Discussão Penal-Empresarial Sobre a Continuidade Delitiva Entre Apropriação Indébita Previdenciária e Sonegação de Contribuições Previdenciárias: STJ Leva Tema a Julgamento Repetitivo

O cenário penal empresarial brasileiro vivencia um momento de profunda e necessária reflexão sobre os limites da tipicidade e da dosimetria no âmbito dos crimes tributários e previdenciários. Recentemente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão paradigmática ao afetar, sob o rito dos recursos especiais repetitivos, a discussão acerca da possibilidade ou não de reconhecimento da continuidade delitiva entre os delitos de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do Código Penal) e de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do Código Penal).

Essa significativa decisão foi motivada pela multiplicidade de processos que debatem se tais condutas — embora intrinsecamente relacionadas à mesma esfera de obrigações previdenciárias — seriam suficientes para configurar um crime continuado, com efeitos diretos e benéficos no cálculo da pena, ou se, ao contrário, devem ser tratadas como delitos distintos, submetidos à regra do concurso material, que, por sua natureza, impõe a soma das penas.

O Cerne da Controvérsia Jurídica

A controvérsia em questão, cuja repercussão se estende para além da esfera penal e atinge de forma significativa o ambiente econômico-empresarial, reside na análise aprofundada dos requisitos necessários para a aplicação do instituto do crime continuado, conforme minuciosamente previsto no artigo 71 do Código Penal. Este instituto, tradicionalmente interpretado sob a ótica de critérios como a unidade de desígnios (requisito subjetivo) e a similitude das condições de tempo, lugar, modo de execução e outras circunstâncias objetivas, tem como precípua finalidade atenuar a resposta penal quando condutas sucessivas se revelam, em sua essência, como desdobramentos de um mesmo contexto delitivo.

No entanto, a especificidade do debate atual gravita em torno de um questionamento central: a apropriação indébita previdenciária, caracterizada pela conduta de descontar da remuneração do empregado a contribuição previdenciária e não repassá-la à Previdência Social, e a sonegação de contribuição previdenciária, definida como a supressão ou redução de tributo mediante omissão, fraude ou falsidade, são, de fato, condutas da mesma espécie, aptas a se amoldar à figura do crime continuado?

Jurisprudência Consolidada: Crimes de Espécies Diversas

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao longo dos últimos anos, tem firmado uma linha jurisprudencial robusta e consistente no sentido de que, apesar de ambos os delitos (apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária) tutelam o mesmo bem jurídico (o interesse arrecadatório da Previdência Social), eles não podem ser considerados crimes da mesma espécie. Essa distinção fundamental se deve ao fato de que seus núcleos típicos descrevem condutas absolutamente distintas.

Conforme reiterados precedentes da Corte, a apropriação indébita previdenciária possui natureza jurídica de delito omissivo próprio, exigindo para sua configuração a conduta de não repassar à Previdência Social valores que já foram descontados da remuneração dos empregados. Por outro lado, a sonegação de contribuição previdenciária configura um crime comissivo, estruturado na realização de atos materiais que visam suprimir ou reduzir tributos, tais como a omissão de informações, a inserção de elementos inexatos em documentos, a falsificação ou a simulação.

Em razão dessa distinção substancial de condutas e núcleos típicos, a jurisprudência que se consolidou até então reconhece que esses delitos devem ser tratados na lógica do concurso material (art. 69 do Código Penal), em que as penas são aplicadas cumulativamente, vedando-se, consequentemente, o reconhecimento da continuidade delitiva.

Por que a Afetação como Tema Repetitivo?

A decisão de afetar o tema como recurso repetitivo evidencia, por parte do STJ, não apenas a inegável importância da tese jurídica em discussão, mas também seu amplo impacto sobre o sistema de justiça criminal e sobre o setor empresarial. Este último aspecto é particularmente relevante em um país cuja estrutura tributária complexa frequentemente gera litígios criminais fiscais.

Ao afetar o tema, a Corte busca, primordialmente, conferir uniformidade e segurança jurídica à aplicação do direito, evitando decisões conflitantes que poderiam gerar tratamentos desiguais a situações análogas. Além disso, a futura definição desse tema terá repercussão direta sobre a dosimetria das penas, a estratégia defensiva a ser adotada nos processos criminais tributários e, inclusive, sobre a possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal, que dependem, entre outros fatores, da análise da quantidade e da natureza dos delitos. A afetação garante uma orientação jurisprudencial vinculante, o que é crucial para a previsibilidade do direito penal.

O resultado deste julgamento possui relevância prática inegável para o universo corporativo e seus gestores. Caso o entendimento favorável à continuidade delitiva prevaleça, haverá um impacto direto na potencial redução das penas aplicáveis. Isso se dá porque o crime continuado permite a imposição de uma única pena, com um aumento proporcional, em vez da soma integral e potencialmente mais gravosa das penas.

Por outro lado, se for mantido o entendimento tradicional, que considera os delitos como de espécies diversas (e, portanto, em concurso material), haverá um agravamento do cenário punitivo, com o somatório de penas, além de reflexos no cálculo da prescrição, na análise da reincidência e na própria possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal ou transações penais. Tais acordos são cruciais para a mitigação de riscos criminais no ambiente empresarial.

O Limite Entre a Proteção da Ordem Previdenciária e a Repressão Desproporcional

Ainda que a proteção das finanças públicas e da ordem previdenciária constitua um objetivo legítimo e indiscutível do Estado, fundamental para a manutenção da coesão social e da capacidade de investimento público, é igualmente indispensável que a resposta penal a ilícitos nessa seara observe, com rigor inabalável, os princípios basilares de um direito penal democrático: a proporcionalidade, a fragmentariedade e a intervenção mínima. Estes preceitos, interligados e essenciais, atuam como verdadeiras balizas para o exercício do jus puniendi estatal, impedindo sua hipertrofia.

A questão central que emerge, portanto, é o potencial risco de que a imposição de penas cumulativas por condutas que, muitas vezes, decorrem de uma mesma realidade econômico-financeira — cenário comum em períodos de crises empresariais, em contextos de alta complexidade gerencial ou diante de dificuldades mercadológicas imprevistas — possa conduzir a respostas penais manifestamente desproporcionais. Tais condenações, ao invés de protegerem o interesse social que se busca tutelar, podem, paradoxalmente, prejudicá-lo de forma mais aguda, ao inviabilizar empresas inteiras, comprometer a subsistência de famílias e destruir carreiras de executivos e gestores. A falência de uma empresa, desencadeada por uma penalização excessiva, não só afeta empregos e a cadeia produtiva, mas também impede a regularização futura de débitos e a geração de riquezas.

É por essa razão que a análise deste tema crucial não pode se limitar a uma leitura estritamente gramatical dos tipos penais envolvidos. Tal abordagem, se isolada, tende a ignorar a complexidade das relações jurídicas e econômicas subjacentes. Ao invés disso, a interpretação deve ser realizada à luz da função teleológica do direito penal no Estado de Direito. Isso implica compreender que o direito penal é a ultima ratio, ou seja, o último recurso do Estado, devendo intervir somente quando as demais esferas do controle social e jurídico (como o direito administrativo e o tributário) se mostrarem insuficientes para a proteção dos bens jurídicos.

Nessa perspectiva teleológica, a repressão penal deve sempre visar à efetiva proteção do bem jurídico, sem, contudo, sacrificar outros valores constitucionais igualmente caros, como a livre iniciativa, a função social da empresa e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. Desse modo, a decisão sobre o concurso de crimes nesse âmbito exige uma ponderação cuidadosa entre a legítima necessidade de repressão à criminalidade previdenciária e a imperativa observância dos limites impostos por um sistema jurídico que se pretende justo e equilibrado, salvaguardando os direitos fundamentais dos cidadãos e das empresas afetadas.

O Direito Penal Econômico em Pauta

O julgamento deste tema pelo STJ transcende uma mera questão técnica de hermenêutica penal. Constitui, na verdade, um debate mais amplo sobre os próprios contornos e limites do Direito Penal Econômico no Brasil. A decisão que será firmada definirá até que ponto o sistema penal deve diferenciar, no plano da tipicidade e da dosimetria, condutas praticadas no âmbito da gestão empresarial que, embora formalmente distintas, estão muitas vezes inseridas no mesmo contexto de dificuldades econômicas, estratégias fiscais ou desafios operacionais.

Enquanto se aguarda o desfecho da tese que será firmada pela Terceira Seção, resta aos profissionais da advocacia criminal especializada — sobretudo aqueles que atuam no campo do direito penal econômico — acompanhar de perto o desenvolvimento do tema, preparar teses defensivas robustas e construir estratégias processuais alinhadas ao melhor interesse de seus clientes e à irrestrita proteção de seus direitos.

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