícios do depoimento especial tanto para a vítima, que não precisa reviver constantemente a situação constrangedora e degradante ao repetir sua história, quanto para a defesa, que evita que a vítima crie falsas memórias ao repetir múltiplas vezes uma versão dos fatos, frequentemente conduzida pela acusação, sob uma ótica distorcida que a vítima, em si, não consegue diferenciar da realidade.
Mas, afinal, como é colhido o depoimento especial? É a mesma coisa da escuta especializada?
Ambos os institutos estão contidos na Lei 13.431/2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente- SGDCA. Todavia, a diferença consiste na finalidade do depoimento colhido e no local.
Quando tratamos da escuta especializada, ela se refere à entrevista sobre uma possível situação de violência contra criança ou adolescente, com o intuito de garantir a proteção e o cuidado da vítima. Pode ser realizada pelas instituições da rede de promoção e proteção, formada por profissionais da educação e da saúde, conselhos tutelares, serviços de assistência social, entre outros.
Em contrapartida, o depoimento especial é a oitiva da vítima, criança ou adolescente, perante a autoridade policial ou judiciária. Tem caráter investigativo, no sentido de apurar possíveis situações de violência sofridas. Todos os passos do procedimento estão descritos no artigo 12 da Lei 13.431/2017:
Vejamos:
Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento:
I – os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;
II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;
III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;
IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;
V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;
VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.
§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.
§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.
§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.
§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.
§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.
§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.
Dessa forma, o principal ponto do depoimento especial é a oitiva da vítima pelo profissional especializado, utilizando-se de técnicas adequadas para a oitiva mais objetiva possível, a fim de evitar possíveis distorções na narrativa e uma revitimização da criança ou adolescente.
Todavia, o texto legal não especifica qual técnica deve ser utilizada e nem qual profissional é entendido como especializado para realizar tal procedimento.
Em termos de profissional, o mais comum é que estejam presentes um assistente social ou psicólogo, pela proximidade com as questões a serem abordadas. Os agentes jurídicos indispensáveis à produção válida da prova muitas vezes não possuem capacidade técnica para a oitiva dessas crianças, especialmente quando se trata de abuso sexual, tampouco conhecimento sobre os diferentes estágios de desenvolvimento infantil, síndromes, além do ambiente formal da sala de audiências, que não são preparadas para o correto acolhimento dessa criança vítima.
Já em relação à técnica utilizada, não se segue um modelo único, mas são desenvolvidos diversos estudos no campo da Psicologia do Testemunho para adequar ao caso concreto as melhores estratégias. No que diz respeito à linguagem, recomenda-se o uso de voz ativa, palavras e frases simples, a evitação de duplos negativos e perguntas múltiplas, além de assegurar que a criança compreenda plenamente a pergunta feita.
O protocolo NICHD, por exemplo, utiliza técnicas semelhantes às da entrevista cognitiva. Contudo, em relação ao testemunho infantil, este protocolo se mostra mais adequado, pois emprega técnicas que facilitam o acesso à memória episódica, aumentando a quantidade de informações e detalhes obtidos durante a entrevista com as crianças.
O protocolo NICHD (National Institute of Child Health and Human Development) foi desenvolvido como um conjunto estruturado de diretrizes para conduzir entrevistas forenses com crianças vítimas ou testemunhas de crimes. Sua origem está atrelada ao trabalho de pesquisadores e psicólogos especializados na área de Psicologia do Testemunho, que buscavam uma maneira de minimizar a sugestibilidade infantil e maximizar a precisão e a confiabilidade dos depoimentos colhidos de crianças.
A utilidade do protocolo NICHD reside na sua capacidade de orientar os entrevistadores a conduzir a entrevista de maneira que seja respeitosa e apropriada para a idade da criança, ao mesmo tempo em que extrai informações detalhadas e factuais sobre os eventos vivenciados. O protocolo é baseado em técnicas que favorecem o acesso à memória episódica, encorajando a criança a relatar o que aconteceu em suas próprias palavras, sem interferências indevidas por parte do entrevistador.
O protocolo NICHD enfatiza o uso de perguntas abertas e do relato livre (por exemplo, “diga-me tudo o que aconteceu”, “diga-me tudo o que você pode sobre isso”, “diga-me mais”). Além do relato livre e das questões abertas, visando a não contaminação da memória da criança, o entrevistador somente faz referência a detalhes mencionados pelo infante, utilizando as mesmas palavras usadas. Perguntas sugestivas são fortemente desencorajadas na utilização do protocolo.
O Depoimento Especial, instituído pela Lei nº 13.431/2017, e anteriormente chamado de depoimento sem danos, é o procedimento de escuta realizada com o uso de técnicas não indutivas, através de intermediários (psicólogos ou assistentes sociais) que, em tese, teriam familiaridade em sua formação ou com treinamento específico, voltado aos aspectos cognitivos e sociais de crianças e adolescentes.
Nesse sentido, a criança tem consciência de que está sendo gravada e é livre para, de acordo com a condução do profissional, se abrir sobre a situação.
Corroborando com a determinação legal, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará normatizou, por meio do provimento 00015/2023, como deveria ser realizado a colheita de depoimento pessoal. No texto do provimento, ressalta que deve se preservar a ampla defesa e o contraditório sem, contudo, relativizar as garantias fundamentais do menor. Assim, a colheita do depoimento se dá por ocasião de Antecipação de Prova, mediante celebração de Acordo de Cooperação Técnica Institucional. Ainda, estabelece que é uma obrigatoriedade do Magistrado velar pela estrita observância do direito de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências a serem ouvidas.
Em sala adequada e com profissional devidamente capacitado pelo TJCE ou CNJ, a técnica aplicada nos processos de competência do Estado do Ceará utilização o PROTOCOLO BRASILEIRO DE ENTREVISTA FORENSE – PBEF, a ser realizado em dois estágios. Vejamos:
I – Estágio 1 – refere-se à construção do vínculo entre depoente e Entrevistador Forense, bem como, ao esclarecimento das regras e diretrizes para a condução da entrevista, sendo composto pelas seguintes fases:
a) Introdução;
b) Construção da empatia;
c) Regras básicas/Diretrizes;
d) Prática narrativa; e
e) Diálogos sobre a família.
II – Estágio 2 – refere-se à parte substantiva, momento em que ocorre o relato sobre a situação de violência, sendo composto das seguintes fases:
a) Transição;
b) Descrição narrativa;
c) Seguimento e detalhamento;
d) Interação com a sala de audiência ou sala de observação; e
e) Fechamento.
Ainda, considerando que o Magistrado deve estar em observância pelo direito da criança e do adolescente, caberá a ele determinar, mediante requisição do profissional capacitado, decidir pela presença do réu, dos pais da vítima ou de demais pessoas interessadas no processo.
Dessa maneira, a resolução determina que o procedimento inicial deve se dar somente com a intervenção do entrevistador forense, sem qualquer interrupção, e com perguntas baseadas unicamente no que a criança ou adolescente verbalizou, a fim de evitar sugestionabilidade. Fica vedado ao entrevistador também confrontar à vítima ou testemunha sobre qualquer contradição com versão anteriormente relatada em outro órgão do Sistema de Justiça ou Rede de Proteção, sob pena de causar prejuízo emocional, constrangimento e revitimização.
Assim, a instituição de colheita de depoimento especial vem como uma forma de garantir que, tanto em benefício da defesa quanto da acusação, sejam empregadas técnicas corretas da oitiva de crianças e adolescentes em clara situação de vulnerabilidade diante de crime sexual, sem a manipulação dos fatos.
Para a defesa, é muito importante ter discernimento do que é considerado relevante ao procedimento, a fim de evitar o constrangimento da vítima e reiterados indeferimentos de perguntas pelo Magistrado. Formular perguntas sem desqualificar o caráter da vítima, mas sim a coesão e coerência da sua narrativa dos fatos.
Em suma, o depoimento especial apenas trouxe mais uma variável para a oitiva de crianças e adolescentes a fim de tornar a sua fala o mais clara, objetiva e não manipulável possível dentro da persecução penal, garantindo a integridade pessoal da vítima e um julgamento sem subjetivismo da acusação para imputar uma culpa inexistente ao acusado inocente.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 21 ago. 2024.
Brasil. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 abr. 2017.
BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 nov. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14245.htm. Acesso em: 21 ago. 2024
Brasil. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Resolução nº 03/2019. Dispõe sobre a realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Fortaleza: TJCE, 2019.
BROWN, Deirdre A. et al. The NICHD investigative interview protocol: an analogue study. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 19, n. 4, p. 367, 2013, p. 370.
CONJUR. A questão de gênero no depoimento especial de adulto vítima de crime sexual. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-17/questao-genero-depoimento-especial-adulto-vitima-crime-sexual/. Acesso em: 21 ago. 2024.
EZAR, José Antônio Daltoé. A inquirição de crianças vítimas de abuso sexual em Juízo. In: DIAS, Maria Berenice. (coord.). Incesto e Alienação Parental: realidades que a justiça insiste em não ver. São Paulo: RT, 2010, p. 286.
MORENO DO AMARAL, Mariana; NORONHA DE ÁVILA, Gustavo. DEPOIMENTO ESPECIAL E VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL: UM OLHAR A PARTIR DA PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO. Revista Jurídica Cesumar: Mestrado, v. 22, n. 1, 2022.
[1] A criminologia, que inicialmente não tinha olhos para a figura da vítima, passou a estudar a pessoa sobre quem recai a conduta criminosa. Surgiu, assim, a vitimologia. Temos aqui uma considerável guinada. Essas pessoas que antes eram consideradas objeto ou meio de prova, passam a ser encaradas como sujeitos da persecução penal. São reconhecidas como pessoas dotadas de dignidade e que, como tal, merecem proteção e até mesmo acolhimento do sistema em um momento de extrema vulnerabilidade.
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