DISTINGUISHING NO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL: UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO STJ

A complexidade do crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal, reside justamente na tensão entre a necessidade de proteção absoluta da infância e adolescência e a imprescindível análise das nuances que cada caso concreto apresenta.

Embora a lei estabeleça de forma objetiva a presunção de vulnerabilidade para menores de 14 anos, independentemente de consentimento, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem demonstrado uma sofisticada compreensão de que a justiça não se faz com a simples aplicação automática de normas, mas sim através de uma ponderação cuidadosa que considere tanto a letra da lei quanto as particularidades fáticas que envolvem cada situação.

1 O QUE É DISTINGUISHING?

O distinguishing é um método de análise comparativa utilizado pelo Judiciário para justificar decisões divergentes em relação a precedentes já estabelecidos. Consiste em identificar e destacar diferenças relevantes entre os fatos, o contexto ou as normas aplicáveis no caso em julgamento e aqueles presentes no precedente. Dessa forma, o magistrado pode demonstrar que as particularidades do caso atual justificam um tratamento jurídico distinto, sem que isso implique em uma ruptura com a jurisprudência consolidada.

Nesse contexto, o distinguishing emerge como um instrumento jurídico de notável relevância, permitindo aos tribunais distinguir casos aparentemente similares quando circunstâncias específicas justificam um tratamento diferenciado.

Trata-se, em essência, de reconhecer que a rigidez normativa, embora necessária para a segurança jurídica, não pode se sobrepor ao princípio fundamental da proporcionalidade, sob pena de gerar decisões que, embora formalmente corretas, resultem em evidentes injustiças materiais.

2 APLICAÇÃO DO DISTINGUISHING NO ESTUPRO DE VULNERÁVEL

A jurisprudência do STJ tem aplicado esse método com notável equilíbrio em situações limítrofes, onde se verifica, por exemplo, uma ínfima diferença etária entre as partes, a existência de um relacionamento amoroso público e reconhecido socialmente, ou ainda a ausência completa de qualquer indício de violência ou coerção.

Em tais hipóteses, o tribunal tem ponderado que a mera subsunção do fato à norma, sem uma análise mais detida do contexto, poderia levar a resultados manifestamente desproporcionais, especialmente quando a própria vítima, já em idade mais avançada, manifesta de forma clara e inequívoca que não sofreu qualquer tipo de abuso ou constrangimento.

2.1 CASO AG RG NO RESP 1.919.722

Um exemplo emblemático ocorreu no julgamento do AG RG NO RESP 1.919.722, em 17 de agosto de 2021, pela Quinta Turma do STJ. No caso, o acusado foi absolvido pelo tribunal a quo, e o Ministério Público recorreu ao STJ. A Corte, no entanto, entendeu que não havia elementos no processo que indicassem que o acusado tenha se aproveitado da idade da adolescente ou de sua vulnerabilidade.

Além disso, a jovem foi ouvida em juízo quando já tinha 18 anos e não relatou que a situação lhe tivesse causado qualquer dano. O relator, Ministro Sebastião Reis Junior, destacou que a condenação depende da avaliação da necessidade e do merecimento da pena, e que, no caso concreto, a conduta do agente não era compatível com aquela que o legislador buscou evitar ao tipificar o crime de estupro de vulnerável.

2.2 CASO RESP 1.977.165

Outro caso relevante foi o RESP 1.977.165, julgado pela Sexta Turma do STJ em 16 de maio de 2023. Nesse caso, o relator destacou que a eventual condenação do acusado pelo delito de estupro de vulnerável, com a causa de aumento prevista no artigo 234-A, III, do CP, acarretaria uma sanção de, no mínimo, 13 anos e 4 meses de reclusão, no regime fechado.

O relator considerou que a condenação poderia destruir uma entidade familiar, colocando em grave risco a própria vítima e o filho do casal. O distinguishing no caso concreto residiu em duas peculiaridades: a diferença de idade entre vítima e acusado era de apenas seis anos, consideravelmente menor do que a de outros precedentes; e o fato de, do relacionamento aprovado pelas famílias, eles terem gerado um filho, fato social que não pode ser desprezado.

3 A IMPORTÂNCIA DO DISTINGUISHING NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Tal abordagem jurisprudencial, longe de configurar qualquer espécie de afrouxamento impróprio ou relaxamento da necessária proteção jurídica destinada aos vulneráveis, antes revela – com notável perspicácia e discernimento – a crescente maturidade do nosso sistema jurídico em compreender, em sua plenitude, que a verdadeira justiça não se esgota na mera e fria subsunção mecânica do fato à norma legal, mas sim na sábia e ponderada harmonização desta com os elevados princípios constitucionais que não apenas informam, mas verdadeiramente alicerçam todo o nosso ordenamento jurídico, com especial ênfase nos princípios basilares da dignidade da pessoa humana (esse verdadeiro pilar de nossa civilização jurídica) e da proporcionalidade (que atua como freio e contrapeso contra os excessos do poder punitivo estatal).

O instituto do distinguishing, portanto, longe de representar qualquer enfraquecimento da tutela penal dos vulneráveis, cumpre papel diametralmente oposto: ele a robustece e a aperfeiçoa, funcionando como um necessário contraponto que evita, com sabedoria, que a excessiva rigidez da norma jurídica acabe por produzir efeitos perversamente contrários aos próprios objetivos teleológicos que o legislador, em sua sábia previsão, originalmente almejou alcançar com a edição da norma penal.

O STJ tem reiterado que o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso não afastam a vulnerabilidade do adolescente. No entanto, em casos excepcionais, onde a aplicação estrita da lei pode gerar injustiças, o distinguishing tem sido uma ferramenta importante para garantir que a justiça seja feita de forma proporcional e equânime.

Cabe, pois, aos operadores do direito saber identificar, com aguçado senso crítico e notório discernimento jurídico, tais situações excepcionais, sustentando suas teses com argumentação precisa, coerente e meticulosamente embasada em sólidos fundamentos jurídicos sempre que as singularidades e peculiaridades do caso concreto, em sua intrincada realidade fática, assim o exigirem de forma inafastável.

O distinguishing é um método essencial para a evolução do Direito, permitindo que os tribunais adaptem a norma às especificidades de cada caso, sem ferir a coerência do sistema jurídico.

No âmbito específico dos crimes de estupro de vulnerável, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem construindo uma linha interpretativa que, sem abdicar da prioritária proteção integral à criança e ao adolescente, reconhece a possibilidade de moldar a aplicação da norma penal quando confrontada com situações excepcionais que, analisadas em sua concretude, demandam tratamento jurídico diferenciado para evitar que a rigidez da lei produza resultados manifestamente desproporcionais.

Essa aplicação criteriosa do método sublinha a imprescindibilidade de uma análise jurisprudencial que, ultrapassando a mera subsunção automática, considere minuciosamente o contexto fático-social em sua integralidade, assegurando assim uma prestação jurisdicional que harmonize os imperativos de justiça material com as exigências de segurança jurídica.

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