ASSISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO NO TRIBUNAL DO JÚRI: O DIREITO DA VÍTIMA À JUSTIÇA

A atuação da defesa no Tribunal do Júri é amplamente debatida, mas muitos desconhecem um direito fundamental da vítima e de seus familiares: o direito de atuar como assistente de acusação. Esse instituto permite que a vítima, ou seus representantes legais, contrate um advogado para fortalecer a acusação ao lado do Ministério Público, garantindo assim que seus interesses sejam devidamente representados no julgamento.

Se você conhece uma vítima de crime doloroso contra a vida e deseja entender como buscar justiça de forma mais ativa, este artigo é para você.

O QUE É ASSISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO?

A assistência de acusação está prevista no art. 268 do Código de Processo Penal (CPP) e permite que o ofendido ou seus familiares participem do processo penal ao lado do Ministério Público. No Tribunal do Júri, onde são julgados os crimes dolosos contra a vida, essa atuação pode ser decisiva para garantir que todas as provas sejam devidamente apresentadas e que os jurados compreendam a gravidade do caso.

A assistência de acusação é uma forma de intervenção processual que permite ao ofendido (vítima ou seus familiares) participar ativamente do processo penal, especialmente em crimes dolosos contra a vida, como homicídios e tentativas de homicídio, que são julgados pelo Tribunal do Júri. Sua importância reside no fato de que, além de auxiliar o Ministério Público na acusação, o assistente de acusação tem como foco principal defender os interesses da vítima

Muitas vezes, o Ministério Público, apesar de sua competência na condução da acusação, pode lidar com diversas demandas simultâneas. A presença de um assistente de acusação possibilita uma atuação mais próxima do caso, trazendo elementos estratégicos que podem fortalecer a sustentação dessa acusação.

Para atuar como assistente de acusação, o advogado precisa que a vítima ou seus familiares se habilitem no processo, conforme previsto no art. 268 do CPP. A habilitação deve ocorrer após o recebimento da denúncia pelo juiz e antes do início da instrução processual. O assistente de acusação pode ser qualquer pessoa que tenha sofrido diretamente o dano causado pelo crime, ou seus representantes legais, como familiares em caso de homicídio.

Ainda, cumpre mencionar que o assistente de acusação pode adotar uma linha de argumentação diferente do MP, desde que esteja alinhada com os interesses da vítima. Embora a atuação seja complementar, não há obrigação de concordância total com o MP. Contudo, conflitos abertos devem ser evitados, pois podem prejudicar a coesão da acusação.

A atuação do assistente de acusação pode ser decisiva para o convencimento dos jurados, especialmente quando ele apresenta provas adicionais ou argumentos que reforçam a tese acusatória. A dupla atuação (MP e assistente) permite uma abordagem mais abrangente e convincente, aumentando as chances de uma decisão favorável.

PRERROGATIVAS DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO

  1. Produção de Provas (Art. 271 do CPP)
    O assistente de acusação tem o direito de propor meios de prova, indicar testemunhas e requerer diligências necessárias para o esclarecimento dos fatos. Essa atribuição é fundamental para fortalecer a acusação, especialmente em casos complexos em que o MP pode não ter esgotado todas as possibilidades probatórias. A produção de provas pelo assistente pode incluir perícias, documentos e até mesmo a oitiva de testemunhas que não foram inicialmente consideradas pelo MP.
  2. Participação nos Debates (Art. 500 do CPP)
    Durante o plenário do Júri, o assistente de acusação pode se manifestar no tempo reservado à acusação, dividindo a exposição com o MP. Essa participação permite que o advogado do assistente apresente argumentos técnicos e jurídicos que reforcem a tese acusatória, contribuindo para uma decisão mais justa e fundamentada. A atuação nos debates é especialmente relevante em casos de grande complexidade, em que a estratégia de acusação precisa ser detalhada e convincente.
  3. Formulação de Perguntas às Testemunhas (Art. 212 do CPP)
    O assistente de acusação tem o direito de questionar testemunhas e o réu, ampliando a argumentação sobre os fatos e buscando esclarecer pontos obscuros do processo. Essa prerrogativa é essencial para desmontar eventuais defesas inconsistentes e fortalecer a acusação. A formulação de perguntas estratégicas pode revelar contradições nas declarações das testemunhas, contribuindo para a desconstrução da tese defensiva.
  4. Interposição de Recursos (Art. 584, § 1º, e Art. 598 do CPP)
    O assistente de acusação pode interpor recursos em casos de absolvição ou outras decisões que possam comprometer a justiça do caso. Essa prerrogativa é especialmente importante quando a decisão judicial afeta diretamente o direito da vítima à reparação dos danos causados pelo crime. Por exemplo, em casos de impronúncia (Art. 409 do CPP) ou extinção da punibilidade (Art. 107 do CP), o assistente pode recorrer para garantir que a pretensão punitiva seja reavaliada, evitando que a vítima precise ingressar com uma ação civil autônoma.

RECURSOS E LIMITES DA ATUAÇÃO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO

A atuação do assistente de acusação no processo penal, especialmente no Tribunal do Júri, é marcada por limites bem definidos, que garantem que sua intervenção esteja sempre alinhada com os interesses da vítima, sem sobrepor-se ao papel do Ministério Público (MP). Um dos aspectos mais relevantes dessa atuação diz respeito à interposição de recursos, que só é permitida em situações específicas, conforme previsto no Código de Processo Penal (CPP). De acordo com o art. 584, § 1º, do CPP, o assistente de acusação pode recorrer em casos de impronúncia ou extinção da punibilidade, pois são decisões que afetam diretamente o direito da vítima à reparação civil. Além disso, o art. 598 do CPP autoriza o assistente a interpor recurso de apelação em caso de absolvição, desde que o MP não o tenha feito. Essa limitação reflete o entendimento de que o assistente não deve atuar como um segundo acusador, mas sim como um defensor dos interesses da vítima, especialmente no que diz respeito à reparação dos danos sofridos.

Essa distinção entre a função do assistente de acusação e a do MP é reforçada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Enquanto o MP representa os interesses da sociedade na persecução penal, o assistente de acusação tem como foco principal defender os interesses da vítima, especialmente no que diz respeito à reparação civil.

Embora o assistente possa auxiliar o MP na produção de provas e na argumentação, sua atuação não se confunde com a do órgão oficial da acusação. Essa separação de papéis é essencial para garantir que o processo penal não se torne desequilibrado, mantendo o foco na justiça e na reparação dos danos.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem sido clara ao reforçar os limites da atuação do assistente de acusação. Por exemplo, a Súmula 208 do STF estabelece que o assistente só pode recorrer quando houver prejuízo ao interesse da vítima na reparação civil. Essa orientação reflete o entendimento de que a função do assistente não é ampliar a acusação, mas sim garantir que os direitos da vítima sejam protegidos.

Além disso, a jurisprudência tem demonstrado uma tendência de fortalecimento dessa função, desde que respeitados os limites legais. Isso significa que, embora o assistente de acusação não possa recorrer em todas as hipóteses, sua atuação é reconhecida como essencial para a defesa dos interesses da vítima, especialmente em casos complexos ou de grande repercussão.

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CÂMERAS CORPORAIS UTILIZADAS POR AGENTES ESTATAIS COMO INSTRUMENTO DE DEFESA: O QUE O HC 933395/SP NOS ENSINA SOBRE NULIDADE DE PROVAS?

De acordo com a Portaria nº 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, as câmeras corporais foram instituídas como parte do equipamento dos agentes de segurança pública em caráter nacional, abrangendo a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal Federal, Estadual e do DTF, Policiais Militares dos Estados e DFT, Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e DFT, Policiais Civis do Estado e DTF, Peritos de Natureza Criminal dos Estados e DTF e, por fim, as Guardas Municipais.

O Projeto Nacional de Câmeras Corporais é uma iniciativa estratégica para capacitar as ISPs no Brasil. Este projeto não só visa aprimorar a qualidade do serviço prestado à sociedade e proteger os profissionais de segurança pública, mas também fortalecer a integridade, a transparência e a confiança nas operações de segurança pública, alinhando-se assim com os princípios de uma sociedade democrática e justa.

Em complemento a isso, no dia 26 de dezembro de 2024, o Ministro Luís Roberto Barroso estabeleceu regras para o uso de câmeras corporais por policiais militares do Estado de São Paulo, por meio da Suspensão De Liminar nº 1.696. Em sua decisão, o Ministro buscou estabelecer a obrigatoriedade do uso do equipamento por entender sua importância na garantia de operações policiais pautadas na transparência e respeito aos direitos humanos, mas também em respeito à capacidade material do Estado em fornecer tais equipamentos.

Dessa forma, é notório o comprometimento do judiciário em estabelecer mecanismos de resguardar a integridade física da população daquilo tem se tornado cada vez mais comum no dia a dia da segurança pública: os excessos praticados pelos profissionais em campo. Em um país que prevalece o Estado Democrático de Direito, práticas abusivas cometidas em meio à atividade de agentes estatais não devem ser admitidas.

Diante disso, o no julgamento do HC nº 933395/SP, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o pedido formulado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, utilizou-se exatamente das informações extraídas das câmeras corporais dos policiais que atuaram na abordagem policial e como testemunha de acusação para conceder de ofício a ordem em Habeas Corpus para absolver o paciente por nulidade das provas.

No caso concreto, o paciente foi condenado à pena de 7 anos e 6 meses de reclusão pelo crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, tendo a condenação sido reafirmada pelo TJSP em julgamento de apelação. Os pedidos formulados pela Defensoria buscavam demonstrar que, durante a abordagem policial, as provas materiais e confissão colhidas se deram mediante violência policial. Alegam que, mesmo após o paciente ter se rendido, esse foi agredido. Tal versão não condiz com o depoimento prestado pelos policiais em juízo.

Ocorre que, em acesso às filmagens, o Relator fundamenta o reconhecimento da nulidade das provas colhidas e todos os atos processuais decorrentes da abordagem policial diante a análise das câmeras e ordem dos fatos. Especificando minuto e segundo, o Ministro elencou momentos em que os policiais que testemunharam pela acusação sequer estavam no local no momento da abordagem, bem como em diversos momentos foram identificadas tentativas de piorar a qualidade da imagem capturada e os vídeos foram enviados sem áudio – exceto no momento da confissão do paciente.

Assim, em reconhecimento ao artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, o qual afirma que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante, bem como em respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 5.2 também versa sobre a proteção contra a violência, o STJ reconheceu como ilícitas as provas colhidas no momento da abordagem e seus atos subsequentes diante da comprovação de conduta ilícita dos agentes de segurança pública pelas câmeras corporais.

Cumpre destacar que, reconhecida a ilicitude da prova, essa deve ser desentranhada do processo, conforme art. 157 do Código de Processo Penal, a fim de resguardar a integridade de todo o processo mediante os pilares constitucionais sob os quais o ordenamento jurídico brasileiro se mantém.

As câmeras corporais têm emergido como uma ferramenta essencial para garantir a transparência e a responsabilização nas abordagens policiais. No contexto do HC nº 933395/SP, essas tecnologias desempenharam um papel crucial na defesa do paciente, oferecendo evidências concretas que corroboraram as alegações de violações de direitos fundamentais e da ilicitude das provas obtidas. Esse caso evidencia não apenas a relevância das câmeras corporais, mas também a necessidade de que a defesa atue de forma ampla e estratégica, indo além da análise estritamente vinculada ao processo principal.

No caso em questão, os registros das câmeras corporais foram decisivos para demonstrar que o réu sofreu agressões físicas, mesmo estando rendido e sem oferecer qualquer resistência. Ademais, ficou comprovado que as provas apresentadas contra ele foram obtidas mediante coerção, o que contamina sua admissibilidade à luz do art. 157 do Código de Processo Penal e de tratados internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos.

O caso demonstrou como as câmeras corporais funcionaram não apenas como um registro das ações policiais, mas como uma ferramenta fundamental para a defesa, permitindo a reconstrução fiel dos fatos e evidenciando práticas ilegais.

Entretanto, a importância das câmeras corporais vai além de sua função probatória. Elas também revelaram a dinâmica de manipulação das evidências por parte dos agentes, que bloquearam deliberadamente as imagens ou posicionaram os dispositivos de forma a dificultar a captura de atos de violência. Essa conduta não apenas compromete a transparência das ações, mas também destaca a necessidade de regulamentações rigorosas que impeçam tais práticas e garantam a integridade dos registros. Além disso, evidencia como o simples uso de tecnologias não é suficiente para evitar abusos, sendo imprescindível que sua implementação esteja acompanhada de fiscalização efetiva e responsabilidade institucional.

O papel da defesa, nesse contexto, é crucial. A atuação limitada ao processo principal poderia ter resultado na manutenção das provas obtidas de forma ilegal e na condenação do paciente com base em elementos contaminados. Ao explorar os registros das câmeras corporais e demonstrar sua relevância para a formação do convencimento judicial, a defesa foi capaz de questionar a narrativa apresentada pela acusação e garantir que o princípio da dignidade da pessoa humana fosse respeitado. Esse trabalho reflete a importância de uma abordagem ampla e detalhada, que não se limite à análise dos autos, mas que busque ativamente por evidências que fortaleçam a tese defensiva.

As injustiças se perpetuam quando a defesa se restringe à atuação reativa, ou seja, limitando-se a contestar os elementos apresentados pela acusação sem promover uma investigação própria ou buscar provas que desconstituam as alegações acusatórias. A proatividade demonstrada pela defesa no HC nº 933395/SP ilustra como essa postura pode ser determinante para reverter situações de aparente legitimidade e expor violações que poderiam passar despercebidas.

O caso também reforça a importância de uma defesa comprometida com a construção de uma narrativa própria, embasada em fatos concretos e em evidências que demonstrem a fragilidade das provas apresentadas pela acusação. A utilização de tecnologias, como as câmeras corporais, deve ser vista como uma oportunidade para garantir a transparência no processo penal, mas também exige da defesa um olhar atento e uma atuação que ultrapasse a simples resposta à acusação. É preciso explorar todos os elementos disponíveis e assegurar que os direitos fundamentais do acusado sejam efetivamente protegidos.

A decisão no HC nº 933395/SP reafirma a necessidade de uma defesa ativa, técnica e comprometida com os princípios do Estado Democrático de Direito. Mais do que um instrumento probatório, as câmeras corporais demonstraram ser um meio de fiscalização das práticas policiais, contribuindo para a promoção da justiça e para a prevenção de abusos. Contudo, para que seu uso seja eficaz, é imprescindível que sejam acompanhadas de regulamentações claras e mecanismos de controle que garantam a confiabilidade e a integridade das gravações. Ao mesmo tempo, cabe à defesa a tarefa de atuar de forma diligente e estratégica, utilizando todas as ferramentas disponíveis para assegurar que os direitos do acusado sejam plenamente respeitados.

Por fim, o caso do HC nº 933395/SP não é apenas um exemplo da importância das câmeras corporais no contexto penal, mas também uma lição sobre como a atuação da defesa pode transformar o curso de um processo. Ao demonstrar que injustiças podem ser evitadas por meio de uma abordagem ampla e proativa, ele destaca o papel central da advocacia criminal na garantia de um sistema penal justo e respeitoso aos direitos humanos.

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EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO: A PROTEÇÃO DA IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL

No ordenamento jurídico brasileiro, a extinção da punibilidade constitui um tema de singular relevância, pois envolve situações em que o Estado perde a possibilidade de exercer o seu direito de punir o indivíduo que praticou um delito. Tal possibilidade está prevista no artigo 107 do Código Penal e abrange uma série de causas que, por sua natureza, extinguem a punibilidade. Entre elas, podemos destacar: a morte do agente, o perdão judicial, a renúncia do direito de queixa, a perempção, a anistia, o indulto e, notadamente, a prescrição. Cada uma dessas causas reflete diferentes circunstâncias em que o Estado abre mão da persecução penal, seja em razão de questões humanitárias, de clemência ou, no caso da prescrição, pelo simples decurso do tempo.

A morte do agente, por exemplo, encerra o processo penal porque, com o falecimento, não há mais sujeito a ser responsabilizado. Essa medida encontra respaldo no princípio da pessoalidade da pena, que impede que as sanções penais sejam transmitidas a terceiros, como familiares ou herdeiros. De igual modo, a anistia, o indulto e a graça são mecanismos que refletem o poder discricionário do Estado em extinguir a punibilidade de determinados crimes ou penas, em função de políticas criminais ou interesses sociais específicos.

Entretanto, a prescrição emerge como uma das mais frequentes e debatidas causas de extinção da punibilidade. Trata-se de um instituto jurídico que reflete a perda do direito de punir ou de executar a pena devido ao decurso de um prazo previsto em lei. A prescrição encontra-se dividida em duas modalidades principais: a prescrição da pretensão punitiva, que ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, e a prescrição da pretensão executória, que ocorre após o trânsito em julgado para a acusação. Ambas se fundamentam na necessidade de conferir estabilidade às relações jurídicas e evitar a eternização de processos penais.

No que diz respeito ao cálculo da prescrição, ele deve ser feito com base nos prazos previstos no artigo 109 do Código Penal, que variam conforme a pena privativa de liberdade cominada ao delito. Além disso, é importante considerar o momento em que se inicia a contagem do prazo prescricional, o que dependerá da espécie de prescrição aplicável no caso concreto. Para a prescrição da pretensão punitiva, o prazo começa a fluir a partir da data em que o crime foi cometido, salvo nos casos de infrações permanentes, em que o prazo se inicia com a cessação da permanência. Já na prescrição da pretensão executória, a contagem tem início a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação.

Ademais, um aspecto que merece especial atenção é a análise temporal da norma penal. Como estabelece o artigo 5º, inciso XL da Constituição Federal, a lei penal mais gravosa não pode retroagir para prejudicar o réu. Esse princípio também se aplica às normas que disciplinam a prescrição, de modo que, caso a legislação posterior estabeleça prazos mais rigorosos, prevalecerão as regras mais benéficas vigentes à época do fato ou do trânsito em julgado da condenação. Essa garantia representa uma expressão do princípio da segurança jurídica e constitui uma das bases do Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, mesmo após o trânsito em julgado, a defesa pode pleitear a extinção da punibilidade do condenado com fundamento na aplicação de norma penal mais benéfica, em observância aos critérios temporais de aplicação da norma. Trata-se de uma hipótese que reforça a importância da atuação de um advogado criminalista capacitado, pois a correta identificação do prazo prescricional e a verificação da legislação aplicável podem ser determinantes para assegurar os direitos do acusado.

Imagine que um indivíduo tenha sido condenado pelo crime previsto do artigo 217-A do Código Penal, qual seja estupro de vulnerável, à pena de 9 anos, tendo tal condenação transitado em julgado. Todavia, ao buscar um advogado de confiança para acompanhar sua execução penal, este notou que o fato havia sido praticado anterior à Lei n.º 12.015/2009. Ou seja, a época do fato, vigorava o art. 213, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro, adequando tal conduta não mais ao estupro de vulnerável, mas a atendado violento ao pudor.

Diante disso, como estratégia jurídica adequada, deu-se entrada em uma ação de Revisão Criminal, prevista no artigo 621 do Código de Processo Penal e destinada a revisar, diante de novas provas ou de notória injustiça, decisões que já transitaram em julgado.

Na ocasião, reconhecendo que a necessidade de desclassificar o crime imputado ao indivíduo para o de atentado violento ao pudor, a pena que antes fora imposta a 9 anos agora já fora redimensionada para apenas 6 anos. Mas, afinal, se foi mantida a condenação, qual extraordinário benefício ao Réu?

Ora, conforme o artigo 109 do CPP, o prazo prescricional para uma condenação entre 8 a 12 anos seria de 16 anos, mas, para uma condenação entre 4 e 8 anos, seria de apenas 12 anos após a última causa de interrupção da prescrição. Nesse sentido, considerando o grandioso lapso temporal, além da desclassificação do delito, também foi reconhecida a prescrição da pena, culminando na sua extinção. 

Esse exemplo ilustra a importância de uma defesa bem fundamentada e da utilização adequada dos recursos disponíveis no ordenamento jurídico. A prescrição, como causa de extinção da punibilidade, não é apenas um mecanismo técnico, mas também um reflexo do equilíbrio entre o poder punitivo do Estado e os direitos do indivíduo. Assim, a assessoria de um advogado experiente é fundamental para garantir que todos os instrumentos legais sejam devidamente utilizados em prol do acusado.

Portanto, a extinção da punibilidade por prescrição demonstra não apenas a complexidade do Direito Penal, mas também a necessidade de uma atuação profissional criteriosa, que assegure o respeito às garantias constitucionais e ao princípio da legalidade. Esse compromisso com a justiça reflete a essência da advocacia criminal e sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.

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REVISÃO CRIMINAL E A ABORDAGEM DE NULIDADES DA PROVA APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO

Ao tratar do reconhecimento de culpa e responsabilização penal dos indivíduos dentro do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal é muito clara ao estabelecer que, antes do trânsito em julgado, ninguém poderá ser considerado culpado. Isso significa uma segurança para os cidadãos, impedindo que sejam aplicadas penalidades anteriormente ao esgotamento de todas as possibilidades e oportunidades de se provar a real responsabilidade daquele indivíduo diante de uma situação.

Dessa forma, são diversos os recursos existentes no rol do Código de Processo Penal, como os embargos, a apelação, os recursos extraordinários e especiais, os recursos em sentido estrito, e demais outros meios de impugnação de decisões. No entanto, por vezes o réu não é patrocinado por uma boa defesa, ou deixa de arguir tópicos importantes dentro do procedimento que acabam sendo decisivos para sua condenação. E agora, o que fazer?

Pensando nisso, o legislador instituiu a Revisão Criminal, um instrumento jurídico que permite a reavaliação de uma sentença penal condenatória transitada em julgado (ou seja, quando não cabe mais recurso) que tenha sido proferida com erro ou injustiça. É um meio de proteção do condenado contra possíveis erros judiciais, garantindo a correção de decisões injustas e resguardando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, podendo ser proposta a qualquer tempo após uma condenação transitada em julgado e somente pelo réu condenado, a Revisão Criminal é uma alternativa àqueles injustamente julgados culpados, podendo culminar na dissolução da coisa penal julgada e, consequentemente, em uma absolvição, remarcação de julgamento, reforma na dosimetria da pena, restituição de bens ou ainda em uma indenização ao réu condenado injustamente.

No entanto, é necessário ter em mente que a Revisão Criminal, apesar de ser um tipo de ação com sentido recursão, não se pode debater ali qualquer tipo de matéria ou ainda de qualquer modo, é necessário analisar bem as hipóteses de cabimento para saber a melhor maneira de formular o pedido de revisão criminal.

A revisão criminal não se confunde com os recursos ordinários, pois não se trata de uma continuidade do processo de conhecimento, mas sim de uma medida excepcional e autônoma, destinada a reparar injustiças resultantes de erros processuais ou fáticos ocorridos durante a tramitação do processo penal.

Segundo Aury Lopes Jr., a revisão criminal pode ser cabível nas seguintes hipóteses:

  1. Quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos. Isso ocorre quando a decisão vai de encontro ao que está claramente disposto na legislação ou quando não se sustenta diante das provas apresentadas.
  2. Quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos. Caso se prove que algum elemento de prova essencial à condenação foi falsificado, a revisão criminal se torna pertinente.
  3. Quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstâncias que determinem ou autorizem diminuição especial da pena. Aqui, são consideradas as provas que não estavam disponíveis no momento do julgamento e que poderiam ter influenciado a decisão judicial.
  4. Quando a sentença condenatória se fundar em erro de fato, resultante de atos processuais ou documentos ignorados, cuja existência ou falsidade tenha sido admitida em juízo, ou seja, evidente pelas circunstâncias. Esse ponto trata dos erros materiais que passaram despercebidos durante o julgamento.

Dessa forma, ao analisarmos os casos concretos de acordo com o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, é possível identificarmos diversas possibilidades de lograr êxito com a ação de Revisão Criminal, ainda que tratemos de nulidade das provas.

Dentre as possibilidades de reconhecimento de nulidade pós o trânsito em julgado, é necessário ter em mente um ponto muito importante: a Revisão Criminal não pode ser considerada uma extensão da ação penal principal, portanto, não é cabível revisão criminal que trata das mesmas teses e sob os mesmos argumentos que o recurso de apelação, por exemplo. É necessário ter em mente a Súmula 56 do TJCE, a qual diz que não se deve conhecer a Revisão Criminal quando houver somente base de outras peças já precluídas.

A Desembargadora Marlúcia de Araújo, ao julgar o processo de nº 0635525-49.2023.8.06.0000, entendeu que: ‘’a revisão criminal não se presta ao papel de instrumento para a perpetuação da possibilidade de interposição de recursos, apenas repetindo-se teses já claramente rechaçadas. O que aludida modalidade de ação objetiva é possibilitar o reexame da coisa julgada, mas apenas naquelas hipóteses taxativamente previstas no regramento do art. 621 do Código de Processo Penal.’’.

Em concordância a isso, o Desembargador Benedito Helder, ao analisar o processo de nº 0637779-92.2023.8.06.0000, não somente entendeu que a Revisão Criminal não é a via pertinente para realizar matéria já analisada em sede de recursos dentro da ação penal principal, mas também ressaltou que o objeto de análise naquele caso concreto já havia sido debatido em outra ação de Revisão Criminal.

Dessa forma, podemos compreender que, ainda que tenha uma natureza parcialmente recursal, a Revisão Criminal trata de uma ação independente, não podendo ser utilizada como uma extensão da ação penal principal. Deve trazer argumentos novos ou que não foram bem esclarecidos durante o curso do processo originário. Ainda que se trate de um reexame da matéria, não se pode utilizar tal meio processual como uma maneira de perpetuar as possibilidades de interposição de recursos.

Ultrapassada essa etapa de analisar a possibilidade de tratar de uma nulidade dentro da ação de Revisão Criminal como algo inédito à causa principal ou com novos fatos, as possibilidades de arguir a nulidade da prova e, consequentemente, a absolvição por ausência de acervo probatório suficiente são imensas.

Ao tratar de arguição de nulidade da invasão domiciliar em sede de Revisão Criminal, a Desembargadora Marlúcia entendeu que, diante da ausência de fundamentação do Juízo que decretou a invasão domiciliar dos réus, haja vista esse não ter particularizado os dispositivos legais ao caso concreto, bem como não demonstrou a indispensabilidade da medida para a situação. Citou, ainda, o precedente do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da Min. Sepúlveda Pertence, sob o julgamento do HC 78.013-3/RJ, o qual aduz que uma decisão que serve para todos os casos, não serve para nenhum.

Para além disso, o debate sobre a citação pessoal do réu como nulidade no processo penal também fora analisado pela Desembargadora Lígia Andrade, a qual reconheceu que, diante de ausência de intimação sobre a sentença condenatória, a Revisão Criminal é a via eleita para desconstituir o trânsito em julgado, sob pena de violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Dessarte, ao tratarmos sobre reconhecimento pessoal, é sabido que existem formalidades a serem seguidas para que tal prova possa ser considerada válida, conforme o art. 226 do Código de Processo Penal [1], sendo
apresentado à vítima apenas a fotografia do demandante, ocasião em que ela
o reconheceu como o autor do crime. Sobre o tema, a Terceira Seção do
Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que o procedimento
previsto no art. 226, do CPP, constitui garantia mínima de quem se vê na
condição de suspeito, razão pela qual devem ser observadas as formalidades
previstas no referido artigo. Ou seja, deveriam ter sido apresentadas, pelo menos, outras três fotografias de indivíduos parecidos com as características descritas anteriormente pela vítima, o que não ocorreu. Além disso, não houve outros meios de prova que corroborassem com a denúncia feita, culminando na absolvição do acusado pelo Juiz Convocado Eduardo de Castro Neto.

Sobre um tema bastante importante, temos também a decisão do Desembargador Benedito Helder, o qual reconheceu, via julgamento do processo 0635653-69.2023.8.06.0000, a necessidade de absolvição do acusado tendo em vista os claros indícios de tortura vivenciada pelo réu. Tais indícios foram primordiais para demonstrar a mácula da prova oral do réu, pois ele certamente a fez mediante tortura e medo do policial que o conduziu. Neste caso, fundamentou no art. 612, I, do CPP para reconhecer a absolvição do acusado, estando a sentença divergente das provas presentes nos autos.

Por fim, temos o Desembargador Mario Parente, o qual também sobre a temática. No processo de n° 0634468-93.2023.8.06.0000, decidiu pela absolvição do réu diante da incoerência das provas testemunhais quanto ao reconhecimento da legalidade ou não da invasão domiciliar e que, por haver muitas divergências, entendeu pela ilegalidade da prova.

Dessa forma, restou demonstrado a gama de oportunidades de atuação dentro da Revisão Criminal, bem como as perguntas chaves para você fazer ao seu cliente.

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[1] Ficou em dúvida? Também já conversamos sobre isso! Veja: https://youtu.be/r15uW1gxGHE?si=Vmrhe9LQ0xBeVBvD

CASO BOATE KISS: ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO ESPECIAL Nº 2.062.459

Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, localizada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi cenário de uma das maiores tragédias da história recente do Brasil. Durante a festa universitária intitulada Agromerados, um artefato pirotécnico utilizado pela banda “Gurizada Fandangueira” causou um incêndio de grandes proporções. Em poucos minutos, o fogo consumiu a boate, resultando na morte de 242 pessoas e deixando mais de 600 feridos.

O caso gerou grande comoção pública e uma série de processos judiciais para apurar as responsabilidades dos envolvidos, incluindo os sócios da boate e integrantes da banda. Após anos de disputas jurídicas, o julgamento no Tribunal do Júri foi anulado por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), levando o Supremo Tribunal Federal (STF) a se pronunciar sobre o tema.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO CASO E DO PRIMEIRO JÚRI

O processo criminal contra Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann (sócios da Boate Kiss), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda) e Luciano Bonilha Leão (produtor musical) resultou na condenação dos réus em dezembro de 2021. O julgamento foi realizado pelo Tribunal do Júri, que estabeleceu penas variando entre 18 e 22 anos de reclusão para os acusados, com base na acusação de homicídio simples, em múltiplas instâncias (242 vezes consumado e 636 vezes tentado). No entanto, diversas nulidades processuais foram arguidas pelas defesas, culminando na anulação do julgamento pelo TJRS.

O TJRS identificou várias irregularidades, como a realização de sorteios suplementares de jurados, a falta de respeito aos prazos legais e a condução de uma reunião reservada entre o juiz e o Conselho de Sentença durante a sessão plenária, sem a presença da acusação e da defesa. Além disso, foi alegada a má formulação dos quesitos, violando o princípio da correlação entre denúncia, pronúncia e sentença.

2. AS PRINCIPAIS NULIDADES APONTADAS

A decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul baseou-se em três pontos principais para justificar a anulação do primeiro júri:

A) SORTEIOS DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO ART. 433, § 1º DO CPP: Os sorteios de jurados realizados de forma irregular, com prazos exíguos e fora dos limites estabelecidos pela lei, comprometeram o direito à ampla defesa. Foram realizados três sorteios (um principal e dois suplementares) que totalizaram 305 jurados, muito acima do limite legal de 25. A defesa argumentou que o número elevado de jurados, aliado ao tempo insuficiente para analisá-los, prejudicou o exercício do direito de recusa e a arguição de impedimentos e suspeições, configurando um prejuízo concreto para os réus.

B) REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS: Durante a sessão plenária, o juiz presidente do Tribunal do Júri interrompeu o julgamento para realizar uma reunião privada com os jurados, sem a presença das partes envolvidas, o que violou os princípios da transparência e do contraditório. O TJRS entendeu que esse ato, não previsto legalmente, constituiu uma nulidade absoluta, já que impediu as partes de impugnar o conteúdo da reunião, cujo teor permaneceu desconhecido.

C) FORMULAÇÃO DEFICIENTE DOS QUESITOS: A decisão também apontou nulidades nos quesitos formulados ao Conselho de Sentença. A formulação dos quesitos não respeitou o princípio da correlação, incluindo elementos que haviam sido excluídos na decisão de pronúncia anterior. Além disso, a linguagem utilizada nos quesitos era ambígua e dificultava a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, prejudicando os réus ao complicar a decisão dos jurados leigos.

3. JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL nº 2062459 PELO STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ao julgar os recursos apresentados após a decisão que anulou o primeiro júri do caso Boate Kiss. O STJ avaliou as nulidades apontadas pela defesa dos réus e pelo Ministério Público, que questionaram a decisão do TJRS. O tribunal superior reafirmou a anulação do julgamento com base em três principais fundamentos:

  1. NÚMERO EXACERBADO DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO PRAZO LEGAL

O STJ sustentou a nulidade referente ao número excessivo de jurados sorteados para compor o Conselho de Sentença, conforme alegado pela defesa e já reconhecido pelo TJRS. Embora o Ministério Público tenha argumentado que o aumento do número de jurados (de 25 para 305) foi justificado pelas circunstâncias da pandemia de COVID-19 e pela ausência de jurados, o STJ entendeu que as justificativas apresentadas não eram suficientes para ultrapassar o limite legal de 25 jurados.

Além disso, o tribunal destacou a falta de proporcionalidade entre o aumento no número de jurados e o tempo disponível para que a defesa realizasse a investigação necessária sobre os mesmos. Como resultado, o STJ concluiu que houve um efetivo prejuízo para a defesa, considerando a impossibilidade de conduzir uma investigação adequada dentro dos prazos reduzidos.

B)  REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS

O STJ também manteve o entendimento do TJRS quanto à nulidade da reunião reservada entre o juiz presidente do Tribunal do Júri e os jurados, realizada durante a sessão plenária, sem a presença do Ministério Público e das defesas. A defesa alegou que esse ato violou os princípios do contraditório e da transparência, resultando em uma nulidade absoluta.

O STJ concordou com essa interpretação, ressaltando que a falta de registro formal da reunião em ata, aliada ao fato de que as partes desconheciam o conteúdo do ato, configurou uma violação séria aos princípios constitucionais e processuais. O tribunal considerou que a gravação de som e imagem da sessão não foi suficiente para afastar a necessidade de um registro formal e a possibilidade de impugnação pelas partes.

C) UTILIZAÇÃO INADEQUADA DE PROVAS E INOVAÇÕES ACUSATÓRIAS

Outro ponto relevante analisado pelo STJ foi a utilização inadequada de provas e inovações acusatórias. A defesa alegou que o Ministério Público teria inovado ao introduzir novos elementos acusatórios em suas réplicas, sem que essas novas alegações fossem previstas ou previamente apresentadas durante o processo. Por exemplo, o uso de uma maquete digital em 3D pela acusação para ilustrar a dinâmica do incêndio foi questionado pela defesa, que argumentou que tal inovação poderia ter influenciado indevidamente a decisão dos jurados, uma vez que estes julgam segundo sua íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar seus votos.

O STJ aceitou esse argumento, reconhecendo que a introdução tardia de novas provas e argumentos pela acusação, sem oportunidade adequada de contraditório, poderia prejudicar a defesa, constituindo mais um motivo para anular o julgamento.

D) VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA CONGRUÊNCIA E HIERARQUIA DAS DECISÕES JUDICIAIS

O STJ também reconheceu a nulidade por violação do princípio da congruência e da hierarquia das decisões judiciais. A decisão do TJRS havia destacado que, durante o julgamento, houve inserção de imputações nos quesitos dirigidos aos jurados que não haviam sido admitidas na decisão de pronúncia, violando o princípio da correlação entre a denúncia e a pronúncia, além da hierarquia das decisões judiciais do Tribunal de Justiça.

O STJ concordou que essa falha constituía uma nulidade absoluta, capaz de gerar perplexidade nos jurados e comprometer a imparcialidade do julgamento, justificando assim a superação do óbice da preclusão.

4. DECISÃO DO STF E O RESTABELECIMENTO DO JULGAMENTO

O caso chegou ao STF por meio de recursos extraordinários interpostos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) e Réu Luciano Bonilha Leão, que apresentaram suas razões. O relator, Ministro Dias Toffoli, ao analisar o recurso, concluiu pela inexistência das nulidades apontadas, afastando os argumentos utilizados pelo TJRS e STJ.

a) Sorteios de Jurados: O STF considerou que não houve cerceamento da defesa relacionado ao sorteio de jurados. Argumentou-se que a irregularidade apontada se referia ao último sorteio realizado em 24/11/2021, do qual nenhum dos jurados sorteados compôs o Conselho de Sentença. Dessa forma, não se verificou qualquer prejuízo concreto para os réus, e a preclusão quanto a essa nulidade foi reconhecida, visto que a única insurgência apresentada se limitou a uma manifestação genérica do réu Elissandro em plenário, sem especificar qualquer ilegalidade.

b) Reunião Reservada entre Juiz e Jurados: Em relação à reunião reservada, o STF entendeu que não se configurou nulidade processual. Segundo o relator, a ausência de um registro formal em ata foi suprida pela gravação em vídeo da sessão, o que afastou a necessidade de uma impugnação formal pela defesa no momento da realização do ato.

c) Quesitação: Sobre a má formulação dos quesitos, a Corte Suprema considerou que as nulidades apontadas eram preclusas, pois não foram oportunamente apresentadas pelas defesas durante o julgamento. O STF reforçou que, conforme o artigo 571, VIII, do Código de Processo Penal, eventuais nulidades devem ser arguidas imediatamente, sob pena de preclusão.

4. Implicações da Decisão do STF

A decisão do STF, ao afastar as nulidades apontadas e restabelecer o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri, representa um marco importante para a jurisprudência brasileira sobre o funcionamento e as garantias processuais no Tribunal do Júri. Ao enfatizar a necessidade de demonstração de prejuízo concreto para a anulação de um julgamento, o STF reforça a importância de um equilíbrio entre a garantia dos direitos constitucionais dos réus e a manutenção da soberania dos veredictos do júri.

O entendimento do STF também evidencia a relevância de se observar rigorosamente os procedimentos legais no âmbito do Tribunal do Júri, particularmente em casos de grande repercussão social e complexidade, como o da Boate Kiss. A decisão do STF destacou o papel do Tribunal do Júri como guardião dos direitos fundamentais e do devido processo legal, enquanto reafirmou a necessidade de transparência e observância dos princípios acusatórios.

5. Considerações Finais

A decisão do STF no Recurso Extraordinário 1.486.671/RS é emblemática por diversos motivos. Primeiramente, ela reafirma a soberania do júri e a necessidade de respeito às formalidades processuais no contexto do Tribunal do Júri. Em segundo lugar, ela reforça a ideia de que as nulidades processuais só podem ser reconhecidas quando houver demonstração de prejuízo concreto à defesa, o que, mesmo com tamanha comprovação, o ministro relator insiste em, numa tentativa de dar uma resposta social, flexibilizar as garantias penais e constitucionais vigentes.

Importante destacar que, ainda que o ministro relator tenha determinado a prisão preventiva dos acusados e dado parcial provimento ao recurso da acusação, isso não significa que o processo acabou. É necessário observar o cabimento de agravo à decisão, a fim de requisitar uma análise colegiada do caso, principalmente tendo em vista a complexidade do caso e a necessidade de se analisar cada mínimo detalhe.

Além disso, como se pode perceber, os recursos interpostos até o presente momento tão somente abordaram questões preliminares de nulidade, não adentrando no mérito da questão, o que deve ser avaliado em julgamento de apelação. Assim, com a remessa dos autos ao TJRS após o indeferimento do pleito defensivo no STF, ainda haverá a possibilidade de análise do mérito tanto pelo TJRS, quando pelos Tribunais Superiores, garantindo, pelo menos, o duplo grau de jurisdição.

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ASPECTOS PRÁTICOS DO DEPOIMENTO ESPECIAL EM CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Ao abordar os crimes sexuais contra vulneráveis, conforme os artigos 217 a 218-C do Código Penal, é imprescindível o entendimento de que, além da sensibilidade natural que os crimes sexuais exigem tanto da defesa quanto da acusação, os atos praticados contra crianças demandam uma postura ainda mais criteriosa por parte dos profissionais envolvidos.

A Constituição Federal, em seu artigo 227, consagra a proteção integral da criança e do adolescente como um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, princípio este que foi subsequentemente ratificado pela Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), além de outras legislações que visam resguardar a integridade do menor em todos os âmbitos de sua vida.

Neste contexto, à luz do conceito de “revitimização”, conforme abordado pela Vitimologia[1] — ramo da criminologia dedicado ao estudo da vítima, de sua personalidade e estatuto psicossocial, e dos efeitos psicológicos resultantes do crime — foi instituído pela Lei nº 13.431/2017 o Depoimento Especial. Essa legislação visa garantir parâmetros claros e objetivos para a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes em casos de crimes sexuais, com especial atenção para a preservação do bem-estar psicológico da vítima.

A Lei do Depoimento Especial pode ser vista como parte do “microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas”, que inclui a Lei nº 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer), a Lei 14.321/2022 (tipifica o crime de violência institucional), a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a recente Lei 14.344/22 (Lei Henry Borel), as quais consolidam mecanismos de adaptação do ordenamento jurídico brasileiro às necessidades da vítima, tratada a partir disso não apenas como um meio de prova para o Estado, mas como sujeito processual ativo com direitos próprios.

Como amplamente reconhecido, o depoimento pessoal da vítima em crimes sexuais possui elevado valor probante, sendo diferenciado em relação aos laudos periciais e depoimentos testemunhais. No entanto, justamente por reconhecer a necessidade de ouvir a vítima e o peso de suas palavras, é fundamental empregar técnicas especiais para a coleta desses depoimentos.

Ao tratarmos de crianças, surge um obstáculo ainda maior relacionado à formação de memórias e ao processo de verbalização da situação vivida, pois muitas vezes elas sequer entendem o que aconteceu. No contexto forense, frequentemente nos deparamos com um dos fenômenos mais prejudiciais à precisão da memória e, consequentemente, à confiabilidade da prova testemunhal infantil: a sugestionabilidade. Compreender os efeitos da sugestionabilidade em diferentes faixas etárias é crucial, pois esse fenômeno tem implicações práticas significativas no campo jurídico, especialmente no modo como os questionamentos são feitos e repetidos.

A distorção da memória é um fator crítico em casos legais, pois impacta diretamente a credibilidade dos testemunhos. Há uma vasta quantidade de pesquisas que corroboram a ideia de que entrevistas sugestivas podem levar a níveis mais elevados de falsas memórias, especialmente em crianças com menos de 5 anos de idade.

Nos crimes sexuais, devido à natureza intrínseca do delito, há uma escassez de evidências físicas, tornando os relatos das vítimas a principal fonte de prova. A vítima, portanto, torna-se uma peça-chave na investigação do crime. Dessa forma, é essencial tratar da questão da prova testemunhal, da oitiva da criança e dos efeitos que podem distorcer seu testemunho. A prova testemunhal infantil deve ser cuidadosamente analisada para confirmar ou refutar a existência de suporte factual ao delito sexual, sendo a credibilidade do relato da criança e a sua confrontação com as demais provas essenciais para fundamentar a decisão judicial.

No entanto, o depoimento infantil pode apresentar falhas psicológicas que comprometem a formação de um juízo de plena certeza sobre determinados fatos de relevância jurídico-penal. Tais falhas constituem uma ameaça à veracidade do testemunho infantil, razão pela qual, apenas em situações excepcionais, o depoimento de uma criança deve ser considerado como prova suficiente para a condenação penal.

Quando crianças são questionadas em contextos forenses ou chamadas a testemunhar em processos judiciais, frequentemente são convidadas a relatar incidentes extremamente angustiantes ou traumáticos que vivenciaram ou presenciaram. O ambiente formal e intimidante, aliado à falta de capacitação técnica de muitos profissionais envolvidos, pode transformar essa experiência em algo ainda mais traumático que o próprio ato vitimizador. Esse trauma reflete-se diretamente em seu testemunho, resultando, por vezes, na incapacidade da criança de relatar os fatos com precisão, ou levando-a a ajustar seu relato às expectativas dos questionadores, respondendo a perguntas sugestivas e intimidadoras.

Assim, é crucial reconhecer os benefícios do depoimento especial tanto para a vítima, que não precisa reviver constantemente a situação constrangedora e degradante ao repetir sua história, quanto para a defesa, que evita que a vítima crie falsas memórias ao repetir múltiplas vezes uma versão dos fatos, frequentemente conduzida pela acusação, sob uma ótica distorcida que a vítima, em si, não consegue diferenciar da realidade.

Mas, afinal, como é colhido o depoimento especial? É a mesma coisa da escuta especializada?

Ambos os institutos estão contidos na Lei 13.431/2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente- SGDCA. Todavia, a diferença consiste na finalidade do depoimento colhido e no local.

Quando tratamos da escuta especializada, ela se refere à entrevista sobre uma possível situação de violência contra criança ou adolescente, com o intuito de garantir a proteção e o cuidado da vítima. Pode ser realizada pelas instituições da rede de promoção e proteção, formada por profissionais da educação e da saúde, conselhos tutelares, serviços de assistência social, entre outros.

Em contrapartida, o depoimento especial é a oitiva da vítima, criança ou adolescente, perante a autoridade policial ou judiciária. Tem caráter investigativo, no sentido de apurar possíveis situações de violência sofridas. Todos os passos do procedimento estão descritos no artigo 12 da Lei 13.431/2017:

Vejamos:

Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento:

I – os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;

II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;

III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.

§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.

§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.

§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.

§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.

§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.

 Dessa forma, o principal ponto do depoimento especial é a oitiva da vítima pelo profissional especializado, utilizando-se de técnicas adequadas para a oitiva mais objetiva possível, a fim de evitar possíveis distorções na narrativa e uma revitimização da criança ou adolescente.

Todavia, o texto legal não especifica qual técnica deve ser utilizada e nem qual profissional é entendido como especializado para realizar tal procedimento.

Em termos de profissional, o mais comum é que estejam presentes um assistente social ou psicólogo, pela proximidade com as questões a serem abordadas. Os agentes jurídicos indispensáveis à produção válida da prova muitas vezes não possuem capacidade técnica para a oitiva dessas crianças, especialmente quando se trata de abuso sexual, tampouco conhecimento sobre os diferentes estágios de desenvolvimento infantil, síndromes, além do ambiente formal da sala de audiências, que não são preparadas para o correto acolhimento dessa criança vítima.

Já em relação à técnica utilizada, não se segue um modelo único, mas são desenvolvidos diversos estudos no campo da Psicologia do Testemunho para adequar ao caso concreto as melhores estratégias. No que diz respeito à linguagem, recomenda-se o uso de voz ativa, palavras e frases simples, a evitação de duplos negativos e perguntas múltiplas, além de assegurar que a criança compreenda plenamente a pergunta feita.

O protocolo NICHD, por exemplo, utiliza técnicas semelhantes às da entrevista cognitiva. Contudo, em relação ao testemunho infantil, este protocolo se mostra mais adequado, pois emprega técnicas que facilitam o acesso à memória episódica, aumentando a quantidade de informações e detalhes obtidos durante a entrevista com as crianças.

O protocolo NICHD (National Institute of Child Health and Human Development) foi desenvolvido como um conjunto estruturado de diretrizes para conduzir entrevistas forenses com crianças vítimas ou testemunhas de crimes. Sua origem está atrelada ao trabalho de pesquisadores e psicólogos especializados na área de Psicologia do Testemunho, que buscavam uma maneira de minimizar a sugestibilidade infantil e maximizar a precisão e a confiabilidade dos depoimentos colhidos de crianças.

A utilidade do protocolo NICHD reside na sua capacidade de orientar os entrevistadores a conduzir a entrevista de maneira que seja respeitosa e apropriada para a idade da criança, ao mesmo tempo em que extrai informações detalhadas e factuais sobre os eventos vivenciados. O protocolo é baseado em técnicas que favorecem o acesso à memória episódica, encorajando a criança a relatar o que aconteceu em suas próprias palavras, sem interferências indevidas por parte do entrevistador.

O protocolo NICHD enfatiza o uso de perguntas abertas e do relato livre (por exemplo, “diga-me tudo o que aconteceu”, “diga-me tudo o que você pode sobre isso”, “diga-me mais”).  Além do relato livre e das questões abertas, visando a não contaminação da memória da criança, o entrevistador somente faz referência a detalhes mencionados pelo infante, utilizando as mesmas palavras usadas. Perguntas sugestivas são fortemente desencorajadas na utilização do protocolo.

O Depoimento Especial, instituído pela Lei nº 13.431/2017, e anteriormente chamado de depoimento sem danos, é o procedimento de escuta realizada com o uso de técnicas não indutivas, através de intermediários (psicólogos ou assistentes sociais) que, em tese, teriam familiaridade em sua formação ou com treinamento específico, voltado aos aspectos cognitivos e sociais de crianças e adolescentes.

Nesse sentido, a criança tem consciência de que está sendo gravada e é livre para, de acordo com a condução do profissional, se abrir sobre a situação.

Corroborando com a determinação legal, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará normatizou, por meio do provimento 00015/2023, como deveria ser realizado a colheita de depoimento pessoal. No texto do provimento, ressalta que deve se preservar a ampla defesa e o contraditório sem, contudo, relativizar as garantias fundamentais do menor. Assim, a colheita do depoimento se dá por ocasião de Antecipação de Prova, mediante celebração de Acordo de Cooperação Técnica Institucional. Ainda, estabelece que é uma obrigatoriedade do Magistrado velar pela estrita observância do direito de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências a serem ouvidas.

Em sala adequada e com profissional devidamente capacitado pelo TJCE ou CNJ, a técnica aplicada nos processos de competência do Estado do Ceará utilização o PROTOCOLO BRASILEIRO DE ENTREVISTA FORENSE – PBEF, a ser realizado em dois estágios. Vejamos:

I – Estágio 1 – refere-se à construção do vínculo entre depoente e Entrevistador Forense, bem como, ao esclarecimento das regras e diretrizes para a condução da entrevista, sendo composto pelas seguintes fases:

a) Introdução;

b) Construção da empatia;

c) Regras básicas/Diretrizes;

d) Prática narrativa; e

e) Diálogos sobre a família.

II –  Estágio 2 – refere-se à parte substantiva, momento em que ocorre o relato sobre a situação de violência, sendo composto das seguintes fases:

 a) Transição;

b) Descrição narrativa;

c) Seguimento e detalhamento;

d) Interação com a sala de audiência ou sala de observação; e

e) Fechamento.

Ainda, considerando que o Magistrado deve estar em observância pelo direito da criança e do adolescente, caberá a ele determinar, mediante requisição do profissional capacitado, decidir pela presença do réu, dos pais da vítima ou de demais pessoas interessadas no processo.

Dessa maneira, a resolução determina que o procedimento inicial deve se dar somente com a intervenção do entrevistador forense, sem qualquer interrupção, e com perguntas baseadas unicamente no que a criança ou adolescente verbalizou, a fim de evitar sugestionabilidade. Fica vedado ao entrevistador também confrontar à vítima ou testemunha sobre qualquer contradição com versão anteriormente relatada em outro órgão do Sistema de Justiça ou Rede de Proteção, sob pena de causar prejuízo emocional, constrangimento e revitimização.

Assim, a instituição de colheita de depoimento especial vem como uma forma de garantir que, tanto em benefício da defesa quanto da acusação, sejam empregadas técnicas corretas da oitiva de crianças e adolescentes em clara situação de vulnerabilidade diante de crime sexual, sem a manipulação dos fatos.

Para a defesa, é muito importante ter discernimento do que é considerado relevante ao procedimento, a fim de evitar o constrangimento da vítima e reiterados indeferimentos de perguntas pelo Magistrado. Formular perguntas sem desqualificar o caráter da vítima, mas sim a coesão e coerência da sua narrativa dos fatos.

Em suma, o depoimento especial apenas trouxe mais uma variável para a oitiva de crianças e adolescentes a fim de tornar a sua fala o mais clara, objetiva e não manipulável possível dentro da persecução penal, garantindo a integridade pessoal da vítima e um julgamento sem subjetivismo da acusação para imputar uma culpa inexistente ao acusado inocente.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 21 ago. 2024.

Brasil. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 abr. 2017.

BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 nov. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14245.htm. Acesso em: 21 ago. 2024

Brasil. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Resolução nº 03/2019. Dispõe sobre a realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Fortaleza: TJCE, 2019.

BROWN, Deirdre A. et al. The NICHD investigative interview protocol: an analogue study. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 19, n. 4, p. 367, 2013, p. 370.

CONJUR. A questão de gênero no depoimento especial de adulto vítima de crime sexual. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-17/questao-genero-depoimento-especial-adulto-vitima-crime-sexual/. Acesso em: 21 ago. 2024.

EZAR, José Antônio Daltoé. A inquirição de crianças vítimas de abuso sexual em Juízo. In: DIAS, Maria Berenice. (coord.). Incesto e Alienação Parental: realidades que a justiça insiste em não ver. São Paulo: RT, 2010, p. 286.

MORENO DO AMARAL, Mariana; NORONHA DE ÁVILA, Gustavo. DEPOIMENTO ESPECIAL E VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL: UM OLHAR A PARTIR DA PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO. Revista Jurídica Cesumar: Mestrado, v. 22, n. 1, 2022.


[1] A criminologia, que inicialmente não tinha olhos para a figura da vítima, passou a estudar a pessoa sobre quem recai a conduta criminosa. Surgiu, assim, a vitimologia. Temos aqui uma considerável guinada. Essas pessoas que antes eram consideradas objeto ou meio de prova, passam a ser encaradas como sujeitos da persecução penal. São reconhecidas como pessoas dotadas de dignidade e que, como tal, merecem proteção e até mesmo acolhimento do sistema em um momento de extrema vulnerabilidade.

STALKING: COMPREENDENDO O CRIME E SUAS IMPLICAÇÕES LEGAIS NO BRASIL

O artigo 147-A do Código Penal brasileiro[i], que define o crime de stalking, marca um avanço significativo no ordenamento jurídico nacional ao abordar, de maneira detalhada e específica, a perseguição reiterada que ameaça a integridade física ou psicológica de uma pessoa, além de invadir ou perturbar sua liberdade ou privacidade.

Este tipo de comportamento, embora reconhecido internacionalmente como prejudicial e intrusivo, só foi formalmente tipificado no Brasil pela Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021[ii]. A introdução desse dispositivo legal reflete uma resposta legislativa necessária às crescentes preocupações com a segurança e o bem-estar das vítimas de stalking, proporcionando uma base legal sólida para a punição e prevenção desses atos nocivos. A pena estipulada de reclusão de 6 meses a 2 anos, além de multa, demonstra a seriedade com que o legislador encara esse tipo de violência, buscando garantir uma resposta adequada e proporcional aos danos causados por essa conduta reprovável.

O crime de stalking é considerado uma ação penal pública condicionada à representação da vítima. Em termos práticos, isso implica que a vítima precisa formalizar a denúncia para que o Ministério Público possa iniciar o processo contra o agressor. A prática demonstra que as vítimas enfrentam diversos desafios ao tentar denunciar tais casos, incluindo o medo de retaliação por parte do agressor e a carência de suporte adequado para lidar com a situação.

A legislação brasileira prevê uma série de medidas protetivas destinadas às vítimas de stalking. Entre essas medidas estão a restrição de contato e aproximação por parte do agressor. Essas proteções são fundamentais para garantir a segurança das vítimas e sublinham a importância de um sistema de apoio eficiente, capaz de oferecer o suporte necessário durante todo o processo judicial e além dele.

Todavia, não é qualquer comportamento que pode ser considerado stalking. Para que se enquadre nesse tipo penal, é necessário obedecer a uma série de requisitos, denominados elementos do crime. No caso do stalking, os elementos do crime são:

  • Ato de Perseguir Reiteradamente: A perseguição deve ser contínua, caracterizada por repetição. Não é suficiente um único ato isolado; deve haver uma série de ações que configurem uma perseguição persistente.
  • Meio de Perseguição: A perseguição pode ocorrer de diversas maneiras, incluindo presencialmente, por telefone, por meio de mensagens de texto, redes sociais, entre outros métodos.
  • Intenção de Ameaçar ou Perturbar: A ação deve ter a intenção clara de ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima, ou de invadir ou perturbar sua liberdade ou privacidade. Essa intenção pode se manifestar por meio de seguimentos na rua, envio constante de mensagens, ligações frequentes e outras formas de contato indesejado.

Em relação ao aumento de pena, a legislação prevê que a pena para o crime de stalking pode ser aumentada em até 50% em determinadas circunstâncias específicas, conforme estabelecido no § 1º do artigo 147-A:

  • Se o crime é cometido contra uma criança, adolescente ou idoso.
  • Se o crime é cometido contra uma mulher em razão de sua condição de sexo feminino, caracterizando-se como violência de gênero.
  • Se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas.
  • Se o crime é cometido com o uso de arma.

Essas circunstâncias agravantes refletem a gravidade do crime em contextos específicos e a necessidade de uma resposta penal mais severa para garantir a proteção das vítimas.

Portanto, conclui-se que o crime de stalking representa uma grave violação dos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade das vítimas. A legislação brasileira, ao tipificar e punir essa conduta, busca não apenas proteger as vítimas, mas também assegurar que os agressores sejam responsabilizados de forma adequada. No entanto, a efetividade dessa proteção legal depende, essencialmente, da disposição das vítimas em denunciar os agressores e da correta aplicação das medidas protetivas e punitivas previstas na lei. Esse arcabouço legal destaca a necessidade de um suporte contínuo e robusto às vítimas, visando garantir que a justiça seja plenamente alcançada.

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[i] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 25 jun. 2024.

[ii] BRASIL. Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14132.htm. Acesso em: 25 jun. 2024.

RECONHECIMENTO PESSOAL E FOTOGRÁFICO NO PROCESSO PENAL: DESAFIOS DA DEFESA FRENTE ÀS RESISTÊNCIAS NOS TRIBUNAIS E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ

  1. INTRODUÇÃO

O reconhecimento de pessoas, especialmente nas modalidades pessoal e fotográfica, tem um papel crucial na elucidação de crimes. No entanto, como demonstrado por pesquisa recente realizada pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1], essa ferramenta investigativa ainda enfrenta desafios significativos em sua aplicação prática, especialmente no que se refere à observância das formalidades previstas nos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal (CPP).

O levantamento, conduzido pelo gabinete do ministro Rogério Schietti Cruz, reforça a necessidade de atenção redobrada por parte das autoridades investigativas e judiciais no manejo dessas provas. Assim o é, pois, em 2023, o STJ revogou 377 prisões provisórias ou absolveu réus devido a falhas no reconhecimento como autores de crimes. Desses casos, 74,6% estavam relacionados a erros em reconhecimentos fotográficos.

No que diz respeito a previsão legal do ato, como qualquer procedimento investigatório apto a produzir provas contra o investigado, o reconhecimento, em ambas as modalidades, deve ser observadas as formalidades constantes no Código de Processo Penal, nos artigos 226 a 228. Vejamos

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

  Art. 227.  No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.

  Art. 228.  Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

Assim, quanto ao reconhecimento pessoal, o art. 226 disciplina mais detalhadamente como se deve proceder. No entanto, apesar do referido artigo determinar que se trata de reconhecimento pessoal, há também a possibilidade de reconhecimento fotográfico, quando observadas as mesmas determinações.

No que tange às exigências estabelecidas pelo Código de Processo Penal, pondera Aury Lopes Júnior que tais cuidados não podem ser considerados meras formalidades desprovidas de utilidade. Ao contrário, constituem “condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo diretamente na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país” (Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 490).

Nesse sentido, alerta o renomado processualista:

Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado (op. cit., 2017, p. 488, grifei).

m conclusão, é imprescindível reconhecer que, no processo penal, a forma não é um mero formalismo, mas uma garantia essencial à proteção dos direitos fundamentais. Como bem alerta a doutrina, o reconhecimento pessoal ou fotográfico constitui uma prova cuja produção deve observar rigorosamente as formalidades legais, sob pena de comprometer a credibilidade do sistema judiciário.

A prática de “reconhecimentos informais”, frequentemente admitida sob o manto do princípio do livre convencimento motivado, não apenas afronta o artigo 226 do Código de Processo Penal, mas também fragiliza a segurança jurídica e aumenta o risco de erros judiciários. Assim, o respeito aos ritos previstos em lei deve ser visto como um compromisso com a justiça e com a confiabilidade das decisões judiciais.

  • RECONHECIMENTO E O VALOR PROBATÓRIO: MUDANÇA DE PARADIGMA PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Até recentemente, o STJ entendia que o reconhecimento fotográfico ou presencial realizado na fase de inquérito policial poderia ser suficiente para embasar a autoria delitiva, mesmo quando não observadas as formalidades legais previstas no artigo 226 do CPP. Essa posição tratava os requisitos formais como “mera recomendação”, o que reduzia o controle sobre a qualidade do ato e abria espaço para questionamentos sobre a sua validade.

Contudo, essa visão foi substancialmente alterada pelo julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC, ocorrido em 27 de outubro de 2020, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz. Nesse marco decisório, a Sexta Turma do STJ reconheceu que o artigo 226 do CPP não configura mera recomendação, mas rito obrigatório, cuja inobservância torna o reconhecimento inválido e incapaz de sustentar uma condenação, ainda que posteriormente confirmado em juízo.

A decisão destacou que, diante dos riscos de erros associados ao reconhecimento de pessoas, é essencial cumprir rigorosamente as etapas previstas no CPP, incluindo a descrição prévia do suspeito pelo reconhecedor e a apresentação do investigado junto a outras pessoas com características semelhantes.

Decisões recentes do STF ilustram essa mudança do entendimento jurisprudencial. O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem reconhecido a necessidade de rigor no reconhecimento de pessoas. No julgamento do Habeas Corpus nº 172.606/SP, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, absolveu o réu em razão de a condenação ter sido embasada exclusivamente em reconhecimento fotográfico realizado na fase policial.

De igual modo, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 206.846/SP, concluído em 23 de fevereiro de 2022, a Segunda Turma do STF absolveu um réu preso com base em reconhecimento fotográfico, considerando a nulidade do ato e a ausência de outras provas que sustentassem a condenação.

  • DOS PROCEDIMENTOS A SEREM OBSERVADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL PARA O RECONHECIMENTO DE PESSOAS

DESCRIÇÃO DO INDIVÍDUO ANTERIOR AO RECONHECIMENTO: Ao prestar queixa junto à autoridade policial, a vítima ou testemunha deve primeiramente descrever o indivíduo. Por quê? Veja, ao partir diretamente para o reconhecimento pessoal ou fotográfico, a autoridade policial demonstra parcialidade diante da situação, dizendo implicitamente que, pelos seus conhecimentos de trabalho, já sabe quem poderia ter cometido tal crime e induzir a vítima a responder afirmativamente nessa situação. Portanto, a descrição prévia do indivíduo a ser reconhecido se faz necessária para demonstrar a imparcialidade da autoridade.

O INDIVÍDUO A SER RECONHECIDO SERÁ POSTO AO LADO DE DEMAIS COM CARACTERÍSTICAS SEMELHANTES: Mais uma medida para evitar a parcialidade da autoridade policial e a influência da vítima. Nesse caso, é importante que o indivíduo a ser reconhecido, após a descrição de suas características, seja posto ao lado de pessoas semelhantes. E isso não se restringe somente ao reconhecimento pessoal. No que tange ao reconhecimento fotográfico, este deve acontecer em sede de delegacia e por meio da apresentação do indivíduo entre diversos outros, para que não haja demonstração de “preferência” por parte da autoridade policial.

LAVRATURA DE TERMO PORMENORIZADO PELA AUTORIDADE POLICIAL: Constante no art. 226, IV do CPP, a norma processual se refere a necessidade de documentar o procedimento de identificação, necessitando de pelo menos duas testemunhas no momento, a fim de passar maior credibilidade ao ato.

Nesse interim, há de se questionar o porquê de tamanhos cuidados para a valoração de tal prova, e a resposta é bem simples: a memória humana é falha e pode ser facilmente manipulada, principalmente após eventos impactantes – como ser vítima de um crime.

Desse modo, é necessário observar que o principal ponto ao tratar de reconhecimento e a sua validade é a memória da vítima.

Observando isso, são necessários analisar 4 fatores que podem aumentar ou diminuir a confiabilidade da palavra da vítima no momento do reconhecimento, sejam estes:

  1. o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor (tempo de duração do evento criminoso);
  2. a gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento;
  3. as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos, aspectos geográficos etc.);
  4. a natureza do crime (com ou sem violência física, grau de violência psicológica etc.)

Todos esses fatores são importantes porque interferem diretamente na confiabilidade do reconhecimento da vítima, e é justamente por ser um procedimento sujeito a falhas que se faz tão importante que o disposto no art. 226 do CPP seja seguido a risca, a fim de minimizar erros e resguardar a integridade do indivíduo.

  • FALSAS MEMÓRIAS E RISCOS DE INJUSTIÇAS NO RECONHECIMENTO

Fato é que há diversos estudos, notadamente no campo da Psicologia moderna, que demonstram as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Os estudos indicam que a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível quando comparada à essência do evento. Ao mesmo tempo, as falsas memórias podem ser mais resistentes do que as verdadeiras, com relatos mais vívidos em testes de recordação (REYNA, V. F.; LLOYD, F. F. Theories of false memory in children and adults. Learning and Individual Differences, 9, 1997, 95-123).

Em abono a tal conclusão, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea aponta que as falsas memórias podem ser mais detalhadas do que as verdadeiras; são criadas por processos internos da própria pessoa ou por intermédio de informações implantadas pelo ambiente externo (Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Série Pensando o Direito, n. 59, Brasília: Ministério da Justiça, 2015, p. 23). Nesse contexto, vale mencionar a interessante conclusão de pesquisa realizada nos Estados Unidos, conduzida pelo professor Brandon Garrett, a qual apontou que a repetição de procedimentos de identificação não confere maior grau de confiabilidade a um reconhecimento.

Há, no entanto, correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva. Em amostra com 161 condenações de inocentes revertidas após a realização de exame de DNA, 57% dos casos contaram com mais de um procedimento de identificação: a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não tinha certeza quanto à autoria do delito e que passou a reconhecer o acusado somente depois do primeiro reconhecimento (Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).

Daí a razão pela qual as psicólogas Nancy K. Steblay e Jennifer E. Dysart recomendam não só que sejam evitados procedimentos de identificação que usam um mesmo suspeito como também que identificações produzidas por procedimentos repetidos não sejam consideradas tão confiáveis, justamente porque quanto mais vezes uma testemunha for solicitada a reconhecer uma mesma pessoa, mais provável ela desenvolver falsa memória a seu respeito (STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennier. E. Repeated eyewitness identification procedures with the same suspect. Journal of Applied Research in Memory and Cognition apud Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).

De todo modo, é válido afirmar que, seguindo o disposto no art. 226 do CPP, o reconhecimento pessoal é válido, mas não tem valor probante absoluto, precisa ser coerente com as demais provas colhidas em sede de juízo. Já o procedimento que não se atenta à norma processual, não será considerada válida e não poderá ser utilizada para justificar qualquer lastro de autoria.

Dessa forma, tendo com base no exame de processos julgados desde a data do acórdão proferido no HC n. 598.886/SC – 27/10/2020 – até 19/12/2021, período em que se contabilizaram pelo menos 28 acórdãos das duas Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte e 61 decisões monocráticas que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva, em razão de fundadas dúvidas sobre o reconhecimento feito em desconformidade com o modelo previsto no art. 226 do CPP (Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06022022- Reconhecimento-de-pessoas-um-campo-fertil-para-o-erro-judicial.aspx. Acesso em: fev. 2022). Cito, apenas a título de exemplo, alguns casos reproduzidos nesse levantamento:

No RHC n. 133.408/SC (DJe 18/12/2020), de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, não ficou demonstrado que o reconhecimento fotográfico realizado na fase do inquérito policial fora corroborado por outros elementos de prova amealhados no feito. Os acusados estavam com rostos parcialmente cobertos, sem que fosse possível ver totalmente suas faces, apenas detalhes de cor de pele, olhos, compleição física.

Já no HC n. 630.949/SP (DJe 29/3/2021), de minha relatoria, identificaram-se diversas irregularidades no auto de reconhecimento. Além disso, o ofendido deixou claro que foram apresentados outros indivíduos por foto, mas, para o reconhecimento pessoal, o acusado foi exibido sozinho. Previamente ao reconhecimento pessoal, foram mostradas à vítima várias fotos, entre as quais estaria, segundo a autoridade policial, a do indivíduo envolvido no roubo, sugestionando, portanto, que ao menos uma pessoa deveria ser reconhecida como indivíduo que participou do delito e buscando, na verdade, já uma préidentificação do autor do fato. Ou seja, a vítima não recebeu expressamente a opção de não apontar ninguém no reconhecimento pessoal que foi realizado depois da exibição das fotografias.

O AgRg no AREsp n. 1.722.914/DF (DJe 28/4/2021), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, trouxe hipótese na qual a vítima reconheceu o agravante apenas na fase investigativa, depois de lhe serem mostradas as fotos constantes de álbum fotográfico e porque o conheceria das redes sociais. O ofendido disse que reconheceu o acusado pela “touca” que usava no dia do delito, inclusive porque teria ele uma foto nas redes sociais em que portava a mesma peça de vestuário. Contudo, a vítima afirmou haver se lembrado do agravante em razão das características de seu rosto, que seriam bem peculiares (rosto seco e nariz achatado). Disse, ainda, que o reconheceu pelas tatuagens no braço; entretanto, ao mesmo tempo, afirmou que este estava com blusa de mangas compridas no momento da prática delitiva, o que se mostra incompatível, a menos que as instâncias ordinárias tivessem explicitado o motivo pelo qual seria possível esse reconhecimento, o que não ocorreu.

No HC n. 648.232/SP (DJe 21/5/2021), de relatoria do Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF1), o réu foi reconhecido através de uma viseira aberta de seu capacete, acessório que usava no momento do fato, destacando-se, da sentença absolutória, que a vítima, certamente dificultada pela visibilidade e pelo uso de capacete, não foi nada assertiva no reconhecimento pessoal em juízo.

No julgamento do HC n. 652.284/SC (DJe 3/5/2021), o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca registrou que “o reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível”. Na ocasião, reforçou a necessidade de seguir o procedimento estabelecido pelo CPP, haja vista a falibilidade de memória do ofendido.

  • RESOLUÇÃO N. 484/2022 DO CNJ: REJEIÇÃO DA TÉCNICA DO SHOW-UP E VALIDAÇÃO DO RECONHECIMENTO POR LINE-UP

A resolução determina que o reconhecimento pessoal deve ser feito preferencialmente com o alinhamento presencial de quatro pessoas. Em caso de impossibilidade, devem ser apresentadas quatro fotografias. Caso seja inviável seguir tais parâmetros, outros meios de prova devem ser priorizados.

Em todos os casos, devem ser observadas as formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, que exige que a pessoa a ser reconhecida seja descrita pela pessoa responsável pelo reconhecimento, bem como colocada ao lado de outras com quem tiver alguma semelhança.

Conforme a resolução, todo o procedimento deve ser gravado e disponibilizado às partes em caso de solicitação. É necessária investigação prévia para a colheita de indícios de participação da pessoa investigada no delito antes de submetê-la ao reconhecimento. Também é exigida a coleta de autodeclaração racial dos reconhecedores e dos investigados ou processados, para permitir à autoridade policial e ao juiz a adequada valoração da prova.

  • O alinhamento justo como condição necessária

A literatura tem apresentado que o método mais confiável para a apresentação do suspeito é o alinhamento (ou line-up) no qual o suspeito é apresentado com outros não suspeitos (geralmente cinco, mas a resolução do CNJ estabeleceu 4 como o número ideal).

O alinhamento deve ser justo, deve servir a proteger inocentes do risco de serem injustamente escolhidos. Por isso, há que se cuidar que o suspeito não se destaque dos demais, e todos os rostos presentes devem ser compatíveis com a descrição oferecida pela vítima/testemunha.

O alinhamento justo não se reduz a mero requisito numérico ou condição de pluralidade de sujeitos. A ausência de destaque, por assim dizer, é o que serve à proteção do inocente que porventura integre uma fila: o que se deve evitar é que outros fatores (ex.: roupa de presidiário, algemas, roupas de outros integrantes da fila que notoriamente são funcionários da Justiça…) alheios à recordação que a vítima/testemunha reteve do culpado contribuam à seleção.

  • Reconhecimento irregular – show up

A inerente sugestionabilidade do show up é seguida de um procedimento que serve a otimizar o falso reconhecimento. É dizer: a vítima/testemunha já viu a fotografia de um único suspeito e agora é chamada a apontá-lo junto com outros sujeitos. A familiaridade do rosto do suspeito, causada pelo reconhecimento anterior, desempenhará um papel crucial no falso reconhecimento.

show-up é o procedimento mais inadequado para o reconhecimento. Pesquisas têm apontado que, dentre todas as formas de reconhecimento, o show-up é a que possui maior risco de reconhecimento falso. Isto ocorre por que no show-up a vítima/testemunha deve comparar o rosto apresentado (suspeito), com o rosto visto na cena do crime. Assim, se o cérebro da testemunha julgar que o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o “reconhecimento” acontece. A ausência de comparação entre uma pluralidade de rostos semelhantes com o rosto do culpado incrementa as chances de que um inocente parecido preencha, sozinho, a lacuna que a vítima/testemunha tem ânsia por conseguir solucionar.

O álbum de suspeitos é procedimento inadequado, mas agora cabe dizê-lo em mais detalhe. Como o próprio nome indica, o álbum de suspeitos serve à exibição de vários rostos de pessoas suspeitas da prática de crimes, o que, por si só, já dá a entender que há grandes chances de que o autor do delito está presente.

Também é digna de nota a sobrecarga cognitiva que impõe à vítima/testemunha, a quem cabe observar grande quantidade de rostos ao mesmo tempo. Assim, o reconhecimento por álbum de suspeitos também é um procedimento inadequado, uma vez que pode prejudicar a capacidade de a testemunha reconhecer um autor corretamente, e aumenta o risco de um falso reconhecimento.

É imprescindível salientar que neste ponto há uma confusão em termos utilizados por atores do sistema de Justiça. O reconhecimento por show-up ou álbum de suspeitos não devem ser utilizados como sinônimos de reconhecimento fotográfico. Show-up consiste em se exibir apenas um rosto, o que pode ser feito por foto ou presencialmente. O álbum de suspeitos, por sua vez, faz um uso deturpado de fotografias a partir da exibição de múltiplos suspeitos de uma só vez. São práticas que devem ser abolidas porquanto facilitam falsos positivos, como já sinalizado. Mas o recurso a fotografias não precisa, e não deve, ser reduzido a isso.

Pelo contrário, considerando para o requisito do alinhamento justo, por exemplo, é notória a maior facilidade de se ter à mão cinco fotografias de sujeitos efetivamente semelhantes com o suspeito. As fotografias devem ser padronizadas, todas apresentando a mesma qualidade (o que em nada se confunde com as fotos das redes sociais).

Por outro lado, como esperar que cada delegacia de polícia conte com a presença de cinco pessoas semelhantes ao suspeito à disposição da realização de reconhecimentos? É simplesmente irreal supor que o desenho institucional da etapa investigatória possa depender da sorte de se ter disponíveis pessoas com as mesmas características físicas que a vítima/testemunha elencou como sendo as ostentadas pelo suspeito à espera da realização do reconhecimento, delegacias Brasil afora. É precisamente porque há que se assegurar um procedimento que proteja os inocentes do risco de serem falsamente apontados, que devemos considerar a alternativa do reconhecimento fotográfico.

  • SOBRE O DIREITO DO ACUSADO DE NÃO COMPARECER AO RECONHECIMENTO PESSOAL

Acerca da obrigatoriedade da presença do suspeito ao ato de reconhecimento, pode-se mencionar, a título exemplificativo, processo analisado pela corte italiana, datado de 1978[2]. O caso teve início após o envio de um ofício assinado por um juiz de Turim, em cujo conteúdo havia a determinação da realização do reconhecimento de um suspeito que residia em Roma. O juiz deprecado, em Roma, intimou o suspeito para o reconhecimento, tendo este se negado a comparecer. Entendendo não ser possível conduzi-lo coercitivamente, determinou, em face do princípio da não taxatividade dos meios de prova, sua identificação fotográfica. A divergência entre os magistrados começou quando o juiz deprecante determinou a nulidade do reconhecimento fotográfico sob o entendimento de que o suspeito tinha o dever de comparecer, sendo-lhe assegurado o direito de não participar ativamente do ato. Embora o caso não tenha sido julgado em razão da declaração de incompetência por parte do tribunal, o juiz de Turim considerou nulo o reconhecimento fotográfico sob o argumento de que não teria a mesma força probatória que o reconhecimento pessoal.

Atualmente, ainda existem autores que entendem que o suspeito é obrigado a comparecer ao ato de reconhecimento, pois, do contrário, sua recusa (a despeito dos direitos e garantias que lhe assistem durante o procedimento inquisitivo) impossibilitaria a continuidade das averiguações, comprometendo a eficácia das investigações. Fazem uma diferenciação entre cooperação ativa e passiva, além de afirmarem, no tocante ao inquérito policial, que, preponderando em sua plenitude o interesse individual da liberdade sobre o interesse público na persecução penal, esta “estaria fadada ao fracasso”, havendo o “engessamento das atividades investigatórias”. Para esses autores, apesar de haver necessidade da condução coercitiva do suspeito, não pode ser ele compelido a praticar comportamentos ativos, tais como abaixar-se, gesticular, sorrir ou fazer caretas, porquanto essas condutas afetariam seu direito à não autoincriminação. Legítima seria sua condução, durante o desenrolar do inquérito policial, para o local da identificação com a estrita finalidade de fazê-lo comparecer ao ato, sendo tratado como objeto de prova, não podendo opor-se à atividade estatal voltada à sua identificação pessoal, vez que não importaria, necessariamente, em autoincriminação.

Primeiramente, é preciso reconhecer que a distinção entre “cooperação ativa e passiva” é cosmética e deturpa o núcleo do direito de não produção de provas contra si mesmo. Em segundo lugar, é ilusória, na medida em que esvazia, de forma utilitarista, o direito fundamental do imputado ao obrigá-lo a participar do ritual probatório contra sua vontade, a pretexto de mera cooperação passiva. Em terceiro lugar, é um eufemismo chamar isso de “colaboração passiva”, quando na verdade é uma verdadeira coação, submissão ao poder.

Desse modo, o que se defende é que, respeitando o direito de não autoincriminação, cabe à acusação ou autoridade policial identificar outros meios de produção de provas referentes ao reconhecimento do investigado diferentes do reconhecimento pessoal presencial. O reconhecimento fotográfico seria uma saída para isso, mas sabendo que este não tem valor probante absoluto quanto a delimitar a autoria da conduta apurada.

  • CONCLUSÃO

O reconhecimento pessoal e fotográfico no processo penal, embora amplamente utilizado, exige rigorosa observância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal. O julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC pela Sexta Turma do STJ em 2020 consistiu em marco jurisprudencial disruptivo ao consolidar que tais formalidades não são meras recomendações, mas garantias indispensáveis à validade do ato, reconhecendo a nulidade do reconhecimento realizado em desacordo com os procedimentos legais.

Ainda assim, a prática forense demonstra que as resistências à aplicação da jurisprudência superior persistem nos Tribunais de Justiça, frequentemente ancoradas em interpretações equivocadas ou na negligência quanto à importância do rito obrigatório. Soma-se a isso o risco de falsas memórias e influências externas no ato de reconhecimento, que podem levar a graves erros judiciários, comprometendo a justiça e a segurança jurídica.

Nesse cenário, a Resolução nº 484/2022 do CNJ se apresenta como um avanço significativo ao rejeitar a técnica do show-up — reconhecimentos informais que induzem a erros — e ao valorizar o reconhecimento por line-up, que oferece maior controle e confiabilidade ao procedimento. Essa mudança visa assegurar um processo mais seguro e justo, alinhado com as melhores práticas internacionais. Além disso, a resolução reforça a necessidade de que a autoridade policial siga procedimentos rigorosos para evitar falsas memórias e garantir a integridade do reconhecimento.

Portanto, é essencial que a defesa continue a exigir o cumprimento das formalidades legais e que os tribunais se alinhem à jurisprudência do STJ, garantindo que o reconhecimento pessoal e fotográfico seja conduzido de forma técnica e imparcial, protegendo tanto a credibilidade do sistema de justiça quanto os direitos fundamentais dos acusados.


[1] Leia a íntegra da pesquisa produzida pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/Reconhecimento%20Formal%20-%202023.pdf

[2] LOPES, Mariângela Tomé. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 67-68

JUÍZO DE RETRATAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL: ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO NOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O juízo de retratação em agravo regimental é um mecanismo de grande relevância no contexto do processo judicial brasileiro, especialmente nos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Este instituto confere ao relator de um agravo regimental a possibilidade de reconsiderar sua decisão monocrática antes de submetê-la à apreciação de um órgão colegiado, como turma, seção ou plenário do tribunal. Trata-se de uma medida essencial para garantir eficiência e celeridade na prestação jurisdicional, permitindo a correção imediata de eventuais erros materiais, omissões ou interpretações equivocadas da lei, evitando que o processo seja encaminhado indevidamente para deliberação colegiada, o que implicaria desperdício de recursos e tempo.

BASES LEGISLATIVAS E FUNDAMENTAÇÃO NORMATIVA

A previsão normativa do agravo regimental encontra-se estabelecida nos regimentos internos dos tribunais superiores. No caso do STJ, o agravo regimental é disciplinado pelo art. 258 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (RISTJ), o qual dispõe sobre a competência do órgão colegiado para conhecer e julgar este recurso. O dispositivo destaca que o agravo regimental pode ser interposto sempre que a decisão do relator causar prejuízo a uma das partes, permitindo que a matéria seja apreciada pela turma, seção ou pelo plenário, conforme a competência regimental. Em complemento, o regimento especifica que o agravo não cabe contra decisões do relator que derem provimento a agravo de instrumento, determinando a subida de recurso especial não admitido.

Já no âmbito do STF, o agravo regimental é regulamentado pelo art. 317 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), que estabelece que tal recurso não possui efeito suspensivo e pode ser manejado contra decisões monocráticas que neguem seguimento aos recursos. O texto regimental é claro ao afirmar que o agravo seguirá o procedimento ordinário de análise previsto para decisões monocráticas, devendo ser avaliado em conformidade com os critérios de admissibilidade e mérito estabelecidos pelo tribunal.

É importante destacar que, embora o Código de Processo Civil (CPC) não contenha uma previsão expressa acerca do agravo regimental, ele menciona, em seu art. 1.021, a possibilidade de interposição de agravo interno contra decisões monocráticas de relatores, o que, na prática, é assimilado ao agravo regimental no âmbito dos tribunais superiores. O Código de Processo Penal (CPP), por sua vez, é omisso quanto a qualquer menção específica ao agravo regimental ou interno, o que não impede sua utilização, desde que respaldada pelos regimentos internos das cortes superiores.

OBJETIVOS E FINALIDADES DO AGRAVO REGIMENTAL

O agravo regimental desempenha funções essenciais na dinâmica processual dos tribunais superiores. Entre os seus principais objetivos, destacam-se:

  1. Revisão de Decisões Monocráticas: O agravo regimental visa, primordialmente, possibilitar a revisão de decisões que foram tomadas de forma individual por um relator, sem que tenham passado pela deliberação de um órgão colegiado. Este recurso permite que tais decisões sejam submetidas à análise de um grupo de magistrados (turma, câmara ou seção), assegurando uma revisão mais aprofundada, democrática e plural das matérias, garantindo maior transparência e legitimidade ao processo decisório.
  2. Correção de Eventuais Erros ou Injustiças: Outra função importante do agravo regimental é a correção de erros materiais, omissões, contradições ou má aplicação da lei que possam ter ocorrido na decisão monocrática. O recurso abre a possibilidade para que o relator, ao exercer o juízo de retratação, ou o colegiado, ao julgar o agravo, possa corrigir equívocos, evitando injustiças e garantindo que a decisão final esteja em conformidade com o ordenamento jurídico, os princípios constitucionais e a jurisprudência dominante.
  3. Assegurar o Direito ao Contraditório e à Ampla Defesa: O agravo regimental também é um importante instrumento de proteção dos direitos fundamentais das partes, especialmente no que tange ao contraditório e à ampla defesa. Ao permitir a revisão de uma decisão monocrática, o recurso garante que todas as alegações e provas apresentadas pelas partes sejam devidamente consideradas por um órgão colegiado, assegurando que a decisão seja proferida de maneira justa e equilibrada.
  4. Prevenção de Recursos para Instâncias Superiores: Ao facultar a revisão de decisões ainda no âmbito do próprio tribunal, o agravo regimental evita a interposição de outros recursos para instâncias superiores, promovendo a celeridade e a economia processual. Esse recurso, portanto, contribui para evitar o acúmulo de processos nos tribunais superiores, racionalizando o trabalho judiciário e aumentando a eficiência da prestação jurisdicional.

TRÂMITE DO AGRAVO REGIMENTAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O trâmite do agravo regimental varia de acordo com o tribunal e a natureza da decisão que se pretende impugnar. No STJ, o agravo regimental é geralmente julgado pela Turma ou pela Seção a que pertence o relator da decisão monocrática. Quando o agravo é interposto contra decisões que negam seguimento a recurso especial ou agravo em recurso especial, ele é julgado pela Turma correspondente. Em situações mais complexas, que envolvem questões de competência interna ou matérias de maior relevância, o julgamento poderá ser realizado pela Seção ou até mesmo pelo Plenário do tribunal.

No STF, o agravo regimental segue procedimento semelhante. Em geral, é julgado pela Turma, especialmente quando se trata de decisões monocráticas proferidas no âmbito de recursos extraordinários ou ações originárias de menor repercussão. No entanto, para temas de grande relevância ou repercussão geral, o agravo pode ser submetido diretamente ao Plenário, onde todos os ministros do STF participam do julgamento.

JUÍZO DE RETRATAÇÃO: DEFINIÇÃO E IMPORTÂNCIA

O juízo de retratação é um aspecto fundamental do agravo regimental, configurando-se como o poder conferido ao relator para reconsiderar sua própria decisão monocrática antes que ela seja submetida ao julgamento do órgão colegiado. Este mecanismo permite que o relator reveja e, se necessário, modifique sua decisão à luz de novos argumentos apresentados pela parte agravante ou de eventuais erros identificados no ato decisório original.

A importância do juízo de retratação reside em sua capacidade de promover a correção imediata de erros materiais, omissões ou interpretações equivocadas da lei, sem a necessidade de sobrecarregar o colegiado com questões que poderiam ser resolvidas de forma célere pelo próprio relator. Esta prática assegura uma economia processual significativa, reduzindo o tempo e os recursos gastos em julgamentos desnecessários, e concentrando os esforços do tribunal em questões que realmente demandam uma deliberação colegiada.

Ademais, o juízo de retratação contribui para a celeridade processual, ao permitir que o relator corrija possíveis equívocos imediatamente, evitando o prolongamento indevido do processo e assegurando uma resposta mais rápida e eficaz às partes envolvidas. Em última análise, o juízo de retratação reforça o princípio da eficiência, promovendo uma justiça mais célere, justa e transparente.

CASOS PRÁTICOS DE JUÍZO DE RETRATAÇÃO E AGRAVO REGIMENTAL

O uso do agravo regimental e do juízo de retratação pode ser ilustrado por casos práticos que demonstram sua relevância e eficácia. No julgamento do Habeas Corpus nº 865422 pelo STJ, por exemplo, a defesa do agravante pleiteou o redimensionamento da pena-base, afastamento da reincidência e exclusão das qualificadoras, com base na Súmula 241 do STJ. O relator, em decisão monocrática, indeferiu liminarmente o Habeas Corpus, alegando que o recurso havia sido impetrado contra um acórdão já transitado em julgado, o que configuraria uso indevido do Habeas Corpus como substitutivo de revisão criminal.

No entanto, a defesa argumentou que não houve trânsito em julgado do acórdão em relação ao agravante, uma vez que recursos ainda estavam pendentes de julgamento. Além disso, destacou-se a existência de flagrante ilegalidade na dosimetria da pena, uma vez que a mesma condenação foi usada tanto como circunstância judicial negativa quanto como agravante de reincidência, configurando “bis in idem” em violação à Súmula 241 do STJ.

Além desse caso, tem-se o AgRg em HC nº 894454, o qual trata de paciente que impetrou HC contra decisão que negou seguimento ao HC impetrado contra sentença condenatória que, mesmo ao reconhecer a menor participação do indivíduo e aplicar a fração de diminuição de pena, não permitiu que recorresse em liberdade sob fundamento no perigo da conduta dos demais corréus.

O primeiro HC impetrado no TJCE teve como fundamento a notória antecipação de pena do paciente, haja vista que a sentença não considerou os fatos novos – reconhecimento da menor participação – para avaliar a necessidade de manutenção da prisão preventiva, impedindo-o de recorrer em liberdade.

O segundo HC, impetrado já no STJ, explicou sobre a ausência de fundamentação da decisão que negou a liberdade provisória do paciente, se limitando a descrever a conduta dos demais corréus e ignorando por completo o princípio da individualização da pena. Argumento de ausência de fundamentação idônea e contemporânea para a manutenção da prisão preventiva. Em decisão monocrática, o Relator Rogério Schietti Cruz negou seguimento ao HC sob fundamento no art. 210 do RISTJ, SEM reconhecer a menor importância destacada na sentença condenatória de 1º grau

Todavia, após Agravo Regimental contra tal decisão monocrática, com o pleito de remessa para decisão colegiada ou retratação do Ministro, este proferiu nova decisão em juízo de retratação. Vejamos:

Tem razão a defesa. Embora a gravidade concreta dos crimes evidencie a periculosidade social de seus autores, em relação ao sentenciado, uma vez declarada sua participação diferenciada nos fatos (ele não participou da execução dos roubos), é suficiente a substituição da medida extrema por outras menos severas (art. 282 c/c o art. 319 do CPP), igualmente suficientes para evitar a reiteração delitiva.

Desa forma, concedeu a liberdade provisória do agravante por reconhecer veracidade nos argumentos da defesa.

Essas situações evidenciam a importância do juízo de retratação, permitindo que o relator reconsiderasse sua decisão à luz dos novos argumentos e elementos trazidos pela defesa, promovendo uma correção célere e eficiente, evitando o desgaste desnecessário de recursos judiciais e garantindo uma decisão justa e conforme aos parâmetros legais estabelecidos.

Dessa forma, o agravo regimental, junto com o juízo de retratação, desempenha um papel crucial na dinâmica dos tribunais superiores, permitindo a revisão de decisões monocráticas, a correção de erros e injustiças, e a promoção da celeridade e economia processual. Sua correta utilização é essencial para assegurar que as decisões judiciais sejam justas, transparentes e em conformidade com o ordenamento jurídico, reforçando os princípios fundamentais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.


CNJ DETERMINA QUE TJ/CE ADEQUE REGRAS CRIADAS SOBRE JUIZ DAS GARANTIAS: Portaria e Resolução do Tribunal devem ser ajustadas às novas diretrizes do CNJ para garantir direitos dos custodiados.

O CNJ, por meio do corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, determinou que o TJ/CE adeque suas normas sobre a competência para a realização de audiências de custódia a presos. A decisão foi tomada em resposta a um pedido de providências apresentado por advogados que questionaram a conformidade das normas locais com a resolução CNJ 562/24.

Os advogados alegaram que as disposições do TJ/CE, previstas na portaria 498/22 e na resolução 01/22, não estavam em conformidade com as diretrizes do CNJ, ao limitar a competência dos juízes responsáveis pelas audiências de custódia à análise de aspectos formais da prisão, sem a possibilidade de deliberar sobre a manutenção da prisão preventiva ou substituí-la por outras medidas cautelares.

Na decisão, o ministro Mauro Campbell Marques destacou que as normas do CNJ garantem a universalidade das audiências de custódia, abrangendo todas as modalidades prisionais, e que a competência para a condução dessas audiências deve ser atribuída ao juiz das garantias ou ao juiz plantonista.

A primeira questão apontada pelo corregedor foi a de que, nos normativos elaborados pelo TJ/CE, a competência para a realização das audiências de custódia é entregue aos juízes dos Núcleos de Custódia e de Inquéritos, sem fazer qualquer menção ao juiz das garantias ou ao juiz plantonista.

O normativo precisa ser corrigido no ponto, pois tais juízes integrantes dos Núcleos de Custódia e de Inquéritos somente poderão realizar as audiências de custódia se o forem simultaneamente juízes das garantias ou juízes plantonistas, como o exige a resolução CNJ 562/24.”

Entre outros pontos, o corregedor observou que é necessário que o normativo do TJ/CE estabeleça prazo para o encaminhamento da ata ao juiz competente que determinou a expedição da ordem de prisão e prazo para esse mesmo juiz decidir a respeito das demais questões levantadas na audiência de custódia as quais não puderam ser apreciadas anteriormente em razão da incompetência do juiz das garantias e do juiz do lugar em que ocorreu a prisão.

Com base nisso, o CNJ determinou que o TJ/CE adeque suas normas em conformidade com a resolução CNJ 213/15 e suas alterações.

O pedido foi formulado pelo escritório Oséas Rodrigues & Nogueira Advogados Associados, representado pelos advogados Oséas de Souza Rodrigues Filho, José Jonathan Gomes de Brito e Laura Karine Melo Dias.

Processo: 0003136-92.2024.2.00.0000.