Discussão Penal-Empresarial Sobre a Continuidade Delitiva Entre Apropriação Indébita Previdenciária e Sonegação de Contribuições Previdenciárias: STJ Leva Tema a Julgamento Repetitivo

O cenário penal empresarial brasileiro vivencia um momento de profunda e necessária reflexão sobre os limites da tipicidade e da dosimetria no âmbito dos crimes tributários e previdenciários. Recentemente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão paradigmática ao afetar, sob o rito dos recursos especiais repetitivos, a discussão acerca da possibilidade ou não de reconhecimento da continuidade delitiva entre os delitos de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal) e de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do Código Penal).

Essa significativa decisão foi motivada pela multiplicidade de processos que debatem se tais condutas — embora intrinsecamente relacionadas à mesma esfera de obrigações previdenciárias — seriam suficientes para configurar um crime continuado, com efeitos diretos e benéficos no cálculo da pena, ou se, ao contrário, devem ser tratadas como delitos distintos, submetidos à regra do concurso material, que, por sua natureza, impõe a soma das penas.

O Cerne da Controvérsia Jurídica

A controvérsia em questão, cuja repercussão se estende para além da esfera penal e atinge de forma significativa o ambiente econômico-empresarial, reside na análise aprofundada dos requisitos necessários para a aplicação do instituto do crime continuado, conforme minuciosamente previsto no artigo 71 do Código Penal. Este instituto, tradicionalmente interpretado sob a ótica de critérios como a unidade de desígnios (requisito subjetivo) e a similitude das condições de tempo, lugar, modo de execução e outras circunstâncias objetivas, tem como precípua finalidade atenuar a resposta penal quando condutas sucessivas se revelam, em sua essência, como desdobramentos de um mesmo contexto delitivo.

No entanto, a especificidade do debate atual gravita em torno de um questionamento central: a apropriação indébita previdenciária, caracterizada pela conduta de descontar da remuneração do empregado a contribuição previdenciária e não repassá-la à Previdência Social, e a sonegação de contribuição previdenciária, definida como a supressão ou redução de tributo mediante omissão, fraude ou falsidade, são, de fato, condutas da mesma espécie, aptas a se amoldar à figura do crime continuado?

Jurisprudência Consolidada: Crimes de Espécies Diversas

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao longo dos últimos anos, tem firmado uma linha jurisprudencial robusta e consistente no sentido de que, apesar de ambos os delitos (apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária) tutelam o mesmo bem jurídico (o interesse arrecadatório da Previdência Social), eles não podem ser considerados crimes da mesma espécie. Essa distinção fundamental se deve ao fato de que seus núcleos típicos descrevem condutas absolutamente distintas.

Conforme reiterados precedentes da Corte, a apropriação indébita previdenciária possui natureza jurídica de delito omissivo próprio, exigindo para sua configuração a conduta de não repassar à Previdência Social valores que já foram descontados da remuneração dos empregados. Por outro lado, a sonegação de contribuição previdenciária configura um crime comissivo, estruturado na realização de atos materiais que visam suprimir ou reduzir tributos, tais como a omissão de informações, a inserção de elementos inexatos em documentos, a falsificação ou a simulação.

Em razão dessa distinção substancial de condutas e núcleos típicos, a jurisprudência que se consolidou até então reconhece que esses delitos devem ser tratados na lógica do concurso material (art. 69 do Código Penal), em que as penas são aplicadas cumulativamente, vedando-se, consequentemente, o reconhecimento da continuidade delitiva.

Por que a Afetação como Tema Repetitivo?

A decisão de afetar o tema como recurso repetitivo evidencia, por parte do STJ, não apenas a inegável importância da tese jurídica em discussão, mas também seu amplo impacto sobre o sistema de justiça criminal e sobre o setor empresarial. Este último aspecto é particularmente relevante em um país cuja estrutura tributária complexa frequentemente gera litígios criminais fiscais.

Ao afetar o tema, a Corte busca, primordialmente, conferir uniformidade e segurança jurídica à aplicação do direito, evitando decisões conflitantes que poderiam gerar tratamentos desiguais a situações análogas. Além disso, a futura definição desse tema terá repercussão direta sobre a dosimetria das penas, a estratégia defensiva a ser adotada nos processos criminais tributários e, inclusive, sobre a possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal, que dependem, entre outros fatores, da análise da quantidade e da natureza dos delitos. A afetação garante uma orientação jurisprudencial vinculante, o que é crucial para a previsibilidade do direito penal.

O resultado deste julgamento possui relevância prática inegável para o universo corporativo e seus gestores. Caso o entendimento favorável à continuidade delitiva prevaleça, haverá um impacto direto na potencial redução das penas aplicáveis. Isso se dá porque o crime continuado permite a imposição de uma única pena, com um aumento proporcional, em vez da soma integral e potencialmente mais gravosa das penas.

Por outro lado, se for mantido o entendimento tradicional, que considera os delitos como de espécies diversas (e, portanto, em concurso material), haverá um agravamento do cenário punitivo, com o somatório de penas, além de reflexos no cálculo da prescrição, na análise da reincidência e na própria possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal ou transações penais. Tais acordos são cruciais para a mitigação de riscos criminais no ambiente empresarial.

O Limite Entre a Proteção da Ordem Previdenciária e a Repressão Desproporcional

Ainda que a proteção das finanças públicas e da ordem previdenciária constitua um objetivo legítimo e indiscutível do Estado, fundamental para a manutenção da coesão social e da capacidade de investimento público, é igualmente indispensável que a resposta penal a ilícitos nessa seara observe, com rigor inabalável, os princípios basilares de um direito penal democrático: a proporcionalidade, a fragmentariedade e a intervenção mínima. Estes preceitos, interligados e essenciais, atuam como verdadeiras balizas para o exercício do jus puniendi estatal, impedindo sua hipertrofia.

A questão central que emerge, portanto, é o potencial risco de que a imposição de penas cumulativas por condutas que, muitas vezes, decorrem de uma mesma realidade econômico-financeira — cenário comum em períodos de crises empresariais, em contextos de alta complexidade gerencial ou diante de dificuldades mercadológicas imprevistas — possa conduzir a respostas penais manifestamente desproporcionais. Tais condenações, ao invés de protegerem o interesse social que se busca tutelar, podem, paradoxalmente, prejudicá-lo de forma mais aguda, ao inviabilizar empresas inteiras, comprometer a subsistência de famílias e destruir carreiras de executivos e gestores. A falência de uma empresa, desencadeada por uma penalização excessiva, não só afeta empregos e a cadeia produtiva, mas também impede a regularização futura de débitos e a geração de riquezas.

É por essa razão que a análise deste tema crucial não pode se limitar a uma leitura estritamente gramatical dos tipos penais envolvidos. Tal abordagem, se isolada, tende a ignorar a complexidade das relações jurídicas e econômicas subjacentes. Ao invés disso, a interpretação deve ser realizada à luz da função teleológica do direito penal no Estado de Direito. Isso implica compreender que o direito penal é a ultima ratio, ou seja, o último recurso do Estado, devendo intervir somente quando as demais esferas do controle social e jurídico (como o direito administrativo e o tributário) se mostrarem insuficientes para a proteção dos bens jurídicos.

Nessa perspectiva teleológica, a repressão penal deve sempre visar à efetiva proteção do bem jurídico, sem, contudo, sacrificar outros valores constitucionais igualmente caros, como a livre iniciativa, a função social da empresa e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. Desse modo, a decisão sobre o concurso de crimes nesse âmbito exige uma ponderação cuidadosa entre a legítima necessidade de repressão à criminalidade previdenciária e a imperativa observância dos limites impostos por um sistema jurídico que se pretende justo e equilibrado, salvaguardando os direitos fundamentais dos cidadãos e das empresas afetadas.

O Direito Penal Econômico em Pauta

O julgamento deste tema pelo STJ transcende uma mera questão técnica de hermenêutica penal. Constitui, na verdade, um debate mais amplo sobre os próprios contornos e limites do Direito Penal Econômico no Brasil. A decisão que será firmada definirá até que ponto o sistema penal deve diferenciar, no plano da tipicidade e da dosimetria, condutas praticadas no âmbito da gestão empresarial que, embora formalmente distintas, estão muitas vezes inseridas no mesmo contexto de dificuldades econômicas, estratégias fiscais ou desafios operacionais.

Enquanto se aguarda o desfecho da tese que será firmada pela Terceira Seção, resta aos profissionais da advocacia criminal especializada — sobretudo aqueles que atuam no campo do direito penal econômico — acompanhar de perto o desenvolvimento do tema, preparar teses defensivas robustas e construir estratégias processuais alinhadas ao melhor interesse de seus clientes e à irrestrita proteção de seus direitos.

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Provas Digitais na Cooperação Internacional: O Entendimento do STJ e os Limites à Persecução Penal na Era Globalizada

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O avanço exponencial das tecnologias de comunicação e a consolidação de uma economia intrinsecamente globalizada têm remodelado de forma irreversível o cenário da criminalidade contemporânea. Hoje, delitos complexos como a lavagem de capitais, o tráfico internacional de drogas, as fraudes financeiras de grande escala, a corrupção transnacional e os crimes cibernéticos são, com frequência cada vez maior, perpetrados por meio de estruturas criminosas sofisticadas e organizações de alcance global. Essas redes se valem da internet, de plataformas criptografadas e de fluxos financeiros digitais para, em última análise, evadir-se da jurisdição territorial tradicional dos Estados.

Esse novo e desafiador paradigma criminal não apenas confronta os órgãos de persecução penal, mas, sobretudo, questiona a própria lógica dos sistemas processuais nacionais. Afinal, estes foram historicamente estruturados sobre os pilares da soberania estatal e da jurisdição territorial. Diante da fluidez dos dados e da transnacionalização dos elementos probatórios — muitos dos quais, aliás, sequer existem em meio físico, estando armazenados em nuvens ou servidores localizados em diferentes países —, o acesso a provas digitais, no exterior, tornou-se uma demanda imperativa para a efetividade da persecução penal no século XXI.

Nesse contexto, porém, esta nova realidade processual suscita questões jurídicas de altíssima complexidade: quais são os efetivos limites da validade das provas digitais obtidas no exterior? A licitude da prova deve ser aferida exclusivamente pela legislação brasileira ou pela do país de origem? E, ainda mais delicado, é admissível utilizar no Brasil dados obtidos sem prévia decisão judicial em outro país?

Foi precisamente nesse cenário de incertezas e desafios que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se debruçou, em recente julgamento, sobre uma questão de repercussão prática e teórica extremamente relevante. O caso analisado, destacado no Informativo nº 854 da Corte, discutia a validade, no processo penal brasileiro, de dados extraídos do aplicativo de comunicação criptografada SKY ECC. Tal plataforma, como é notório, tem sido amplamente utilizada por redes internacionais de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.

Os dados em questão foram compartilhados com as autoridades brasileiras a partir de um procedimento formal de cooperação jurídica internacional , tendo sido originalmente obtidos pela Justiça francesa, no âmbito de investigações conduzidas naquele país. A tese defensiva, nesse cenário, sustentava a ilicitude dos dados no Brasil, sob o argumento de que não teria sido comprovada, no país de origem, a existência de prévia autorização judicial específica para sua obtenção. No entender da defesa, isso configura violação às garantias processuais previstas no ordenamento jurídico brasileiro.

Essa alegação, todavia, foi categoricamente afastada pela Sexta Turma do STJ. A Corte firmou um entendimento alinhado tanto com os princípios do Direito Internacional Público, quanto com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Segundo o Tribunal, quando se trata de provas obtidas no âmbito da cooperação jurídica internacional, a aferição da licitude da prova deve ser realizada à luz da legislação vigente no país onde ela foi produzida. Em outras palavras, a competência para definir se houve ou não respeito às exigências processuais locais incumbe às autoridades francesas — e não à Justiça brasileira.

Esse raciocínio encontra respaldo direto e inequívoco no artigo 13 da LINDB. Tal dispositivo estabelece, com clareza, que a produção de prova sobre fatos ocorridos no exterior se rege pela lei do local onde ocorreram tais fatos. Esse preceito, por sua vez, reflete um princípio consolidado no direito internacional, segundo o qual cada Estado exerce soberania plena sobre os atos processuais realizados em seu território. Consequentemente, nenhum outro Estado pode interferir ou impor suas regras procedimentais à jurisdição estrangeira.

Ademais, essa orientação do STJ dialoga diretamente com os termos do Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal celebrado entre Brasil e França, promulgado pelo Decreto nº 3.324/1999. O tratado, em sua essência, estabelece que as partes se comprometem a prestar mútua assistência na obtenção e no intercâmbio de informações e provas, desde que os atos sejam praticados de acordo com a legislação do Estado requerido. No caso concreto, o Estado requerido foi a França.

Portanto, o STJ reafirmou que, uma vez que os dados foram compartilhados por meio dos canais formais de cooperação internacional , a análise sobre sua validade processual deve observar exclusivamente os parâmetros da lei francesa. O Judiciário brasileiro não detém competência para questionar os procedimentos adotados no estrangeiro , salvo se o conteúdo da prova ou sua forma de obtenção for flagrantemente incompatível com a ordem pública nacional, a soberania ou os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Brasileira.

Essa decisão possui enorme repercussão prática, especialmente no campo da persecução penal dos crimes econômicos e organizados. Isso porque consolida um entendimento que confere segurança jurídica à atuação conjunta entre autoridades de diferentes países no combate a delitos transnacionais. Concomitantemente, reforça um alerta essencial: a defesa técnica precisa estar cada vez mais preparada para atuar no controle de legalidade dos atos internacionais, na análise da cadeia de custódia digital transnacional e na fiscalização dos limites impostos pela ordem pública brasileira.

O Julgado que Redefine os Paradigmas da Prova Digital na Cooperação Internacional

O recente julgamento proferido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) representa um verdadeiro divisor de águas na compreensão dos limites e da validade das provas digitais produzidas no âmbito da cooperação jurídica internacional. Na essência do caso concreto, discutia-se a validade, no processo penal brasileiro, de dados extraídos do aplicativo criptografado SKY ECC. Tais dados foram utilizados para desmantelar complexas redes de tráfico internacional de drogas e lavagem de capitais. A tese defensiva, contudo, argumentava que as provas seriam ilícitas, uma vez que, segundo sua interpretação, não teria sido comprovada a prévia autorização judicial no país de origem – no caso, a França.

A defesa, em sua argumentação, sustentava que, na ausência de uma decisão judicial explícita autorizando a extração dos dados, esses elementos deveriam ser considerados ilícitos. Isso se daria à luz dos parâmetros do devido processo legal brasileiro, o qual impõe, como regra, a necessidade de controle jurisdicional prévio para medidas restritivas de direitos, mormente quando envolvem acesso a dados privados e comunicações pessoais. Tratava-se, pois, de uma tentativa de aplicação extraterritorial dos princípios e garantias processuais penais do Brasil sobre atos que foram integralmente praticados no exterior.

Contudo, ao enfrentar essa tese, a Sexta Turma do STJ firmou um posicionamento absolutamente alinhado aos princípios clássicos do direito internacional e às normas de direito interno que disciplinam a cooperação jurídica internacional. O tribunal reafirmou, de forma contundente, que, no contexto da colaboração entre Estados soberanos, a aferição da licitude, validade e regularidade das provas produzidas em território estrangeiro deve ser realizada exclusivamente segundo os critérios e procedimentos da legislação do próprio Estado onde ocorreu a coleta.

Esse entendimento não surge isoladamente, mas encontra amparo normativo explícito e fundamental no artigo 13 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe de maneira expressa:

“A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele
vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se.”

Portanto, na lógica adotada pelo STJ, desde que a extração dos dados — ou qualquer outro meio de obtenção de prova — tenha ocorrido em consonância com os requisitos da legislação francesa , e desde que essa prova tenha sido formalmente transmitida às autoridades brasileiras por meio dos instrumentos adequados de cooperação jurídica internacional, como prevê o Decreto nº 3.324/1999 (Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e França) , não cabe ao Poder Judiciário brasileiro revisitar, controlar ou validar os critérios processuais adotados no país de origem.

A decisão da Corte, por conseguinte, ressalta a centralidade do princípio da soberania dos Estados na arquitetura da cooperação internacional em matéria penal. Cada Estado possui plena autonomia para definir, segundo seu ordenamento jurídico interno, os requisitos e os procedimentos necessários à produção de provas dentro de seu território. Ao outro Estado, que recebe os elementos probatórios no contexto da cooperação, incumbe apenas verificar se a transmissão ocorreu de forma regular, através dos canais oficiais e respeitando os acordos bilaterais ou multilaterais existentes. Adicionalmente, deve-se verificar se o conteúdo da prova não viola a ordem pública, os direitos fundamentais ou a soberania nacional brasileira.

Essa diretriz se ancora não apenas no direito interno brasileiro, mas também nos princípios estruturantes do direito internacional público, notadamente na cláusula de respeito mútuo à soberania que informa todos os tratados e acordos de assistência mútua em matéria penal.

O próprio artigo 17 da LINDB complementa essa lógica ao prever que atos estrangeiros não produzirão efeitos no Brasil apenas se forem manifestamente contrários à ordem pública nacional — o que, evidentemente, não se confunde com uma mera divergência procedimental ou com a ausência de formalidades típicas do sistema jurídico brasileiro.

Ao afastar a tese defensiva, o STJ deixa claro que não cabe ao Judiciário brasileiro exigir que autoridades estrangeiras ajam segundo os ritos, garantias ou pressupostos próprios do processo penal brasileiro. A tentativa de impor critérios internos sobre atos praticados no exterior não apenas violaria a soberania do Estado estrangeiro, mas também comprometeria, de forma significativa, a eficácia dos instrumentos de cooperação internacional, os quais são fundamentais no combate à criminalidade transnacional.

Esse entendimento possui, portanto, dupla função: de um lado, assegura a eficácia da persecução penal no combate aos crimes de natureza transnacional, permitindo que provas obtidas legitimamente no exterior sejam plenamente utilizadas no processo penal brasileiro. De outro, reforça a necessidade de que esse uso seja sempre condicionado ao respeito à ordem pública brasileira, aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais, que funcionam como cláusulas de salvaguarda e controle, evitando que práticas incompatíveis com o Estado de Direito nacional sejam incorporadas automaticamente.

A decisão, portanto, não significa um cheque em branco para a utilização irrestrita de qualquer prova vinda do exterior. Ao contrário, reafirma a importância dos filtros normativos próprios do direito brasileiro — como a proteção à intimidade, à privacidade, à ampla defesa e ao contraditório —, mas delimita, com precisão, que o parâmetro de validade formal da prova é o ordenamento do país de origem, não o brasileiro.


Fundamentação Legal da Utilização de Provas Digitais na Cooperação Internacional: Limites, Parâmetros e Salvaguardas no Ordenamento Brasileiro


A crescente demanda por cooperação internacional na persecução penal de delitos transnacionais, impõe a necessidade de uma análise rigorosa dos fundamentos normativos que regem a utilização de provas obtidas no exterior, especialmente aquelas de natureza digital. A decisão recentemente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao enfrentar a controvérsia sobre a validade de dados extraídos do aplicativo criptografado SKY ECC, encontra respaldo sólido em três pilares normativos essenciais do ordenamento jurídico brasileiro: os artigos 13 e 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e o Decreto nº 3.324/1999, que promulga o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e França.

Artigo 13 da LINDB: O Princípio da Lex Loci na Produção da Prova

O artigo 13 da LINDB consagra, no ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da lex loci regit actum, segundo o qual a validade formal dos atos jurídicos — incluindo os atos de produção probatória — deve ser aferida segundo a legislação do país onde foram realizados. Aplicado ao contexto da cooperação internacional, esse dispositivo estabelece, e forma inequívoca, que “a prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se”.

Isso implica que não compete ao Judiciário brasileiro exigir que uma prova digital obtida na França, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país, observe os
requisitos procedimentais previstos na legislação processual penal brasileira, como a exigência de autorização judicial para determinadas medidas restritivas de direitos.
Contanto que a coleta tenha sido realizada de acordo com as normas processuais e materiais do país de origem, e tenha sido formalmente transmitida por meio dos canais de cooperação internacional, sua validade formal é reconhecida no Brasil.

Todavia, essa regra não opera de forma absoluta. O próprio artigo 13 da LINDB estabelece cláusulas de salvaguarda, determinando que não serão admitidas provas que contrariem a ordem pública, a soberania nacional ou os bons costumes. Tais expressões funcionam, na prática, como cláusulas abertas de controle, permitindo que o Estado brasileiro impeça a eficácia de atos processuais estrangeiros quando estes colidirem, frontalmente, com os princípios fundamentais da Constituição brasileira, como a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Artigo 17 da LINDB: A Ordem Pública Como Limite Material

Complementarmente, o artigo 17 da LINDB reforça essa lógica ao dispor que atos e sentenças estrangeiras não terão eficácia no Brasil quando ofenderem a ordem pública, a soberania nacional ou os bons costumes. Assim, embora o Brasil reconheça e valorize a soberania dos atos processuais estrangeiros, essa deferência não é irrestrita. Opera, portanto, como um sistema de duplo controle: de um lado, há respeito à legislação do país de origem da prova; de outro, há o dever de assegurar que essa prova não seja incompatível com os parâmetros constitucionais e com os princípios fundamentais do ordenamento brasileiro.

Essa cláusula de ordem pública possui conteúdo jurídico dinâmico e deve ser interpretada em estrita consonância com os princípios constitucionais, os tratados internacionais de direitos humanos e as garantias processuais asseguradas no Brasil. A título de exemplo, provas obtidas mediante tortura, interceptações não autorizadas que violem direitos fundamentais de forma absoluta, ou mediante práticas que atentem flagrantemente contra a dignidade humana, seriam, inequivocamente, vedadas.

Decreto nº 3.324/1999: A Cooperação Judicial Formalizada como Requisito Estrutural

O terceiro pilar normativo é o Decreto nº 3.324/1999 , que promulga o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e França. Este instrumento bilateral estabelece os procedimentos para solicitação, transmissão e utilização de provas no âmbito da cooperação penal entre os dois países.

Esse tratado internacional, com força normativa no Brasil, disciplina que as partes se comprometem a prestar assistência mútua na obtenção e transmissão de elementos de prova, desde que os atos sejam praticados segundo a legislação do Estado requerido. Além disso, o acordo define os formatos de solicitação (cartas rogatórias, auxílio direto, comissões rogatórias) e os limites dentro dos quais as autoridades podem atuar, tanto na coleta quanto no compartilhamento de dados.

O respeito às formalidades previstas no tratado é essencial para assegurar a legitimidade da prova perante o ordenamento brasileiro. Isso significa que não se admite o acesso informal ou extrajudicial a dados ou elementos de prova situados no exterior, sob pena de violação à soberania alheia e, consequentemente, de ilicitude da prova

Provas Digitais na Era Global: Onde Estão os Limites?

A crescente utilização de provas digitais obtidas no exterior no âmbito do processo penal brasileiro, especialmente em investigações de criminalidade transnacional, impõe uma série de cautelas jurídicas e técnicas que não podem ser negligenciadas pelos operadores do direito, em especial pela advocacia criminal. A busca pela efetividade na persecução penal não pode se sobrepor às garantias fundamentais que estruturam o devido processo legal, razão pela qual a incorporação desses elementos probatórios no processo brasileiro deve observar critérios rigorosos, tanto de ordem formal quanto material.

O primeiro aspecto essencial diz respeito à formalização rigorosa da cooperação internacional. Não há espaço, no regime jurídico brasileiro, para a admissão de provas obtidas por vias informais, clandestinas ou à margem dos instrumentos de cooperação jurídica internacional. A validade da prova depende, inexoravelmente, de sua obtenção e transmissão por meio dos canais oficiais, previstos em tratados bilaterais — como o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e França —, em convenções multilaterais ou mediante cartas rogatórias. Qualquer tentativa de acessar dados armazenados no exterior sem o devido respaldo dos mecanismos formais de cooperação configura violação à soberania do Estado estrangeiro e, consequentemente, resulta na ilicitude da prova.

Superado o requisito formal da cooperação, a análise se volta para a necessidade de preservação da cadeia de custódia digital. Este é um elemento indispensável para assegurar a integridade e a confiabilidade dos dados desde o momento de sua extração até sua efetiva utilização no processo penal brasileiro. No contexto das provas digitais, esse cuidado se torna ainda mais sensível, dado que a manipulação, a alteração ou a corrupção de arquivos eletrônicos pode ocorrer de forma imperceptível, comprometendo a autenticidade do conteúdo e gerando riscos irreparáveis à regularidade processual.

Igualmente imprescindível é a observância do acesso pleno e irrestrito da defesa aos elementos probatórios, em todas as suas dimensões. O princípio do contraditório, na perspectiva da paridade de armas, exige que a defesa tenha conhecimento integral não apenas do conteúdo da prova, mas também da sua origem, do contexto em que foi produzida e dos procedimentos técnicos adotados, inclusive no país de origem. A ausência de transparência quanto a esses aspectos configura grave violação ao devido processo legal, podendo comprometer a validade da prova e ensejar a sua exclusão do conjunto probatório.

Por fim, e não menos relevante, impõe-se a realização de um rigoroso controle de conformidade com a ordem pública brasileira. Embora o artigo 13 da LINDB determine que a validade formal da prova seja aferida à luz da legislação do país em que foi produzida, esse reconhecimento não é absoluto. É dever indeclinável do Poder Judiciário brasileiro — bem como da advocacia criminal — avaliar se a obtenção da prova, embora formalmente válida no país de origem, não viola princípios e garantias fundamentais consagrados pela Constituição brasileira, tais como a dignidade da pessoa humana, a proteção da intimidade, da vida privada, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Para os operadores do Direito, em especial para a advocacia criminal, é imprescindível acompanhar de perto essa evolução jurisprudencial. A atuação técnica exige domínio não apenas do direito penal e processual penal interno, mas também dos instrumentos de cooperação jurídica internacional, do direito internacional público, da proteção de dados e da cibersegurança.

A correta compreensão dos parâmetros que regem a produção e o uso de provas digitais no cenário global é fundamental para a construção de estratégias defensivas robustas, para a impugnação de elementos ilícitos, bem como para uma atuação ética e eficiente na persecução penal.

O entendimento firmado pelo STJ reflete um equilíbrio técnico-jurídico sofisticado: não cabe ao Judiciário brasileiro exigir que as provas digitais produzidas no exterior observem as regras de procedimento previstas no Código de Processual Penal brasileiro. A validade formal dessas provas decorre, precipuamente, de sua conformidade com o direito processual do país de origem.

Há, contudo, um limite claro e intransponível: a ordem pública brasileira. A prova só pode ser admitida no processo penal brasileiro se, além de produzida segundo os trâmites legais do país estrangeiro, não atentar contra princípios e garantias fundamentais tutelados pela Constituição Federal. Em síntese, o Brasil não é obrigado a aceitar como válida uma prova cuja obtenção, embora lícita no exterior, seria inaceitável sob a ótica de seu próprio Estado de Direito.

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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS: AVANÇO TECNOLÓGICO OU RISCO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS?

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Em 30 de junho de 2025, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria nº 961, um marco na regulamentação do uso de tecnologias, especialmente inteligência artificial (IA), em investigações criminais e inteligência de segurança pública no Brasil. Embora apresentada como um avanço na modernização das forças de segurança, a medida provoca profundas discussões jurídicas sobre seus impactos nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

O que Efetivamente Muda com a Portaria nº 961/2025?

A Portaria nº 961/2025 representa um marco normativo na incorporação de tecnologias digitais, especialmente a inteligência artificial, nas atividades de investigação criminal e inteligência de segurança pública no Brasil. Pela primeira vez, a normativa estabelece balizas claras, técnicas e jurídicas, para o uso dessas ferramentas sensíveis na persecução penal.

A essência da Portaria fundamenta-se em três eixos estruturantes, que dialogam com os desafios contemporâneos da segurança pública, sem negligenciar as salvaguardas constitucionais dos indivíduos:

  • Fortalecimento dos Mecanismos de Investigação e Inteligência: As forças de segurança passam a ter respaldo normativo para utilizar ferramentas avançadas de coleta, processamento e análise de dados em larga escala, monitoramento, rastreamento, cruzamento automatizado de informações e soluções baseadas em IA. O objetivo é otimizar as investigações, elevar a capacidade preditiva e aprimorar o combate à criminalidade, sobretudo contra organizações criminosas, crimes cibernéticos e lavagem de capitais.
  • Proteção Rigorosa dos Dados Pessoais: Refletindo a crescente preocupação com privacidade e autodeterminação informativa, a Portaria impõe restrições expressas à coleta, tratamento e compartilhamento de dados sensíveis. O acesso a dados sigilosos exige decisão judicial específica, com delimitação precisa de objeto, finalidade e período. Além disso, prevê a obrigação de descartar dados de terceiros não relacionados à investigação e qualquer informação obtida fora dos parâmetros autorizados, coibindo práticas de “fishing expedition”.
  • Definição de Parâmetros e Limites Éticos para a IA: Diferentemente do uso desregulado anterior, a Portaria condiciona o uso da IA ao estrito respeito aos princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade e prevenção de riscos. Isso inclui a vedação expressa ao reconhecimento facial remoto em tempo real em espaços públicos, exceto em hipóteses excepcionais e taxativamente previstas (flagrantes, busca de desaparecidos, cumprimento de ordens judiciais).

A Portaria possui ampla abrangência, aplicando-se às principais forças de segurança federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal Federal e Força Nacional de Segurança Pública), bem como às secretarias nacionais vinculadas ao Ministério da Justiça. Seu alcance se estende a órgãos estaduais, distritais e municipais que recebem recursos dos Fundos Nacionais de Segurança Pública e Penitenciário, além de entidades como o CADE e a ANPD, no que couber.

Assim, a Portaria nº 961/2025 não apenas legitima o uso de tecnologias no combate à criminalidade, mas também introduz uma nova camada de compliance institucional obrigatório na segurança pública, exigindo atuação alinhada às normas de proteção de dados, à legislação processual penal e aos princípios constitucionais do devido processo legal.

Principais Inovações da Portaria nº 961/2025

Ao regulamentar o uso de tecnologias em investigações criminais e inteligência de segurança pública, a Portaria nº 961/2025 introduz inovações normativas de grande relevância, buscando equilibrar o fortalecimento da persecução penal com os limites constitucionais que regem o devido processo legal, a privacidade e a proteção de dados pessoais.

Uma das inovações mais significativas é o estabelecimento de um controle rigoroso sobre o acesso a dados sigilosos. O acesso a informações sensíveis está condicionado à autorização judicial específica, devidamente fundamentada e delimitada, reforçando o papel do juiz das garantias processuais.

Corolário desse princípio é a determinação expressa de exclusão obrigatória de dados que não guardem pertinência direta com os fatos investigados, coibindo práticas investigativas abusivas como a “data fishing” ou “fishing expedition”, incompatíveis com o processo penal democrático.

Outro ponto sensível é a restrição severa do uso de reconhecimento facial remoto em tempo real em espaços públicos. A Portaria veda expressamente essa prática, salvo em situações excepcionalíssimas, como flagrante delito, busca de vítimas ou pessoas desaparecidas, ameaça iminente à vida, recaptura de foragidos ou cumprimento de mandados de prisão. Essa restrição responde a críticas sobre o alto potencial discriminatório e os riscos à privacidade dessa tecnologia.

Por fim, a proibição expressa do uso indiscriminado e não finalístico das tecnologias abrangidas pela Portaria é um avanço. Não se admite que órgãos de segurança pública utilizem ferramentas de extração, cruzamento ou análise de dados sem um objetivo investigativo claro, legítimo e juridicamente definido, coadunando-se com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade do Estado Constitucional de Direito.

Regras de Governança, Segurança e Transparência: Um Novo Paradigma na Gestão da Atividade Investigativa Digital

A Portaria nº 961/2025 não se limita a autorizar o uso de tecnologias; ela estabelece um robusto arcabouço de governança, segurança da informação e transparência, de observância obrigatória por todos os órgãos que operam com essas ferramentas sensíveis. O objetivo central é mitigar os riscos inerentes à manipulação de grandes volumes de dados pessoais e sensíveis, que, se mal manejados, podem gerar graves violações à privacidade e à integridade dos indivíduos.

  • Controle Rigoroso de Acesso: A regulamentação impõe mecanismos rígidos de controle de acesso a sistemas e bancos de dados, limitando a utilização a agentes públicos devidamente autorizados e autenticados (biometria, certificados digitais, autenticação multifator). Isso reduz drasticamente o risco de acessos não autorizados e usos desviados de informações sensíveis, conferindo rastreabilidade plena a cada operação.
  • Revisões Periódicas e Perfis de Usuários: A norma obriga os órgãos a realizarem revisões periódicas dos perfis de acesso, assegurando que apenas agentes estritamente vinculados às funções de investigação ou inteligência possuam as credenciais necessárias, conforme o princípio do mínimo privilégio.
  • Logs Obrigatórios e Auditoria Permanente: Todas as operações nos sistemas devem ser registradas em logs de acesso detalhados, contendo identificação do usuário, IP, data, hora e natureza da operação. A manutenção desses registros é crucial para a auditoria constante e a responsabilização dos agentes. A norma prevê ainda auditorias regulares, internas e externas, para avaliar conformidade e identificar falhas de segurança.
  • Planos de Contingência e Resposta a Incidentes: É obrigatório que os órgãos mantenham planos formais de contingência, recuperação de desastres e resposta a incidentes, capazes de restaurar a funcionalidade dos sistemas e a integridade dos dados em caso de falhas, ataques cibernéticos, vazamentos ou desastres. Isso eleva o padrão de governança cibernética do setor público aos protocolos internacionais.
  • Transparência nas Contratações e Controle Social: A Portaria impõe que todas as contratações de soluções tecnológicas sigam os princípios da publicidade, motivação e controle social. O cidadão tem o direito de acompanhar a aquisição e o uso dessas tecnologias, atuando como mecanismo de prevenção à corrupção, superfaturamento e adoção de tecnologias discriminatórias, garantindo que o Estado não utilize a vigilância digital para perseguição.

Inteligência Artificial no Processo Investigativo: Inovação Sob Vigilância Jurídica

A incorporação de ferramentas de inteligência artificial nas investigações criminais, regulamentada pela Portaria nº 961/2025, inaugura uma nova fronteira no debate sobre os limites éticos, operacionais e jurídicos do uso de tecnologias na persecução penal. Pela primeira vez no ordenamento brasileiro, um marco normativo impõe balizas claras ao uso da IA por órgãos de segurança pública, buscando compatibilizar a inovação tecnológica com os princípios constitucionais.

A Portaria deixa evidente que a adoção de soluções algorítmicas deve observar, de forma rigorosa, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e prevenção de riscos, vedando qualquer uso que extrapole essas balizas ou que potencialmente gere violações aos direitos fundamentais.

Nesse sentido, a normativa impõe que os resultados produzidos por sistemas de IA não sejam utilizados de forma automática ou acrítica, especialmente quando puderem impactar negativamente a vida, liberdade, integridade física, privacidade ou dignidade dos indivíduos. A revisão humana se torna imperativa, funcionando como um filtro de legalidade e razoabilidade, impedindo que decisões de natureza essencialmente jurídica e ética sejam terceirizadas aos algoritmos.

Além disso, a Portaria reconhece que certas aplicações da IA, como o reconhecimento facial em tempo real e à distância em espaços públicos, são intrinsecamente arriscadas e só podem ser empregadas em situações de excepcional gravidade e estritamente delimitadas, conforme já mencionado. Fora dessas hipóteses, o uso é formalmente vedado, em consonância com práticas internacionais e recomendações de organismos de direitos humanos.

Percebe-se que o legislador administrativo, ao editar a Portaria nº 961/2025, reconhece a insuficiência da tecnologia como critério único e autossuficiente de apuração da verdade material. A inferência algorítmica não substitui a análise crítica, a valoração jurídica e o controle jurisdicional das decisões no processo penal. Trata-se, assim, de uma reafirmação dos pilares do garantismo processual e da centralidade do controle jurídico-humanitário sobre os instrumentos de persecução penal.

Riscos Estruturais e Desafios Complexos: Um Alerta Necessário

Apesar dos avanços da regulamentação, persistem riscos estruturais significativos na utilização da inteligência artificial no âmbito penal, os quais não podem ser ignorados pela advocacia, Judiciário e sociedade civil:

  • Falsos Positivos e Vieses Algorítmicos: Especialmente em ferramentas de reconhecimento facial, cujos vieses já foram amplamente documentados, há risco de maior margem de erro na identificação de pessoas negras, periféricas e de grupos vulnerabilizados, perpetuando seletividade penal e discriminação estrutural.
  • Deslocamento do Controle Jurisdicional: A análise de grandes volumes de dados processados por IA pode escapar ao crivo do Judiciário, que frequentemente não detém o domínio técnico necessário para compreender a lógica e limitações das inferências algorítmicas. Essa assimetria informacional fragiliza o controle democrático sobre a atividade persecutória.
  • Expansão do Estado Vigilante: A disponibilidade de ferramentas de monitoramento e rastreamento em tempo real pode levar à banalização de medidas invasivas, transformando cidadãos, especialmente os mais vulneráveis, em objetos permanentes de suspeição e escrutínio estatal.
  • Vazamentos de Dados Sensíveis: Dados obtidos em investigações criminais (comunicações privadas, informações bancárias, geolocalização, histórico digital) são profundamente sensíveis. Se expostos ou utilizados ilicitamente, podem ser instrumentalizados para fraude, perseguição, chantagem e outras violações de direitos. A segurança da informação é, portanto, uma questão de proteção da dignidade humana no ambiente digital.

Diante deste novo paradigma, a advocacia criminal assume protagonismo absoluto na proteção dos direitos fundamentais. A atuação do advogado criminalista se expande para a análise crítica da cadeia de custódia digital, da legalidade na obtenção de dados, dos vícios procedimentais nas inferências algorítmicas e da conformidade das provas tecnológicas com as garantias constitucionais.

A Portaria nº 961/2025, ao mesmo tempo que avança na normatização do uso de tecnologias no combate ao crime, reforça a urgência de uma advocacia criminal tecnicamente preparada, combativa e comprometida com a defesa das liberdades individuais.

Sem controle jurídico efetivo, sem advocacia técnica e vigilante, não há tecnologia que justifique o sacrifício de garantias fundamentais.

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CONCURSO DE CRIMES NO STJ: DESAFIOS DA DOSIMETRIA E DA PROTEÇÃO DE GARANTIAS NO PROCESSO PENAL

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No intrincado universo do direito penal, a compreensão dos efeitos do concurso de crimes não se restringe a um mero exercício acadêmico ou teórico. Ao contrário, configura-se como uma questão de extrema e inegável relevância prática. Seus desdobramentos, por sua vez, impactam diretamente a liberdade individual, a necessária proporcionalidade da pena e, em última instância, a própria efetividade das garantias constitucionais do réu. 

Recentíssimos julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a esse respeito, oferecem uma visão atualizada e sofisticada sobre a aplicação dos institutos do concurso material, do concurso formal e da continuidade delitiva, bem como sobre os critérios que orientam sua precisa distinção, a cumulatividade de penas e suas repercussões na dosimetria penal.

O concurso de crimes, instituto fundamental regulado pelos artigos 69 a 71 do Código Penal, tem a precípua função de organizar a resposta penal quando um mesmo agente comete dois ou mais crimes. Tal multiplicidade pode ocorrer por intermédio de diversas condutas, por uma única ação que resulta em múltiplos ilícitos, ou, ainda, por práticas reiteradas em circunstâncias semelhantes.

🔍 Concurso Material, Concurso Formal e Continuidade Delitiva: Além da Mera Teoria

Embora os conceitos inerentes a cada modalidade estejam positivamente expressos no Código Penal, a delimitação precisa de cada uma delas revela-se um desafio jurídico complexo, que frequentemente exige a intervenção e a uniformização de entendimentos pelos tribunais superiores. Com efeito, o enquadramento do caso concreto em uma ou outra modalidade pode gerar uma diferença substancial na pena aplicada ao réu. É precisamente nesse ponto que se manifesta o potencial tensionamento entre o devido processo legal, o princípio da individualização da pena e a imperiosa necessidade de uma repressão eficaz à criminalidade.

  • O concurso material (art. 69 do CP), por definição, ocorre quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, que podem ser idênticos ou não. Nestas situações, as penas correspondentes a cada delito são somadas.
  • Em contraste, o concurso formal (art. 70 do CP) verifica-se quando uma única ação ou omissão do agente produz dois ou mais crimes. Distinguem-se, neste cenário, duas importantes possibilidades:
    • O concurso formal próprio ocorre quando os crimes resultam de uma única intenção (desígnio único). Aqui, aplica-se a pena do crime mais grave, aumentada em fração que varia de 1/6 a 1/2.
    • Já o concurso formal impróprio se caracteriza pela presença de desígnios autônomos do agente, ainda que a conduta seja única. Nesses casos, as penas se somam, de maneira análoga ao concurso material.
  • Por fim, a continuidade delitiva (art. 71 do CP) configura-se como um benefício legal. Sua aplicação é cabível quando, apesar de vários delitos da mesma espécie terem sido praticados, estes se deram em condições semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e com uma unidade de desígnios. Nessa hipótese, aplica-se a pena de apenas um dos crimes (ou a mais grave, se diversas), acrescida de um aumento proporcional à quantidade de infrações, dentro do limite de 1/6 a 2/3.

A Jurisprudência Atual do STJ: Critérios e Aplicações

O STJ, enquanto Corte Superior, tem desempenhado um papel fundamental na delimitação dos critérios aplicáveis a cada modalidade de concurso. Sua atuação visa, primordialmente, garantir a coerência interna do sistema penal e a salvaguarda dos princípios constitucionais que regem o processo e a pena.

  • Suspensão Condicional do Processo e Concurso de Crimes: O Tribunal consolidou, por meio da Súmula 243, o entendimento de que a suspensão condicional do processo (prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95) não é aplicável quando a pena mínima, seja pela soma no concurso material ou pela majoração no concurso formal/continuidade, excede um ano. Tal posicionamento reforça a necessidade de uma criteriologia objetiva, evitando distorções que poderiam banalizar o instituto ou gerar iniquidades em sua aplicação.
  • Autonomia de Tipos Penais e Concurso Material: Um dos exemplos mais elucidativos advém do julgamento do Tema 1.168. Nele, o STJ firmou que os crimes de posse (art. 241-B do ECA) e distribuição de pornografia infantil (art. 241-A do ECA) configuram condutas autônomas, passíveis de punição em concurso material. Isso se justifica porque tais ilícitos não se confundem nem se subsumem um ao outro. Essa decisão, portanto, reforça o rigor técnico na definição dos tipos penais, coibindo interpretações que pudessem mitigar indevidamente o rigor punitivo em matéria tão sensível.
  • Perdão Judicial e Concurso Formal: A Corte Superior também definiu que, mesmo no concurso formal, o perdão judicial não se estende automaticamente a todos os delitos. O reconhecimento desse benefício legal exige uma análise individualizada, sobretudo em casos como o do homicídio culposo no trânsito, em que o sofrimento psíquico do agente deve ter relação direta com a vítima específica para justificar a extinção da punibilidade.
  • Arma na Posse de Traficante: Crime Autônomo ou Majorante?: Outro ponto de grande relevância reside na definição de quando a posse ou porte ilegal de arma se comunica com o tráfico de drogas. O STJ, ao julgar o Tema 1.259, estabeleceu que, na ausência de prova de que a arma estava intrinsecamente vinculada à segurança da atividade de tráfico, os crimes devem ser apenados de forma autônoma, mediante concurso material. Por outro lado, quando comprovado esse vínculo, a arma funciona como majorante do tráfico, não configurando um segundo delito.
  • Latrocínio e Pluralidade de Vítimas: Crime Único ou Plural?: Recentemente, o Tribunal reviu seu entendimento sobre o crime de latrocínio, alinhando-se à jurisprudência do STF. No julgamento do AREsp 2.119.185, firmou-se que, havendo subtração de um só patrimônio, a pluralidade de vítimas da violência não gera múltiplos crimes de latrocínio, mas sim um crime único, afastando-se a aplicação do concurso formal impróprio.

 A Complexidade dos Limites: Quando a Linha é Tênue

Embora a jurisprudência do STJ se esforce para assegurar coerência na aplicação dos critérios, não se pode, contudo, ignorar os riscos latentes de decisões que ampliem excessivamente o poder punitivo do Estado. Questões como o reconhecimento de desígnios autônomos no concurso formal impróprio, frequentemente embasados em elementos subjetivos como a presunção de dolo eventual, abrem margem para interpretações expansivas e, por vezes, pouco seguras.

Essa problemática é nitidamente visível no julgamento do AREsp 2.521.343, que consolidou o entendimento de que o dolo eventual também permite caracterizar desígnios autônomos, ensejando o cúmulo de penas no concurso formal impróprio. Esta linha interpretativa, embora possa ser considerada juridicamente consistente em tese, na prática, reforça o endurecimento penal e exige extremo rigor na análise fática para evitar injustiças.

A Advocacia Penal Diante dos Desafios do Concurso de Crimes

O avanço e a complexidade da jurisprudência do STJ sobre o concurso de crimes revelam um cenário em que o domínio técnico aprofundado sobre a teoria geral do delito e a dogmática penal se torna absolutamente indispensável para a atuação da advocacia criminal. Mais do que nunca, o advogado criminalista precisa estar apto a:

  • Analisar, com precisão técnica, o correto enquadramento do concurso (material, formal ou continuidade) no caso concreto.
  • Debater e discutir a configuração ou não de desígnios autônomos, um elemento frequentemente subjetivo, mas de grande impacto na dosimetria.
  • Impugnar, de forma contundente, decisões que adotem critérios abusivos na dosimetria da pena, zelando pela proporcionalidade.
  • Fiscalizar, com rigor, o respeito à individualização da pena e aos limites constitucionais do jus puniendi.

Em suma, a correta compreensão e aplicação dos critérios atinentes ao concurso de crimes não apenas impactam diretamente o quantum da pena a ser imposta, mas, de maneira mais profunda, refletem o compromisso do processo penal com os princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da estrita legalidade. Este é um campo fértil para a atuação de uma defesa técnica e vigilante.

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