
Em 30 de junho de 2025, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou a Portaria nº 961, um marco na regulamentação do uso de tecnologias, especialmente inteligência artificial (IA), em investigações criminais e inteligência de segurança pública no Brasil. Embora apresentada como um avanço na modernização das forças de segurança, a medida provoca profundas discussões jurídicas sobre seus impactos nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
O que Efetivamente Muda com a Portaria nº 961/2025?
A Portaria nº 961/2025 representa um marco normativo na incorporação de tecnologias digitais, especialmente a inteligência artificial, nas atividades de investigação criminal e inteligência de segurança pública no Brasil. Pela primeira vez, a normativa estabelece balizas claras, técnicas e jurídicas, para o uso dessas ferramentas sensíveis na persecução penal.
A essência da Portaria fundamenta-se em três eixos estruturantes, que dialogam com os desafios contemporâneos da segurança pública, sem negligenciar as salvaguardas constitucionais dos indivíduos:
- Fortalecimento dos Mecanismos de Investigação e Inteligência: As forças de segurança passam a ter respaldo normativo para utilizar ferramentas avançadas de coleta, processamento e análise de dados em larga escala, monitoramento, rastreamento, cruzamento automatizado de informações e soluções baseadas em IA. O objetivo é otimizar as investigações, elevar a capacidade preditiva e aprimorar o combate à criminalidade, sobretudo contra organizações criminosas, crimes cibernéticos e lavagem de capitais.
- Proteção Rigorosa dos Dados Pessoais: Refletindo a crescente preocupação com privacidade e autodeterminação informativa, a Portaria impõe restrições expressas à coleta, tratamento e compartilhamento de dados sensíveis. O acesso a dados sigilosos exige decisão judicial específica, com delimitação precisa de objeto, finalidade e período. Além disso, prevê a obrigação de descartar dados de terceiros não relacionados à investigação e qualquer informação obtida fora dos parâmetros autorizados, coibindo práticas de “fishing expedition”.
- Definição de Parâmetros e Limites Éticos para a IA: Diferentemente do uso desregulado anterior, a Portaria condiciona o uso da IA ao estrito respeito aos princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade e prevenção de riscos. Isso inclui a vedação expressa ao reconhecimento facial remoto em tempo real em espaços públicos, exceto em hipóteses excepcionais e taxativamente previstas (flagrantes, busca de desaparecidos, cumprimento de ordens judiciais).
A Portaria possui ampla abrangência, aplicando-se às principais forças de segurança federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal Federal e Força Nacional de Segurança Pública), bem como às secretarias nacionais vinculadas ao Ministério da Justiça. Seu alcance se estende a órgãos estaduais, distritais e municipais que recebem recursos dos Fundos Nacionais de Segurança Pública e Penitenciário, além de entidades como o CADE e a ANPD, no que couber.
Assim, a Portaria nº 961/2025 não apenas legitima o uso de tecnologias no combate à criminalidade, mas também introduz uma nova camada de compliance institucional obrigatório na segurança pública, exigindo atuação alinhada às normas de proteção de dados, à legislação processual penal e aos princípios constitucionais do devido processo legal.
Principais Inovações da Portaria nº 961/2025
Ao regulamentar o uso de tecnologias em investigações criminais e inteligência de segurança pública, a Portaria nº 961/2025 introduz inovações normativas de grande relevância, buscando equilibrar o fortalecimento da persecução penal com os limites constitucionais que regem o devido processo legal, a privacidade e a proteção de dados pessoais.
Uma das inovações mais significativas é o estabelecimento de um controle rigoroso sobre o acesso a dados sigilosos. O acesso a informações sensíveis está condicionado à autorização judicial específica, devidamente fundamentada e delimitada, reforçando o papel do juiz das garantias processuais.
Corolário desse princípio é a determinação expressa de exclusão obrigatória de dados que não guardem pertinência direta com os fatos investigados, coibindo práticas investigativas abusivas como a “data fishing” ou “fishing expedition”, incompatíveis com o processo penal democrático.
Outro ponto sensível é a restrição severa do uso de reconhecimento facial remoto em tempo real em espaços públicos. A Portaria veda expressamente essa prática, salvo em situações excepcionalíssimas, como flagrante delito, busca de vítimas ou pessoas desaparecidas, ameaça iminente à vida, recaptura de foragidos ou cumprimento de mandados de prisão. Essa restrição responde a críticas sobre o alto potencial discriminatório e os riscos à privacidade dessa tecnologia.
Por fim, a proibição expressa do uso indiscriminado e não finalístico das tecnologias abrangidas pela Portaria é um avanço. Não se admite que órgãos de segurança pública utilizem ferramentas de extração, cruzamento ou análise de dados sem um objetivo investigativo claro, legítimo e juridicamente definido, coadunando-se com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade do Estado Constitucional de Direito.
Regras de Governança, Segurança e Transparência: Um Novo Paradigma na Gestão da Atividade Investigativa Digital
A Portaria nº 961/2025 não se limita a autorizar o uso de tecnologias; ela estabelece um robusto arcabouço de governança, segurança da informação e transparência, de observância obrigatória por todos os órgãos que operam com essas ferramentas sensíveis. O objetivo central é mitigar os riscos inerentes à manipulação de grandes volumes de dados pessoais e sensíveis, que, se mal manejados, podem gerar graves violações à privacidade e à integridade dos indivíduos.
- Controle Rigoroso de Acesso: A regulamentação impõe mecanismos rígidos de controle de acesso a sistemas e bancos de dados, limitando a utilização a agentes públicos devidamente autorizados e autenticados (biometria, certificados digitais, autenticação multifator). Isso reduz drasticamente o risco de acessos não autorizados e usos desviados de informações sensíveis, conferindo rastreabilidade plena a cada operação.
- Revisões Periódicas e Perfis de Usuários: A norma obriga os órgãos a realizarem revisões periódicas dos perfis de acesso, assegurando que apenas agentes estritamente vinculados às funções de investigação ou inteligência possuam as credenciais necessárias, conforme o princípio do mínimo privilégio.
- Logs Obrigatórios e Auditoria Permanente: Todas as operações nos sistemas devem ser registradas em logs de acesso detalhados, contendo identificação do usuário, IP, data, hora e natureza da operação. A manutenção desses registros é crucial para a auditoria constante e a responsabilização dos agentes. A norma prevê ainda auditorias regulares, internas e externas, para avaliar conformidade e identificar falhas de segurança.
- Planos de Contingência e Resposta a Incidentes: É obrigatório que os órgãos mantenham planos formais de contingência, recuperação de desastres e resposta a incidentes, capazes de restaurar a funcionalidade dos sistemas e a integridade dos dados em caso de falhas, ataques cibernéticos, vazamentos ou desastres. Isso eleva o padrão de governança cibernética do setor público aos protocolos internacionais.
- Transparência nas Contratações e Controle Social: A Portaria impõe que todas as contratações de soluções tecnológicas sigam os princípios da publicidade, motivação e controle social. O cidadão tem o direito de acompanhar a aquisição e o uso dessas tecnologias, atuando como mecanismo de prevenção à corrupção, superfaturamento e adoção de tecnologias discriminatórias, garantindo que o Estado não utilize a vigilância digital para perseguição.
Inteligência Artificial no Processo Investigativo: Inovação Sob Vigilância Jurídica
A incorporação de ferramentas de inteligência artificial nas investigações criminais, regulamentada pela Portaria nº 961/2025, inaugura uma nova fronteira no debate sobre os limites éticos, operacionais e jurídicos do uso de tecnologias na persecução penal. Pela primeira vez no ordenamento brasileiro, um marco normativo impõe balizas claras ao uso da IA por órgãos de segurança pública, buscando compatibilizar a inovação tecnológica com os princípios constitucionais.
A Portaria deixa evidente que a adoção de soluções algorítmicas deve observar, de forma rigorosa, os princípios da necessidade, adequação, proporcionalidade e prevenção de riscos, vedando qualquer uso que extrapole essas balizas ou que potencialmente gere violações aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a normativa impõe que os resultados produzidos por sistemas de IA não sejam utilizados de forma automática ou acrítica, especialmente quando puderem impactar negativamente a vida, liberdade, integridade física, privacidade ou dignidade dos indivíduos. A revisão humana se torna imperativa, funcionando como um filtro de legalidade e razoabilidade, impedindo que decisões de natureza essencialmente jurídica e ética sejam terceirizadas aos algoritmos.
Além disso, a Portaria reconhece que certas aplicações da IA, como o reconhecimento facial em tempo real e à distância em espaços públicos, são intrinsecamente arriscadas e só podem ser empregadas em situações de excepcional gravidade e estritamente delimitadas, conforme já mencionado. Fora dessas hipóteses, o uso é formalmente vedado, em consonância com práticas internacionais e recomendações de organismos de direitos humanos.
Percebe-se que o legislador administrativo, ao editar a Portaria nº 961/2025, reconhece a insuficiência da tecnologia como critério único e autossuficiente de apuração da verdade material. A inferência algorítmica não substitui a análise crítica, a valoração jurídica e o controle jurisdicional das decisões no processo penal. Trata-se, assim, de uma reafirmação dos pilares do garantismo processual e da centralidade do controle jurídico-humanitário sobre os instrumentos de persecução penal.
Riscos Estruturais e Desafios Complexos: Um Alerta Necessário
Apesar dos avanços da regulamentação, persistem riscos estruturais significativos na utilização da inteligência artificial no âmbito penal, os quais não podem ser ignorados pela advocacia, Judiciário e sociedade civil:
- Falsos Positivos e Vieses Algorítmicos: Especialmente em ferramentas de reconhecimento facial, cujos vieses já foram amplamente documentados, há risco de maior margem de erro na identificação de pessoas negras, periféricas e de grupos vulnerabilizados, perpetuando seletividade penal e discriminação estrutural.
- Deslocamento do Controle Jurisdicional: A análise de grandes volumes de dados processados por IA pode escapar ao crivo do Judiciário, que frequentemente não detém o domínio técnico necessário para compreender a lógica e limitações das inferências algorítmicas. Essa assimetria informacional fragiliza o controle democrático sobre a atividade persecutória.
- Expansão do Estado Vigilante: A disponibilidade de ferramentas de monitoramento e rastreamento em tempo real pode levar à banalização de medidas invasivas, transformando cidadãos, especialmente os mais vulneráveis, em objetos permanentes de suspeição e escrutínio estatal.
- Vazamentos de Dados Sensíveis: Dados obtidos em investigações criminais (comunicações privadas, informações bancárias, geolocalização, histórico digital) são profundamente sensíveis. Se expostos ou utilizados ilicitamente, podem ser instrumentalizados para fraude, perseguição, chantagem e outras violações de direitos. A segurança da informação é, portanto, uma questão de proteção da dignidade humana no ambiente digital.
Diante deste novo paradigma, a advocacia criminal assume protagonismo absoluto na proteção dos direitos fundamentais. A atuação do advogado criminalista se expande para a análise crítica da cadeia de custódia digital, da legalidade na obtenção de dados, dos vícios procedimentais nas inferências algorítmicas e da conformidade das provas tecnológicas com as garantias constitucionais.
A Portaria nº 961/2025, ao mesmo tempo que avança na normatização do uso de tecnologias no combate ao crime, reforça a urgência de uma advocacia criminal tecnicamente preparada, combativa e comprometida com a defesa das liberdades individuais.
Sem controle jurídico efetivo, sem advocacia técnica e vigilante, não há tecnologia que justifique o sacrifício de garantias fundamentais.
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