A CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL SOB A ÓTICA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro passou a reconhecer e se comprometer com a efetivação de um modelo jurídico democrático e preocupado com direitos e garantias fundamentais, prezando sempre pela liberdade do cidadão como indivíduo e como parte de um povo. Assim, em seu artigo 5º, elenca tais garantias fundamentais, destacando os direitos individuais, coletivos, sociais, políticos, de nacionalidade e garantias processuais.

Em meio a uma Constituição garantista e democrática, um dos principais pontos a serem destacados quando se fala sobre inviolabilidade da intimidade e garantias processuais é o direito à não autoincriminação, conforme o inciso LXIII do artigo supracitado, o qual decorre do direito ao silêncio.

Desse modo, é importante ter em mente qual o papel do Estado e a intenção da Carta Magna ao debatermos os aspectos legitimadores de uma confissão, especialmente quando esta ocorre em momento extrajudicial. Não é possível desvincular os aspectos constitucionais garantistas de qualquer ato processual, sobretudo quando se trata do cerceamento da liberdade de um indivíduo.

Ao abordar esse tema na legislação infraconstitucional, observa-se que o Código Penal Brasileiro traz, na redação do artigo 65, inciso III, alínea “d”, a possibilidade de atenuar a pena imposta ao réu que confesse espontaneamente a prática do crime que lhe foi imputado. Em complemento, o Código de Processo Penal dedicou o Capítulo IV para abordar a temática. Os artigos 197 e seguintes estabeleceram certos parâmetros, ainda que superficiais, para a valoração da confissão, sempre ressaltando o direito ao silêncio do acusado e a necessidade de valorar a prova da confissão com base em todo o arcabouço probatório contido no procedimento judicial.

No entanto, quando tal confissão ocorre ainda em fase extrajudicial, o Código de Ritos determina que, nos termos do art. 199, esta deve ser tomada por termo nos autos, observando o disposto no art. 195 quanto à assinatura do interrogado no referido termo. Ademais, em seu art. 200, o CPP estabelece que a confissão tomada em termos extrajudiciais deve ser confirmada em juízo.

Assim, é possível perceber que, ainda que haja certo esforço do legislador em garantir que a confissão seja tomada de maneira a respeitar os direitos e garantias fundamentais do acusado/interrogado, há espaço para muitas variáveis dentro da persecução penal e instrução capazes de influenciar na colheita da confissão, os quais devem ser devidamente ponderados para evitar excessos por parte do Estado.

De acordo com Aury Lopes Jr. 1, ao abordar uma confissão livre de vícios, é necessário que esteja presente seu caráter voluntário, em primeiro plano, de modo que a vontade do agente seja a de praticar o ato de confessar – daí se excluem quaisquer confissões colhidas mediante pressão física ou psicológica.

O professor também destaca o caráter suplementar da prova, demonstrando a superficialidade de uma condenação baseada unicamente em uma confissão, sem reflexo disso nas demais provas constantes no procedimento. Aury Lopes Jr. critica a dependência excessiva em confissões para fundamentar decisões judiciais.

Nesse viés, no 20 de junho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Agravo em Recurso Especial nº 2.123.334/MG2, relatado pelo ministro Ribeiro Dantas, ocasião na qual fixou quatro teses sobre a admissibilidade da confissão em âmbito penal, distinguindo entrevista, confissão extrajudicial/informal e confissão judicial/formal.

O caso concreto diz respeito a um indivíduo condenado por furto simples com base em uma confissão informal e extrajudicial, colhida pelos policiais no momento da prisão, bem como reconhecimento fotográfico do indivíduo mediante filmagens de câmera de segurança, pois a vítima não havia presenciado

a situação. Dois aspectos importantes para analisar a situação são I) a ausência de encontro do objeto e II) a ausência de juntada do vídeo utilizado para a identificação do acusado aos autos do processo.

Ao analisar os elementos trazidos pela defesa, o Ministro Relator, em uma aula de dignidade à pessoa humana, reconheceu o descaso que o Poder Judiciário dá às alegações de tortura diante das abordagens policiais. Em seu voto, o Ministro demonstrou que, ainda que haja lógica em não desconfiar da palavra de um policial diante de uma confissão – ora, por que um agente público, sem conhecer as vítimas ou os acusados pessoalmente, arquitetaria e manipularia provas para a condenação de um indivíduo? – a prática de tortura diante de abordagens policias é extremamente recorrente, causando prejuízos inestimáveis às vidas daqueles forçados a admitir atos nem sempre praticados.

Assim, trouxe uma reflexão sobre a diferença entre admissibilidade e valoração da prova colhida nas fases judiciais e extrajudiciais.

Para que seja admissível, a prova precisa ser dotada de um mínimo de segurança de modo a permitir que, a partir de seu exame, se chegue a alguma conclusão sólida sobre um fato ocorrido no mundo real. Se a prova, pelas deficiências de seu conteúdo ou de como foi arrecadada, não for capaz de fomentar o atingimento de um maior ou menor grau de corroboração de uma hipótese, o resultado é sua inadmissão, por irrelevância, nos termos do art. 400,

§ 1º, do CPP, mesmo que não seja nula ou ilícita.

Ao observar objetivamente a situação de análise, o Relator, ao delimitar os critérios de admissibilidade, entendeu não ser possível admitir como prova uma confissão não somente extrajudicial, mas também informal, ou seja, colhida fora dos moldes do art. 199 do CPP: sem qualquer comprovação documental de que tal fato realmente aconteceu.

Não há confiabilidade no depoimento dos policiais ao somente afirmar, em testemunho de ouvi dizer, que houve uma confissão. Mas, além disso, também não há qualquer garantia que a confissão registrada em termo de

interrogatório lavrado pelo delegado de polícia tenha sido colhida espontaneamente.

Dessa forma, além da falha de confiabilidade da confissão exclusivamente extrajudicial, considerando a insegurança sobre os métodos de colheita utilizados pela autoridade policial, é inconcebível a admissibilidade de uma prova que sequer segue o parâmetro estabelecido pelo Código de Processo Penal quanto à lavratura de termo oficial para comprovação documental.

Corrobora com isso o entendimento do professor e advogado Aury Lopes Jr3., vejamos:

“Considerável doutrina e jurisprudência acabaram por criar, a nosso juízo equivocadamente, uma falsa presunção: a de que os atos de investigação valem até prova em contrário. Essa presunção de veracidade gera efeitos contrários à própria natureza e razão de existir do IP, fulminando seu caráter instrumental e sumário. Também leva a que sejam admitidos no processo atos praticados em um procedimento de natureza administrativa, secreto, não contraditório e sem exercício de defesa. Antes da promulgação do atual CPP, alguns códigos estaduais – como o da Capital Federal, segundo aponta ESPÍNOLA FILHO – previam que o inquérito policial acompanharia a denúncia ou queixa, incorporando-se ao processo e ‘merecendo valor até prova em contrário’. Provavelmente está aqui o vício de origem dessa rançosa doutrina e jurisprudência que seguiu afirmando esse valor aos atos do IP, quando o CPP não mais o contemplava. Claro está que, se o legislador de 1941 quisesse conferir aos atos do IP esse valor probatório, teria feito de forma expressa, a exemplo da legislação anterior. Outro aspecto que reforça nosso entendimento é a natureza instrumental da investigação preliminar. Serve ela para – provisionalmente – reconstruir o fato e individualizar a conduta dos possíveis autores, permitindo assim o exercício e a admissão da ação penal. No plano probatório, o valor exaure-se com a admissão da denúncia. Servirá sim para indicar os elementos que permitam produzir a prova em juízo, isto é, para a articulação dos meios de prova. Uma testemunha ouvida no inquérito e que aportou informações úteis será articulada como meio de prova e, com a oitiva em juízo, produz uma prova. Em efeito, o inquérito filtra e aporta as fontes de informação úteis. Sua importância está em dizer quem deve ser ouvido, e não o que foi declarado. A declaração válida é a que se produz em juízo, e não a contida no inquérito, tanto que com a reforma de 2019/2020 esse tipo de prova não mais irá integrar os autos que serão remetidos para o juiz da instrução (lembrando que o art. 3º-C, § 3º, está suspenso pela decisão do Min. FUX). Em síntese, o CPP não atribui nenhuma presunção de veracidade aos atos do IP. Todo o contrário, atendendo a sua natureza jurídica e estrutura, esses atos praticados e os elementos obtidos na fase pré- processual servem para justificar o recebimento ou não da acusação. É patente a função endoprocedimental dos atos de investigação. Na sentença, só podem ser valorados os atos praticados no curso do

processo penal, com plena observância de todas as garantias” (2021, p. 73).

Portanto, como alternativa à questão de confiabilidade da prova suscitada, o Ministro Relator estabeleceu como exigências para a admissibilidade da confissão extrajudicial: (I) o ato deverá ser formal, ou seja, com termo lavrado de

interrogatório e (II) realizado dentro de um estabelecimento estatal oficial.

Atendidos esses requisitos, a confissão será admissível, podendo integrar os elementos de informação do inquérito; se descumprido algum deles, a consequência é a inadmissibilidade da confissão.

O segundo grupo de normas refere-se ao momento crucial do processo judicial: aquele em que as provas são finalmente valoradas, determinando quais hipóteses apresentadas pelas partes são consideradas provadas. Sobre esse ponto específico, a legislação brasileira nos diz pouquíssimo, limitando-se a instituir basicamente três regras gerais:

  1. a adesão ao sistema de livre apreciação da prova, na forma do art. 155 do CPP;
  2. a distribuição dos ônus da prova, no art. 156 do CPP;
  3. a garantia de motivação das decisões judiciais, prevista no art. 93, IX, da CR/1988 e adensada em dispositivos legais esparsos, como os arts. 315, § 2º, do CPP e 489, § 1º, do CPC.

Quando se fala de livre apreciação da prova, pode-se ter a falsa ideia de que “qualquer prova” deve ser apreciada subjetivamente pelo Magistrado, aceitando qualquer justificativa e fundamentação para sua valoração nos moldes da vontade pessoal do julgador. No entanto, não devemos nos ater a uma visão tão simplória do texto legal. O livre convencimento se dá de maneira dar ao Magistrado o poder de identificar pressuposto indispensável da garantia do ônus – ou, pelo menos, da necessidade – da prova.

Outrossim, a necessidade de fundamentar as decisões judiciais transparece ainda mais a urgência de figurar a confissão como um mero meio de prova, e não como uma evidência absoluta do fato.

Nesse sentido, o Ministro suscita que, apesar de lícita, uma prova, ainda que seja a confissão, ainda é apenas uma prova e deve ser valorada corretamente de acordo com a sua influência nos fatos e com a coerência com as demais informações constantes no caderno processual.

Mas, afinal, quais as implicações técnicas dessa necessidade de fundamentação e análise do julgador na valoração das provas colhidas, ainda mais se tratando de uma confissão? Observe que aqui não se vara qualquer diferenciação de confissão extrajudicial e judicial.

Considerando o caso concreto apresentado, tem-se clara situação de tortura sofrida pelo acusado por parte dos policiais no momento da abordagem – coincidentemente, o mesmo momento da confissão. Assim, o Ministro Relator, ao se aprofundar na atuação policial violenta e seus reflexos nos quantitativos de confissões proferidas com base em estudos realizados por todo o mundo, demonstrou a fragilidade e influência dos meios coercitivos para a incriminação ilegal de indivíduos, resultando em um encarceramento em massa completamente deslegitimado pela Constituição.

De acordo com o Ministro, “em relação à motivação do réu para confessar falsamente, para além da resposta mais óbvia (a tortura), há situações mais sutis que o sistema penal brasileiro também não está habituado a averiguar em maiores detalhes. Como regra, pessoas confessam porque acreditam que os ganhos de curto prazo que obterão com a confissão (a interrupção de um interrogatório exaustivo ou agonizante, a expectativa de um perdão judicial) serão maiores do que os prejuízos dela decorrentes. Encontram-se nessa categoria as pessoas mais jovens, desesperadas, sem nenhuma experiência jurídica, com alguma deficiência mental – mesmo que esta não se enquadre no vetusto e inadequado conceito de insanidade (art. 149 do CPP) ou impacte sua imputabilidade (art. 26 do CP) – e, de modo geral, tendentes a agradar figuras de autoridade (SULLIVAN; VAIL; ANDERSON III, 2008, p. 31).4

Alguns comportamentos adotados pela polícia em interrogatórios buscam explorar essas vulnerabilidades e, assim, aumentam o risco de obtenção de uma condenação injusta, como demonstram estudos na Alemanha e na Áustria sobre o tema.”

Dessa maneira, tendo em vista os diversos motivos que podem influenciar no descrédito de uma confissão, ainda que se tenha colhido de maneira formalmente legítima – em termo lavrado e em estabelecimento de repartição pública –, é necessário que o julgador tenha um olhar mais aguçado para a valoração desta prova em relação aos demais elementos probatórios existentes no processo, ou, ainda, a ausência deles.

Apesar do STJ se valer de sua força jurisprudencial para impedir a incorreta aplicação do artigo 155 do CPP quanto a fundamentação exclusiva de uma sentença condenatória em provas colhidas em fase inquisitorial, garantindo, minimamente, a ampla defesa e o contraditório na esperança de, assim, obter provas não viciadas, ainda é muita ingenuidade considerar como absoluta uma confissão que não é coerente com os demais elementos processuais.

Nesse viés, se a ouvida do réu deve ser repetida em juízo no momento do interrogatório, e considerando o caráter retratável da confissão, não há nenhum sentido jurídico em permitir que a confissão extrajudicial seja valorada pelo juiz na sentença como um dos elementos justificadores da condenação. Chega-se a essa conclusão pela interpretação conjunta dos arts. 155, 185, 200 e 386 do CPP, os quais desenham um sistema bastante coerente: se é prova que se exige para a condenação, e prova é somente aquela produzida em juízo, conclui-se que, diante de duas confissões – uma judicial e outra extrajudicial –, apenas aquela colhida no interrogatório judicial é que pode ser valorada no processo penal.5

Assim, concluiu o Ministro que a eficácia probatória da confissão extrajudicial se limita somente ao trabalho das autoridades policiais e acusadoras em buscar outros elementos, a partir do relato do investigado, que comprovem a tese acusatória, mas não podendo ser utilizada como prova judicial.

Em extensão a tal posicionamento, o Ministro Ribeiro Dantas também explicou o conceito de desertos probatórios ao mencionar a fragilidade das provas trazidas pela acusação, de maneira a instigar o pensamento de considerar a confissão apenas mais uma prova a ser colhida judicialmente, não um elemento definitivo para a condenação do indivíduo.

Além de dever ser colhida mediante os princípios legais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, a confissão judicial deve ser valorada proporcionalmente à coerência com as demais provas acostadas pela acusação6.

Dessa forma, a 3º Seção do STJ firmou a seguinte tese:

  1. A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho

do policial que a colheu).

  1. A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao Ministério Público possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória.
  2. A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do artigo 197 do CPP.
  3. Ainda que sejam eventualmente descumpridos seus requisitos de validade ou admissibilidade, qualquer tipo de confissão (judicial ou extrajudicial, retratada ou não) confere ao réu o direito à atenuante respectiva (artigo 65, III, “d”, do CP) em caso de condenação, mesmo que o juízo sentenciante não utilize a confissão como um dos fundamentos da sentença. Orientação adotada pela Quinta Turma no julgamento do REsp 1.972.098/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, em 14/6/2022, e seguida na 5ª e na 6ª Turmas desde então.

Por fim, em relação à modulação dos efeitos das teses firmadas no julgamento do AREsp 2.123.334, determinou-se que essa se desse de maneira temporal com incidência a partir do primeiro dia após a publicação do acórdão no DJe, o que ocorreu aos 02 de julho de 2024, em observância à segurança jurídica resguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, nos termos do artigo 927, § 3º, do CPC. Na prática, vai impedir que milhares de Habeas Corpus cheguem ao tribunal para anular condenações anteriores.

Dessa maneira, é possível observar o tamanho avanço que o Poder Judiciário deu ao determinar a aplicação de tais medidas, a fim de impedir

diversas condenações baseadas em elementos frágeis e manipulados, além de dar um olhar mais humano e digno às vítimas de tortura policial, tornando explícito um problema muito além de recorrente na segurança pública brasileira.


1 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022.

2 AREsp n. 2.123.334/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 20/6/2024, DJe de 2/7/2024

3 LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

44 SULLIVAN, Thomas; VAIL, Andrew; ANDERSON III, Howard. The case for recording police interrogations. Litigation, v. 34, n. 3, 2008.

5 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro; MOTTA, Thiago de Lucena. Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 9, n. 1, 2023.6 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

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