OS LIMITES DO ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS PELA VISÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O encontro fortuito de provas, também conhecido como serendipidade, é um fenômeno jurídico que ocorre quando, no curso de uma investigação direcionada a determinado fato, são descobertas provas inesperadas, sem relação direta com o objeto original da apuração. A aceitação desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro permite que tais elementos probatórios, mesmo não sendo previamente conhecidos ou buscados, possam ser validamente utilizados para subsidiar investigações relativas a crimes de ação penal pública incondicionada.

Essa prática tem gerado intensos debates nos tribunais superiores, especialmente quanto aos limites de sua aplicação, à proteção dos direitos fundamentais e à admissibilidade dessas provas, uma vez que o encontro fortuito pode, em determinadas situações, colidir com garantias constitucionais, como a inviolabilidade da intimidade e a legalidade estrita das provas. Assim, a análise sobre a legitimidade e os limites do uso dessas provas inesperadas torna-se essencial para compreender o equilíbrio entre a eficiência da investigação criminal e o respeito aos direitos e garantias individuais.

Dentro do processo penal, é de suma importância que observemos a legalidade das provas colhidas durante todo o procedimento investigatório, pois qualquer ilegalidade nas formalidades da persecução vem a se tornar uma nulidade a ser arguida e poderá contaminar todo o processo.

Ao tratar do assunto, o Código de Processo Penal, em seu artigo 155, aborda sobre a necessidade de livre convencimento do juiz na apreciação da prova produzida em contraditório judicial, devendo fundamentar bem suas decisões nessas determinadas provas. Mais adiante, o artigo 157 torna inadmissível a valoração de provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais, bem como as provas decorrentes dessas.

Dessa forma, para que uma prova seja considerada válida e apta a influenciar as decisões dentro do processo, ela precisa, ao menos, ser colhida de maneira a observar os procedimentos legais de obtenção dentro da persecução penal, principalmente na fundamentação da necessidade e possibilidade de realização de cada procedimento investigatório.

Todavia, especialmente se tratando de relativização de garantias constitucionais à inviolabilidade do domicílio e das comunicações, questionou-se sobre a validade da utilização de prova colhida por meio desses procedimentos, mas que não correspondida à prova procurada, ou ainda sequer ao fato apurado naquela ação penal. É o que chamamos de encontro fortuito da prova, quando não há a intenção de investigar aquela ação ou aquele tipo de prova, mas “por acaso” e dentro de procedimentos legais, as encontra. O que fazer com essas provas? São aptas a influenciar na formação de culpa do investigado? São aptas a fundamentar uma nova ação penal para apuração?

Esses questionamentos têm sido constantemente debatidos no STJ, o qual adota atualmente a Teoria da Serendipidade. Essa teoria versa sobre a descoberta inesperada, no decorrer de uma investigação legalmente autorizada, de provas sobre crime que a princípio não estava sendo investigado. Diferentemente do fishing expedition, o qual será debatido mais adiante, o encontro fortuito da prova está baseado na pré-existência de um contexto investigatório legal que, sem desvio de finalidade, encontra provas inesperadas, sejam elas conexas ao crime investigado ou não.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela legalidade de tal prova a depender do caso concreto, pois se faz necessário verificar a razoabilidade do encontro de provas conforme a finalidade da conduta da autoridade.

A tendência jurisprudencial ganhou força com a midiatização da Operação Lava-Jato, na qual houve grande relevância para as provas colhidas por meio de quebra de sigilo telefônico, bancário e fiscal.

O entendimento pacificado é de que, para haver legalidade no encontro fortuito da prova, a persecução penal deve ter um objetivo claro, ser direcionada e fundamentada, mesmo que em relação a outro objeto. Somente será admitido o encontro fortuito diante de uma legalidade prévia.

Tratando da legalidade dos meios de investigação, desde 2013 que a posição do Superior Tribunal de Justiça é reafirmada no sentido de admitir a aplicação da Serendipidade – ainda que a prova encontrada não tenha qualquer conexão com o fato apurado na ação penal principal -, devendo ser aberto novo procedimento de apuração com a prova encontrada, desde que haja legalidade no procedimento investigatório original que oportunizou o encontro da prova.

Ainda em 2013, no julgamento do HC 187.189, o Ministro Og Fernandes afirmou que “não se pode esperar ou mesmo exigir que a autoridade policial, no momento que dá início a uma investigação, saiba exatamente o que irá encontrar, definindo, de antemão quais são os crimes encontrados”, entendendo a naturalidade com que novos fatos e provas possam se apresentar ao longo das investigações.

No entanto, nada disso exime a autoridade policial de cumprir com a finalidade da medida investigativa exatamente nos termos em que ela foi autorizada, vedando o exagero e o “aproveitamento” de oportunidades para investigar além do que fora fundamentado.

Conforme o HC 197.044, o ministro Sebastião Reis Júnior advertiu que é preciso haver equilíbrio entre a proteção à intimidade e a quebra de sigilo. Para ele, não pode haver uma devassa indiscriminada de dados, mas, se a interceptação telefônica é lícita, como tal, captará licitamente toda a conversa. “Havendo indícios de crime nesses diálogos, o estado não deve se quedar inerte; cumpre-lhe tomar as cabíveis providências”.

O mesmo entendimento vale para a participação de terceiros em um crime apurado: caso haja menção do indivíduo não representado nos áudios de uma interceptação, por exemplo, ainda que se vá indiciar a partir daquela prova, ela permanece válida, pois foi colhida sobre um pretexto válido e cumpriu com a sua finalidade.

Ainda tratando sobre finalidade da medida investigatória, o entendimento sobre a legalidade indiscriminada das provas encontradas fortuitamente foi, aos poucos, dando espaço para o questionamento sobre a pesca probatória, quando uma investigação não tem motivação clara, objetiva e fundamentada, muito menos causa provável, mas busca apenas encontrar algo para além dos limites autorizados.

Em 2022, no julgamento do HC 663.055, o Ministro Rogério Schietti Cruz declarou ilícitas as provas colhidas mediante invasão de domicílio em busca de um fugitivo. No caso concreto, foi preciso vasculhar a casa para encontrar o material ilegal, medida completamente além da autorizada para o cumprimento das investigações, demonstrando o desvio de finalidade dos policiais. Se a medida adotada é apenas encontrar o indivíduo, não cabe aos policiais vasculharem pela residência desse qualquer outro material.

Ora, não é à toa que há necessidade de expedição de mandado de prisão e mandado de busca e apreensão, pois são institutos distintos. A menos que os objetos apreendidos estivessem sob o olhar dos policiais ao entrar na residência, qualquer coisa apreendida seria ilegal.

Em contraposição a isso, no RHC 39.412, o entendimento foi pela licitude da prova. Ao cumprir o mandado de busca e apreensão de uma arma pertencente ao estagiário de um estabelecimento, os policiais encontraram outros materiais ilícitos no local, pertencentes ao chefe do alvo do mandado.

Ao solicitar a nulidade da prova, foi esclarecido que, ainda que não houvesse mandado específico àquele indivíduo, as provas foram colhidas fortuitamente, sob cumprimento legal de outro mandado no mesmo local, portanto, sem desvio de finalidade da medida.

Por fim, há de se falar sobre sigilo profissional e extração parcial de dados de aparelho telefônico. No julgamento do RHC 157.143, a Sexta Turma considerou que o acesso aos dados telemáticos extraídos dos celulares de advogados investigados em uma operação policial não configurou investigação especulativa, tampouco serendipidade. Para o colegiado, ainda que a garantia do sigilo profissional entre advogado e cliente fosse preterida em relação à necessidade da investigação, ela seria preservada com a transferência do sigilo para quem estivesse na posse dos dados.

Fora requisitado pelos advogados investigados que a extração se desse de maneira somente parcial, a fim de preservar o sigilo profissional, mas o Ministro Relator entendeu pela impossibilidade técnica de investigação parcial: “não há como exigir da autoridade cumpridora do mandado que filtre imediatamente o que interessa ou não à investigação, devendo o que não interessa ser prontamente restituído ao investigado após a perícia”.

Dessa forma, podemos concluir que, ainda que o Superior Tribunal de Justiça seja adepto à Teoria da Serendipidade, admitindo a prova colhida fortuitamente, é necessário observar dois principais pontos:

  1. A legalidade da medida autorizadora do procedimento investigatório, principalmente no que tange à quebra de sigilo telefônico e telemático, extração de dados digitais e invasão domiciliar, por serem garantias constitucionais fundamentais no Estado Democrático de Direito;
  2. A finalidade da medida e possíveis desvios no seu cumprimento, de modo que não se ultrapassem os limites estipulados na decisão autorizadora. Insta ressaltar que tais limites dizem respeito à conduta a ser praticada pelas autoridades, não sobre o indivíduo alvo.

No entanto, em contraponto à aplicação da Teoria da Serendipidade, temos o que está sendo conhecido por “Fishing Expedition”, ou também “pescaria probatória”, prática ilegal no ordenamento jurídico brasileiro.

A teoria do Fishing Expedition se refere a uma busca indiscriminada por provas, sem uma fundamentação concreta, sem um objetivo claro, sem um alvo definido e, consequentemente, sem justificativa razoável para dar justa causa à persecução penal.

Como uma extensão ao princípio da não autoincriminação vigente no ordenamento jurídico brasileiro, a vedação da prática de pescaria probatória existe de maneira a tentar resguardar a integridade dos indivíduos e as garantias constitucionais à intimidade, direcionando a persecução penal a uma documentação e fundamentação dos seus atos, a fim de justificar a origem de cada ato e cada prova.

Desse modo, é certo que o Direito brasileiro exige uma prévia “causa provável” e uma finalidade definida para justificar qualquer tipo de investigação e colheita de provas, sob pena de nulidade dessas. Todas as violações a garantias constitucionais se dão em regime restrito, em geral, sendo necessária autorização judicial, com prévia definição de objeto: o que fazer? Com quem fazer? Por que fazer? Onde fazer? Como fazer? Fundamentado como? Todas essas perguntas devem ser respondidas em juízo antes do ato investigativo, a fim de se preservar a intimidade do investigado.

Assim, é possível citar alguns atos como claros exemplos da fishing expedition:

a) Busca e apreensão sem alvo definido, tangível e descrito no mandado (mandados genéricos);

b) Vasculhamento de todo o conteúdo do celular apreendido;

c) Continuidade da busca e apreensão depois de obtido o material objeto da diligência;

d) Investigações criminais dissimuladas de fiscalizações de órgãos públicos (Receita Federal, controladorias, Tribunais de Contas, órgãos públicos etc.);

e) Interceptação ou monitoramento por períodos longos de tempo;

f) Prisão temporária ou preventiva para “forçar” a descoberta ou colaboração premiada ou incriminação;

g) Buscas pessoais (ou residenciais) desprovidas de “fundada suspeita” prévia e objetiva;

h) Quebra de sigilo (bancário, fiscal, dados etc.) sem justificativa do período requisitado.

Observando esse rol de possibilidades, vemos que há uma certa semelhança entre a pescaria probatória e o encontro fortuito da prova. Entretanto, a diferenciação dos dois institutos está justamente na averiguação da legalidade da medida utilizada na persecução penal.

É, sim, necessário que haja a delimitação do objeto de investigação, o período, o alvo, a fundamentação e o método de colheita de provas para justificar uma ação investigativa. No entanto, se, durante essa ação e sem qualquer mudança de finalidade do agente em seu curso, forem encontradas provas que se refiram a terceiros ou a outro crime, não será considerada prova ilícita, pois a medida investigativa inicial, referente ao objeto inicial, se deu de maneira legítima, sendo apenas um “acaso” o encontro das demais provas.

Em resumo, a validade do encontro fortuito de provas está diretamente ligada à legalidade da investigação desde seu início. Se for comprovado que a ação investigativa foi conduzida de forma ilícita ou houve desvio de finalidade sem a devida autorização judicial, estaremos diante de uma “pescaria probatória”, prática proibida por lei. Nesse caso, as provas obtidas serão consideradas ilegais e, portanto, não poderão ser usadas para fundamentar a culpa do investigado, devendo ser excluídas do processo, conforme garantem os princípios da legalidade e do devido processo legal.

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