PRESCRIÇÃO E JUSTIÇA: COMO OS MARCOS INTERRUPTIVOS IMPACTAM OS PROCESSOS DE COMPETÊNCIA DO JÚRI E A EXECUÇÃO PENAL

A prescrição penal é um instrumento essencial para assegurar a proteção dos direitos individuais e garantir a segurança jurídica no âmbito do direito penal brasileiro. Trata-se de um limite temporal imposto ao Estado para o exercício do seu direito de punir, refletindo a necessidade de equilibrar os interesses públicos e privados. Nos processos de execução de pena, especialmente no âmbito do Tribunal do Júri, a aplicação dos marcos interruptivos da prescrição desempenha um papel crucial na determinação do tempo máximo para a punição de um crime. A análise desses marcos revela como o sistema penal busca regular, de maneira justa e eficaz, o prazo para a execução de uma sentença, evitando a perpetuação indefinida do processo e assegurando o respeito às garantias constitucionais do apenado.

Quando esse lapso temporal é ultrapassado sem que a ação penal tenha sido efetivamente iniciada ou sem que a condenação tenha transitado em julgado, ou seja, sem que a decisão condenatória tenha se tornado definitiva e imutável, ocorre a extinção da pretensão punitiva do Estado. Isso significa que o Estado perde o direito de impor sanções penais ao acusado, consolidando-se, assim, uma proteção jurídica ao indivíduo contra a eternização dos processos penais e garantindo a observância dos princípios constitucionais de ampla defesa e razoável duração do processo.

Nesse sentido, a prescrição, ainda que observada sob a ótica do processo penal e constitucional, não se manifesta de igual maneira em todos os ritos, seja no ordinário, sumário, sumaríssimo ou Tribunal do Juri. Isso porque a prescrição depende do tipo penal praticado e da pena máxima que pode ser aplicada a ele, conforme o estabelecido no artigo 109 do Código de Processo Penal.

Mas não basta apenas saber qual o prazo prescricional, é também necessário saber contá-lo! Para isso, o CPP trouxe o artigo 117, o qual demonstra as causas interruptivas de prescrição, ou seja, os pontos “de partida” da contagem do tempo necessário para se alcançar a prescrição, e esse é o ponto mais importante para que se possa formular uma estratégia defensiva com foco na liberdade do indivíduo.

Dentre as hipóteses trazidas pelo artigo 117 do CPP relacionadas ao rito do Tribunal do Juri, temos as seguintes:

  • Pelo recebimento da denúncia ou queixa – O recebimento da denúncia ou queixa, conforme dispõe o artigo 117, I, do Código de Processo Penal, interrompe a prescrição. Essa é uma fase comum aos Ritos Sumário, Ordinário e do Juri em que o Magistrado, ao verificar que a denúncia preenche os critérios de admissibilidade, a recebe e determina que seja o réu citado.
  • Pela pronúncia e decisão confirmatória de pronúncia – A decisão de pronúncia, que ocorre ao final da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, é outro marco interruptivo relevante. A pronúncia confirma a admissibilidade da acusação e decide pela submissão do réu a julgamento perante o Júri Popular. Conforme o artigo 117, II e III, do Código de Processo Penal, a pronúncia e a decisão de confirmação de pronúncia interrompem a prescrição, recomeçando a contagem do prazo prescricional.
  • Pela sentença condenatória recorrível – A sentença condenatória recorrível, ainda que proferida por órgão singular, também interrompe a prescrição (art. 117, IV, do Código de Processo Penal). No âmbito do Tribunal do Júri, a sentença condenatória dos jurados que reconhecem a culpabilidade do réu pode ser sujeita a recursos, mas interrompe a prescrição quando é proferida.
  • Pelo acórdão condenatório de tribunal – A decisão condenatória em segunda instância também constitui um marco interruptivo da prescrição. O acórdão condenatório, mesmo que sujeito a recursos, interrompe a prescrição, conforme estabelece o artigo 117, IV, do Código de Processo Penal.

Dessa forma, são diversas as situações que interrompem a contagem do prazo prescricional. No entanto, não se deve olhar com superficialidade para as hipóteses trazidas pelo art. 117 do CPP, pois é justamente nas entrelinhas que se consegue desenvolver a melhor estratégia.

Um dos pontos que mais merece destaque ao tratar da prescrição em Tribunal do Juri, é aquele relacionado à decisão de pronúncia. Que ela é contada como marco interruptivo, isso é fato e está expresso em lei, bem como a decisão confirmatória de pronúncia, mas qual exatamente é o limite dessa “confirmação de pronúncia”?

Para entender melhor essa questão, o precedente HC nº 826.977/SP, julgado pelo STJ em dezembro de 2023, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, é extremamente didático quanto ao posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça.

A questão debatida girou em torno da possibilidade ou não de considerar acórdãos proferidos por tribunais superiores relativos à decisão de pronúncia como marco interruptivo da prescrição.

Em um primeiro momento, o Min. Relator Ribeiro Dantas se mostrou desfavorável ao pleito do paciente, sob justificativa de que a redação do art. 177, III do CPP não especifica o termo “decisão” ao determinar que a decisão que confirme a pronúncia será considerada marco interruptivo. Para o ministro, o termo referido é abrangente e engloba todos os atos decisórios que versem sobre a matéria da pronúncia, independente da fase processual que são proferidos.

No entanto, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca explicou a discordância sobre o posicionamento do Relator, ressaltando que a referida norma utilizada na fundamentação guarda estreita relação com a formação de culpa do indivíduo. Isso significa que, ao considerar que as decisões proferidas após o julgamento do Recurso em Sentido Estrito interposto frente à decisão de pronúncia, após a segunda instância, não há mais julgamento de mérito e, consequentemente, formação de culpa. Por isso, o termo “decisão” deveria ser interpretado de maneira restritiva quanto à configuração de marco interruptivo.

“Assim, não obstante a decisão proferida por esta Corte Superior revele ‘pleno exercício da jurisdição penal’, constata-se que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores não foram contempladas como causas interruptivas da prescrição, mas apenas aquelas emanadas das instâncias ordinárias. Trata-se de uma opção político-legislativa que, a meu ver, não pode ser desconsiderada mediante uma interpretação extensiva em uma matéria que deve ser interpretada restritivamente.”

Ressaltou, ainda, que o único caso em que recursos extraordinários deveriam configurar marco interruptivo de prescrição se dá somente quando estes reafirmam uma pronúncia anteriormente destituída.

Em concordância com esse posicionamento, o Min. Joel Ilan Paciornik apresentou mais 3 argumentos, sejam esses:

  1. Interpretação sistemática do CPP – observando a disposição dos demais incisos do artigo 117 do Código de Ritos, temos que há uma previsão legal expressa no inciso IV sobre a publicação de sentença condenatória ou acórdão recorrível.
  2. Análise restritiva à matéria de direito – ao contrário dos recursos de Apelação ou em Sentido Estrito, nos recursos interpostos aos tribunais superiores, “o objetivo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e a uniformidade na aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual que se sinta prejudicada e recorra por esses meios”. Dessa forma, como exposto anteriormente, não há aqui uma formação de culpa.
  3. Origem do instituto da prescrição como combate à inércia do Estado – por fim, foi demonstrado que, em casos de debate nos Tribunais Superiores sobre a decisão de pronúncia do acusado, não há um impedimento legal para o seguimento do feito em vista da ausência de efeito suspensivo dos recursos especiais e extraordinários (CPP, artigo 637), podendo ser marcada a sessão plenária ainda que tais razões recursais ainda não tenham sido julgadas. Mais uma vez, isso gira em torno da formação de culpa do indivíduo e a possibilidade de julgamento de mérito do feito. Caso, havendo a possibilidade de realização de julgamento perante o Tribunal do Juri, o Estado não o faça por inércia em marcar o julgamento, tal ônus não pode ser imputado ao acusado.

Nesse ínterim, o precedente formado foi pela desconsideração de julgamento de recursos nas instâncias superiores configurarem marco interruptivo da prescrição, haja vista a ausência de discussão de mérito.

Sob essa mesma perspectiva, surgiu o questionamento sobre a possibilidade de aplicação do entendimento quando em situação de decisão sobre embargos de declaração em RESE.

Ao analisar a natureza de embargos declaratórios, sabe-se que, de acordo com o artigo 619 do Código de Processo Penal, tem a finalidade de sanar qualquer ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão. Ou seja, não significa rediscutir o mérito do processo, não se reexamina a situação fática, mas tão somente tem a finalidade de esclarecer a sentença ou acórdão que foram embargados.

Dessa maneira, utilizando-se de uma interpretação extensiva do precedente acima exposto, temos que, em comunhão, ambas as situações não podem ser utilizadas para rediscussão do mérito, assim como não possuem previsão legal expressa no artigo 117 do CPP.

O entendimento dos Tribunais brasileiros é o de que as decisões que não analisem o mérito, principalmente as referentes à admissibilidade de recursos que tratam de matéria de direito, como embargos declaratórios, REsp, RE e agravos, não podem ser utilizadas como marco interruptivo da prescrição, pois não há uma impugnação direta da decisão de pronúncia, ao contrário do acórdão em RESE.

Trata-se de decisões de natureza mista, ou seja, é aquela que não resolve somente uma controvérsia entre as partes, como também encerra uma etapa do processo, mas sem julgar seu mérito. Dessa forma, é incoerente utilizar tais decisões como marco interruptivo da prescrição quando a principal finalidade da prescrição é evitar a inércia estatal para exercer seu direito de punir.

Além disso, o STJ decidiu no julgamento do HC 274.954/SC[6], sob relatoria do Min. Moura Ribeiro, que as causas de interrupção de prescrição presentes no artigo 117 do CPP são taxativas, não cabendo qualquer interpretação extensiva para além do que está expressamente descrito em lei.

No entanto, com a promulgação da Lei nº 13.964/2019[7], também conhecida como Pacote Anticrime, houve uma modificação no artigo 116 do Código Penal Brasileiro[8], incluindo, no inciso III do referido artigo, a possibilidade de suspensão do prazo prescricional antes do julgado da sentença final quando pendente embargos de declaração ou recursos nos Tribunais Superiores.

Mas, afinal, qual o impacto disso nos casos de execução de pena?

Ao observarmos o caso concreto referente ao processo de nº 0000799-03.2019.8.06.0077[9], o apenado se encontrava em cárcere privado cumprindo pena pela prática do delito tipificado no art. 121, caput, do Código Penal desde o trânsito em julgado da sentença, o que ocorreu em outubro de 2017.

No entanto, o fato delituoso ocorreu em junho de 2007, ocasião na qual o indivíduo possuía apenas 19 anos. A partir desse momento, em outubro do mesmo ano, a denúncia foi recebida, contando como primeiro marco interruptivo da prescrição. Posteriormente, a pronúncia se deu em janeiro de 2009.

Em novembro de 2009, após interposição de RESE contra a decisão de pronúncia, foi proferido acórdão confirmando a referida decisão, surgindo como mais um marco interruptivo da prescrição. Na sequência, foram opostos embargos declaratórios, os quais foram rejeitados em março de 2011.

O Apenado então fora submetido a julgamento em sessão plenária, restando condenado conforme sentença publicada em agosto de 2016. Tendo a defesa interposto Recurso de Apelação, que foi julgado em setembro de 2017, a condenação do Apenado transitou em julgado em outubro de 2017, culminando em uma pena de 6 anos e 6 meses.

Conforme já observado anteriormente, o tempo de prescrição obedece aos prazos estabelecidos no art. 109 do CPP. Todavia, neste caso em apreço, teremos que nos valer também do art. 115 do CPP, o qual trata sobre a redução em ½ do prazo prescricional na hipótese de ser o agente menor de 21 anos à época do fato.

Nesse sentido, considerando a pena de 6 anos e 6 meses in concreto, o prazo estabelecido pelo art. 109, III do CPP é o de 12 anos. No entanto, considerando que o agente era menor de 21 anos, nos termos do art. 115 do CPP, o prazo prescricional reduz para apenas 6 anos.

A partir disso, sobreveio à análise de qual marco interruptivo deveria ser considerado ao calcular a prescrição.

Considerando que o fato ocorreu anteriormente à alteração dada pelo Pacote Anticrime, o acórdão que deveria ser utilizado para calcular o lapso temporal entre o último marco interruptivo e a sentença condenatória é o de julgamento do RESE, e não o de julgamento dos embargos.

Assim, comprovando ao juízo da execução que o prazo prescricional do crime no caso concreto era de apenas 6 anos e o lapso temporal entre a decisão de julgamento do RESE e a sentença condenatória foi de 6 anos e 9 meses, ocorrendo assim a prescrição da pretensão punitiva.

Ou seja, considerando que a decisão foi proferida pelo juízo de execução somente em 2024 e que o indivíduo estava em regime semiaberto desde 2022 e posteriormente preso em 2024, temos um homem que perdeu 2 anos de sua vida ilegalmente.

No processo penal, não se trata apenas de nomes, datas ou procedimentos. O profissional do direito que atua no processo penal lida diretamente com vidas, e é imprescindível desenvolver o olhar aguçado para não permitir que esse tipo de ilegalidade se perpetue. Ninguém merece ter sua vida mudada, sua liberdade tolhida por um erro de cálculo e a inércia de defensores e julgadores.

O processo penal não pode ser conduzido de forma automatizada, desconsiderando os efeitos diretos sobre a liberdade e os direitos individuais dos acusados. Reconhecer a prescrição corretamente é essencial para evitar que erros de cálculo e a inércia dos atores jurídicos comprometam a justiça. Garantir a efetividade da prescrição é, acima de tudo, preservar as liberdades e a dignidade dos cidadãos diante do poder punitivo estatal.


Posts Recomendados

Ainda não há comentários, insira seu comentário abaixo!


Adicionar um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *