CASO BOATE KISS: ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO ESPECIAL Nº 2.062.459

Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, localizada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi cenário de uma das maiores tragédias da história recente do Brasil. Durante a festa universitária intitulada Agromerados, um artefato pirotécnico utilizado pela banda “Gurizada Fandangueira” causou um incêndio de grandes proporções. Em poucos minutos, o fogo consumiu a boate, resultando na morte de 242 pessoas e deixando mais de 600 feridos.

O caso gerou grande comoção pública e uma série de processos judiciais para apurar as responsabilidades dos envolvidos, incluindo os sócios da boate e integrantes da banda. Após anos de disputas jurídicas, o julgamento no Tribunal do Júri foi anulado por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), levando o Supremo Tribunal Federal (STF) a se pronunciar sobre o tema.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO CASO E DO PRIMEIRO JÚRI

O processo criminal contra Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann (sócios da Boate Kiss), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda) e Luciano Bonilha Leão (produtor musical) resultou na condenação dos réus em dezembro de 2021. O julgamento foi realizado pelo Tribunal do Júri, que estabeleceu penas variando entre 18 e 22 anos de reclusão para os acusados, com base na acusação de homicídio simples, em múltiplas instâncias (242 vezes consumado e 636 vezes tentado). No entanto, diversas nulidades processuais foram arguidas pelas defesas, culminando na anulação do julgamento pelo TJRS.

O TJRS identificou várias irregularidades, como a realização de sorteios suplementares de jurados, a falta de respeito aos prazos legais e a condução de uma reunião reservada entre o juiz e o Conselho de Sentença durante a sessão plenária, sem a presença da acusação e da defesa. Além disso, foi alegada a má formulação dos quesitos, violando o princípio da correlação entre denúncia, pronúncia e sentença.

2. AS PRINCIPAIS NULIDADES APONTADAS

A decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul baseou-se em três pontos principais para justificar a anulação do primeiro júri:

A) SORTEIOS DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO ART. 433, § 1º DO CPP: Os sorteios de jurados realizados de forma irregular, com prazos exíguos e fora dos limites estabelecidos pela lei, comprometeram o direito à ampla defesa. Foram realizados três sorteios (um principal e dois suplementares) que totalizaram 305 jurados, muito acima do limite legal de 25. A defesa argumentou que o número elevado de jurados, aliado ao tempo insuficiente para analisá-los, prejudicou o exercício do direito de recusa e a arguição de impedimentos e suspeições, configurando um prejuízo concreto para os réus.

B) REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS: Durante a sessão plenária, o juiz presidente do Tribunal do Júri interrompeu o julgamento para realizar uma reunião privada com os jurados, sem a presença das partes envolvidas, o que violou os princípios da transparência e do contraditório. O TJRS entendeu que esse ato, não previsto legalmente, constituiu uma nulidade absoluta, já que impediu as partes de impugnar o conteúdo da reunião, cujo teor permaneceu desconhecido.

C) FORMULAÇÃO DEFICIENTE DOS QUESITOS: A decisão também apontou nulidades nos quesitos formulados ao Conselho de Sentença. A formulação dos quesitos não respeitou o princípio da correlação, incluindo elementos que haviam sido excluídos na decisão de pronúncia anterior. Além disso, a linguagem utilizada nos quesitos era ambígua e dificultava a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, prejudicando os réus ao complicar a decisão dos jurados leigos.

3. JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL nº 2062459 PELO STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ao julgar os recursos apresentados após a decisão que anulou o primeiro júri do caso Boate Kiss. O STJ avaliou as nulidades apontadas pela defesa dos réus e pelo Ministério Público, que questionaram a decisão do TJRS. O tribunal superior reafirmou a anulação do julgamento com base em três principais fundamentos:

  1. NÚMERO EXACERBADO DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO PRAZO LEGAL

O STJ sustentou a nulidade referente ao número excessivo de jurados sorteados para compor o Conselho de Sentença, conforme alegado pela defesa e já reconhecido pelo TJRS. Embora o Ministério Público tenha argumentado que o aumento do número de jurados (de 25 para 305) foi justificado pelas circunstâncias da pandemia de COVID-19 e pela ausência de jurados, o STJ entendeu que as justificativas apresentadas não eram suficientes para ultrapassar o limite legal de 25 jurados.

Além disso, o tribunal destacou a falta de proporcionalidade entre o aumento no número de jurados e o tempo disponível para que a defesa realizasse a investigação necessária sobre os mesmos. Como resultado, o STJ concluiu que houve um efetivo prejuízo para a defesa, considerando a impossibilidade de conduzir uma investigação adequada dentro dos prazos reduzidos.

B)  REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS

O STJ também manteve o entendimento do TJRS quanto à nulidade da reunião reservada entre o juiz presidente do Tribunal do Júri e os jurados, realizada durante a sessão plenária, sem a presença do Ministério Público e das defesas. A defesa alegou que esse ato violou os princípios do contraditório e da transparência, resultando em uma nulidade absoluta.

O STJ concordou com essa interpretação, ressaltando que a falta de registro formal da reunião em ata, aliada ao fato de que as partes desconheciam o conteúdo do ato, configurou uma violação séria aos princípios constitucionais e processuais. O tribunal considerou que a gravação de som e imagem da sessão não foi suficiente para afastar a necessidade de um registro formal e a possibilidade de impugnação pelas partes.

C) UTILIZAÇÃO INADEQUADA DE PROVAS E INOVAÇÕES ACUSATÓRIAS

Outro ponto relevante analisado pelo STJ foi a utilização inadequada de provas e inovações acusatórias. A defesa alegou que o Ministério Público teria inovado ao introduzir novos elementos acusatórios em suas réplicas, sem que essas novas alegações fossem previstas ou previamente apresentadas durante o processo. Por exemplo, o uso de uma maquete digital em 3D pela acusação para ilustrar a dinâmica do incêndio foi questionado pela defesa, que argumentou que tal inovação poderia ter influenciado indevidamente a decisão dos jurados, uma vez que estes julgam segundo sua íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar seus votos.

O STJ aceitou esse argumento, reconhecendo que a introdução tardia de novas provas e argumentos pela acusação, sem oportunidade adequada de contraditório, poderia prejudicar a defesa, constituindo mais um motivo para anular o julgamento.

D) VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA CONGRUÊNCIA E HIERARQUIA DAS DECISÕES JUDICIAIS

O STJ também reconheceu a nulidade por violação do princípio da congruência e da hierarquia das decisões judiciais. A decisão do TJRS havia destacado que, durante o julgamento, houve inserção de imputações nos quesitos dirigidos aos jurados que não haviam sido admitidas na decisão de pronúncia, violando o princípio da correlação entre a denúncia e a pronúncia, além da hierarquia das decisões judiciais do Tribunal de Justiça.

O STJ concordou que essa falha constituía uma nulidade absoluta, capaz de gerar perplexidade nos jurados e comprometer a imparcialidade do julgamento, justificando assim a superação do óbice da preclusão.

4. DECISÃO DO STF E O RESTABELECIMENTO DO JULGAMENTO

O caso chegou ao STF por meio de recursos extraordinários interpostos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) e Réu Luciano Bonilha Leão, que apresentaram suas razões. O relator, Ministro Dias Toffoli, ao analisar o recurso, concluiu pela inexistência das nulidades apontadas, afastando os argumentos utilizados pelo TJRS e STJ.

a) Sorteios de Jurados: O STF considerou que não houve cerceamento da defesa relacionado ao sorteio de jurados. Argumentou-se que a irregularidade apontada se referia ao último sorteio realizado em 24/11/2021, do qual nenhum dos jurados sorteados compôs o Conselho de Sentença. Dessa forma, não se verificou qualquer prejuízo concreto para os réus, e a preclusão quanto a essa nulidade foi reconhecida, visto que a única insurgência apresentada se limitou a uma manifestação genérica do réu Elissandro em plenário, sem especificar qualquer ilegalidade.

b) Reunião Reservada entre Juiz e Jurados: Em relação à reunião reservada, o STF entendeu que não se configurou nulidade processual. Segundo o relator, a ausência de um registro formal em ata foi suprida pela gravação em vídeo da sessão, o que afastou a necessidade de uma impugnação formal pela defesa no momento da realização do ato.

c) Quesitação: Sobre a má formulação dos quesitos, a Corte Suprema considerou que as nulidades apontadas eram preclusas, pois não foram oportunamente apresentadas pelas defesas durante o julgamento. O STF reforçou que, conforme o artigo 571, VIII, do Código de Processo Penal, eventuais nulidades devem ser arguidas imediatamente, sob pena de preclusão.

4. Implicações da Decisão do STF

A decisão do STF, ao afastar as nulidades apontadas e restabelecer o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri, representa um marco importante para a jurisprudência brasileira sobre o funcionamento e as garantias processuais no Tribunal do Júri. Ao enfatizar a necessidade de demonstração de prejuízo concreto para a anulação de um julgamento, o STF reforça a importância de um equilíbrio entre a garantia dos direitos constitucionais dos réus e a manutenção da soberania dos veredictos do júri.

O entendimento do STF também evidencia a relevância de se observar rigorosamente os procedimentos legais no âmbito do Tribunal do Júri, particularmente em casos de grande repercussão social e complexidade, como o da Boate Kiss. A decisão do STF destacou o papel do Tribunal do Júri como guardião dos direitos fundamentais e do devido processo legal, enquanto reafirmou a necessidade de transparência e observância dos princípios acusatórios.

5. Considerações Finais

A decisão do STF no Recurso Extraordinário 1.486.671/RS é emblemática por diversos motivos. Primeiramente, ela reafirma a soberania do júri e a necessidade de respeito às formalidades processuais no contexto do Tribunal do Júri. Em segundo lugar, ela reforça a ideia de que as nulidades processuais só podem ser reconhecidas quando houver demonstração de prejuízo concreto à defesa, o que, mesmo com tamanha comprovação, o ministro relator insiste em, numa tentativa de dar uma resposta social, flexibilizar as garantias penais e constitucionais vigentes.

Importante destacar que, ainda que o ministro relator tenha determinado a prisão preventiva dos acusados e dado parcial provimento ao recurso da acusação, isso não significa que o processo acabou. É necessário observar o cabimento de agravo à decisão, a fim de requisitar uma análise colegiada do caso, principalmente tendo em vista a complexidade do caso e a necessidade de se analisar cada mínimo detalhe.

Além disso, como se pode perceber, os recursos interpostos até o presente momento tão somente abordaram questões preliminares de nulidade, não adentrando no mérito da questão, o que deve ser avaliado em julgamento de apelação. Assim, com a remessa dos autos ao TJRS após o indeferimento do pleito defensivo no STF, ainda haverá a possibilidade de análise do mérito tanto pelo TJRS, quando pelos Tribunais Superiores, garantindo, pelo menos, o duplo grau de jurisdição.

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