Para realizar uma análise acerca da possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício em casos de violência doméstica, é necessário adentrarmos intrinsecamente nos tipos penais que regem a aplicação de medidas cautelares, tanto no Código de Processo Penal quanto na Lei nº 11.340/2006.
Nesse sentido, o CPP, em sua redação original de 1941, dispunha, em seu artigo 311, que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial”. Essa redação foi posteriormente alterada pela Lei nº 12.403, de 2011, que determinou que a prisão preventiva poderia ser decretada não somente em fase investigatória e instrutória, mas durante todo o processo penal.
No entanto, com o advento do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964, de 2019), foi excluída expressamente qualquer possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício, de modo a não restar dúvidas sobre o caráter acusatório do atual sistema persecutório penal. Cumpre destacar que tal sistema é o que mais se adequa aos princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, quais sejam o contraditório e a ampla defesa.
Ocorre que, ao observarmos a Lei Maria da Penha, também conhecida como Lei nº 11.340/2006, percebe-se que ela estabeleceu, em seu artigo 20 que “em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial”, ou seja, nos mesmos ditames do art. 311 do CPP em sua primeira versão.
Diante de uma análise doutrinária, Lopes Jr. (2022) e Carpez (2022) sustentam a necessidade de uma observação minuciosa acerca da necessidade de aplicação da medida constritiva de liberdade extrema. Aduzem que, mesmo diante da possibilidade legislativa para tanto, deve ser demonstrada a
imprescindibilidade da prisão preventiva, sob pena de substituição por outra medida cautelar.
Insta ressaltar que a Lei 13.694/2019 alterou o art. 282, parágrafo 6º do CPP, a fim de determinar a necessidade de fundamentação sob os elementos do caso concreto para justificar a prisão, sob pena de ser considerada constrangimento ilegal (AVENA, 2022, p. 885). Nessa toada, Lopes Jr. (2022, p.17) destaca que, diante do descumprimento de medida cautelar diversa, cabe ao Ministério Público comprová-lo e pedir expressamente a aplicação da prisão preventiva. Assim, inexiste a possibilidade de decretação da medida extrema sem prévio requerimento dos legitimados previstos no art. 311 do CPP.
Assim, com o avanço legislativo trazido pelo Pacote Anticrime ao determinar o modelo acusatório de sistema processual penal no ordenamento jurídico brasileiro, é nítido o conflito de normas entre o atual Código de Processo Penal e a Lei 11.340/2006.
De acordo com Soares (2019), para solucionar as divergências entre normas, deve-se utilizar de três critérios: o hierárquico, o cronológico e o da especialidade. Pelo critério hierárquico, considera-se o sistema jurídico piramidal e hierárquico, ou seja, normas de um nível hierárquico maior prevalecem (ex: a Constituição é quem dita os parâmetros legislativos das demais normas infraconstitucionais no nosso ordenamento).
Considerando o critério cronológico, as normas são do mesmo nível hierárquico, mas editadas em momentos diferentes. Nesse sentido, a promulgada posteriormente prevalece em face da anterior.
Por fim, o critério da especialidade diz que, diante de uma norma geral e uma norma específica sobre determinado tema, prevalece o entendimento da norma específica. Nucci (2022, p.40) aduz que, diante de um conflito como esse, aplica-se a norma geral apenas em caráter subsidiário da específica.
Todavia, ainda que tratemos da Lei Maria da Penha como uma lei de caráter especial, é necessário ter um olhar aguçado para identificar as
divergências principiológicas com o próprio texto constitucional, o qual garante a todos, sem distinção, o acesso ao devido processo legal, sob prisma da ampla defesa e do contraditório, ou seja, as bases do sistema penal acusatório.
Assim, Avena (2022, p. 877), apesar de entender a possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício em casos de violência doméstica, reconhece que não é o entendimento majoritário. Ao contrário, entende-se pela revogação tácita do art. 20 da Lei Maria da Penha diante da nova redação do art. 311 do CPP, o que impossibilitada ao magistrado agir de ofício na decretação da prisão preventiva, mesmo nos casos de violência doméstica.
De outra ótica, Cavalcante (2021) aduz que, percebendo o art. 20 da Lei 11.340/2006 alinhado com os mesmos ditames do art. 311 do CPP à sua escrita inicial, a medida lógica é de que, após a alteração pelo Pacote Anticrime, ambos os dispositivos legais, de maneira harmônica, concordassem pela impossibilidade de decretação de ofício da prisão preventiva.
Considerando que a Lei Maria da Penha, em seu artigo 20, apenas reproduziu os dizeres do artigo 311 do CPP, não há lógica em tratar do princípio da especialidade no conflito direto dos dois dispositivos legais.
As divergências mais aprofundadas se dão quando é analisada a Nota Técnica 5/2021 do Centro de Inteligência da Justiça do Distrito Federal (CIJDF), a qual determinou a aplicabilidade do princípio da especialidade para não atribuir a mesma limitação do art. 311 do CPP ao art. 20 da Lei 11.340/2006 quanto a decretação ex oficio. Tal posicionamento foi ratificado pelo Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher,
vide Enunciado 51 (XI,2023).
Ocorre que, ao tratar da perspectiva do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o posicionamento é tendencioso para o reconhecimento da violação do princípio do acusatório diante da decretação de prisão preventiva de ofício. Vejamos:
Dessa forma, podemos ver uma sutil manifestação do Poder Judiciário diante da temática abordada, mas sempre de maneira discreta. Considerando ter sido localizado apenas duas jurisprudências específicas sobre o tema, não é possível afirmar ser um entendimento consolidado, mas pode-se utilizar disso para fomentar a discussão sobre o conflito das normas supracitadas.
AVENA, Norberto. Processo Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022.
BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 03 de outubro de 1941. Dispõe sobre o Código de Processo Penal. Brasilia. Presidência República, [2022). Disponivel em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 12 ago. 2024.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 12 ago. 2024.
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