De acordo com a Portaria nº 648/2024 do Ministério da Justiça e Segurança Pública, as câmeras corporais foram instituídas como parte do equipamento dos agentes de segurança pública em caráter nacional, abrangendo a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal Federal, Estadual e do DTF, Policiais Militares dos Estados e DFT, Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e DFT, Policiais Civis do Estado e DTF, Peritos de Natureza Criminal dos Estados e DTF e, por fim, as Guardas Municipais.
O Projeto Nacional de Câmeras Corporais é uma iniciativa estratégica para capacitar as ISPs no Brasil. Este projeto não só visa aprimorar a qualidade do serviço prestado à sociedade e proteger os profissionais de segurança pública, mas também fortalecer a integridade, a transparência e a confiança nas operações de segurança pública, alinhando-se assim com os princípios de uma sociedade democrática e justa.
Em complemento a isso, no dia 26 de dezembro de 2024, o Ministro Luís Roberto Barroso estabeleceu regras para o uso de câmeras corporais por policiais militares do Estado de São Paulo, por meio da Suspensão De Liminar nº 1.696. Em sua decisão, o Ministro buscou estabelecer a obrigatoriedade do uso do equipamento por entender sua importância na garantia de operações policiais pautadas na transparência e respeito aos direitos humanos, mas também em respeito à capacidade material do Estado em fornecer tais equipamentos.
Dessa forma, é notório o comprometimento do judiciário em estabelecer mecanismos de resguardar a integridade física da população daquilo tem se tornado cada vez mais comum no dia a dia da segurança pública: os excessos praticados pelos profissionais em campo. Em um país que prevalece o Estado Democrático de Direito, práticas abusivas cometidas em meio à atividade de agentes estatais não devem ser admitidas.
Diante disso, o no julgamento do HC nº 933395/SP, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o pedido formulado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, utilizou-se exatamente das informações extraídas das câmeras corporais dos policiais que atuaram na abordagem policial e como testemunha de acusação para conceder de ofício a ordem em Habeas Corpus para absolver o paciente por nulidade das provas.
No caso concreto, o paciente foi condenado à pena de 7 anos e 6 meses de reclusão pelo crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, tendo a condenação sido reafirmada pelo TJSP em julgamento de apelação. Os pedidos formulados pela Defensoria buscavam demonstrar que, durante a abordagem policial, as provas materiais e confissão colhidas se deram mediante violência policial. Alegam que, mesmo após o paciente ter se rendido, esse foi agredido. Tal versão não condiz com o depoimento prestado pelos policiais em juízo.
Ocorre que, em acesso às filmagens, o Relator fundamenta o reconhecimento da nulidade das provas colhidas e todos os atos processuais decorrentes da abordagem policial diante a análise das câmeras e ordem dos fatos. Especificando minuto e segundo, o Ministro elencou momentos em que os policiais que testemunharam pela acusação sequer estavam no local no momento da abordagem, bem como em diversos momentos foram identificadas tentativas de piorar a qualidade da imagem capturada e os vídeos foram enviados sem áudio – exceto no momento da confissão do paciente.
Assim, em reconhecimento ao artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, o qual afirma que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante, bem como em respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 5.2 também versa sobre a proteção contra a violência, o STJ reconheceu como ilícitas as provas colhidas no momento da abordagem e seus atos subsequentes diante da comprovação de conduta ilícita dos agentes de segurança pública pelas câmeras corporais.
Cumpre destacar que, reconhecida a ilicitude da prova, essa deve ser desentranhada do processo, conforme art. 157 do Código de Processo Penal, a fim de resguardar a integridade de todo o processo mediante os pilares constitucionais sob os quais o ordenamento jurídico brasileiro se mantém.
As câmeras corporais têm emergido como uma ferramenta essencial para garantir a transparência e a responsabilização nas abordagens policiais. No contexto do HC nº 933395/SP, essas tecnologias desempenharam um papel crucial na defesa do paciente, oferecendo evidências concretas que corroboraram as alegações de violações de direitos fundamentais e da ilicitude das provas obtidas. Esse caso evidencia não apenas a relevância das câmeras corporais, mas também a necessidade de que a defesa atue de forma ampla e estratégica, indo além da análise estritamente vinculada ao processo principal.
No caso em questão, os registros das câmeras corporais foram decisivos para demonstrar que o réu sofreu agressões físicas, mesmo estando rendido e sem oferecer qualquer resistência. Ademais, ficou comprovado que as provas apresentadas contra ele foram obtidas mediante coerção, o que contamina sua admissibilidade à luz do art. 157 do Código de Processo Penal e de tratados internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos.
O caso demonstrou como as câmeras corporais funcionaram não apenas como um registro das ações policiais, mas como uma ferramenta fundamental para a defesa, permitindo a reconstrução fiel dos fatos e evidenciando práticas ilegais.
Entretanto, a importância das câmeras corporais vai além de sua função probatória. Elas também revelaram a dinâmica de manipulação das evidências por parte dos agentes, que bloquearam deliberadamente as imagens ou posicionaram os dispositivos de forma a dificultar a captura de atos de violência. Essa conduta não apenas compromete a transparência das ações, mas também destaca a necessidade de regulamentações rigorosas que impeçam tais práticas e garantam a integridade dos registros. Além disso, evidencia como o simples uso de tecnologias não é suficiente para evitar abusos, sendo imprescindível que sua implementação esteja acompanhada de fiscalização efetiva e responsabilidade institucional.
O papel da defesa, nesse contexto, é crucial. A atuação limitada ao processo principal poderia ter resultado na manutenção das provas obtidas de forma ilegal e na condenação do paciente com base em elementos contaminados. Ao explorar os registros das câmeras corporais e demonstrar sua relevância para a formação do convencimento judicial, a defesa foi capaz de questionar a narrativa apresentada pela acusação e garantir que o princípio da dignidade da pessoa humana fosse respeitado. Esse trabalho reflete a importância de uma abordagem ampla e detalhada, que não se limite à análise dos autos, mas que busque ativamente por evidências que fortaleçam a tese defensiva.
As injustiças se perpetuam quando a defesa se restringe à atuação reativa, ou seja, limitando-se a contestar os elementos apresentados pela acusação sem promover uma investigação própria ou buscar provas que desconstituam as alegações acusatórias. A proatividade demonstrada pela defesa no HC nº 933395/SP ilustra como essa postura pode ser determinante para reverter situações de aparente legitimidade e expor violações que poderiam passar despercebidas.
O caso também reforça a importância de uma defesa comprometida com a construção de uma narrativa própria, embasada em fatos concretos e em evidências que demonstrem a fragilidade das provas apresentadas pela acusação. A utilização de tecnologias, como as câmeras corporais, deve ser vista como uma oportunidade para garantir a transparência no processo penal, mas também exige da defesa um olhar atento e uma atuação que ultrapasse a simples resposta à acusação. É preciso explorar todos os elementos disponíveis e assegurar que os direitos fundamentais do acusado sejam efetivamente protegidos.
A decisão no HC nº 933395/SP reafirma a necessidade de uma defesa ativa, técnica e comprometida com os princípios do Estado Democrático de Direito. Mais do que um instrumento probatório, as câmeras corporais demonstraram ser um meio de fiscalização das práticas policiais, contribuindo para a promoção da justiça e para a prevenção de abusos. Contudo, para que seu uso seja eficaz, é imprescindível que sejam acompanhadas de regulamentações claras e mecanismos de controle que garantam a confiabilidade e a integridade das gravações. Ao mesmo tempo, cabe à defesa a tarefa de atuar de forma diligente e estratégica, utilizando todas as ferramentas disponíveis para assegurar que os direitos do acusado sejam plenamente respeitados.
Por fim, o caso do HC nº 933395/SP não é apenas um exemplo da importância das câmeras corporais no contexto penal, mas também uma lição sobre como a atuação da defesa pode transformar o curso de um processo. Ao demonstrar que injustiças podem ser evitadas por meio de uma abordagem ampla e proativa, ele destaca o papel central da advocacia criminal na garantia de um sistema penal justo e respeitoso aos direitos humanos.
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