Decorrida quase uma década de sucessivas interrupções, o Supremo Tribunal Federal finalizou em 26/06/2024 o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal por 6 votos a 3. A ata do julgamento foi publicada do Diário da Justiça em 02/08/2024 e deve ser aplicada em todo o país. A decisão descriminalizou o porte de até 40g de maconha para uso pessoal, quantia fixada para diferenciar usuário de traficantes. A medida não legaliza o porte, mas muda as repercussões na vida do usuário que deve sofrer consequências administrativas. Para entender melhor os efeitos do julgamento e o seu impacto na política de drogas do Brasil, necessário fazer uma leitura histórica sobre a regulamentação de entorpecentes no país e entender o posicionamento de cada Ministro, conforme se fará nas linhas seguintes.
Para compreender a política antidrogas do Brasil, é necessário entender a evolução legislativa sobre a temática. Dessa forma, A primeira lei federal a prever algo a respeito teve influência internacional, a exemplo das Convenções Internacionais do Ópio, que visavam discutir a regulamentação do comércio e do consumo de ópio e outras substâncias orgânicas no mundo. Essa relação teve início em 1912 e resultou, no Brasil, no Decreto nº 11.481, de 10 de fevereiro de 1915, que aprovava no território nacional, para todos os efeitos, medidas a impedir os abusos crescentes do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína.
A primeira lei específica sobre drogas no Brasil foi sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa. O Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, composto por 13 artigos, “estabeleceu penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados; criou um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substâncias venenosas; estabeleceu as formas de processo e julgamento e mandou abrir os créditos necessários”.
A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) foi um projeto instituído no Palácio do Itamaraty em agosto de 1935. Foi essa Comissão que institucionalizou a primeira legislação que consolida ações de fiscalização de entorpecentes, através do Decreto Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938.
Já na esfera criminal sobre drogas, em 1940 foi editado o Código Penal, que previa o crime de tráfico e de posse de substâncias entorpecentes, punido com reclusão de um a cinco anos. As infrações entraram na categoria dos crimes contra a saúde pública. Em 1964 adicionou-se ao crime a ação de “plantar”, e em 1968 incluiu-se “preparar ou produzir”, explicitando-se, ainda, que as mesmas penas se aplicariam a quem trouxesse consigo, “para uso próprio”, substâncias entorpecentes.
Em 1976, foi aprovada a Lei nº 6.368, que dispôs sobre as “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”. Através dessa Lei, em que pese tenham sido previstos tipos penais distintos para traficantes e usuários, com penas mais brandas para esses últimos, o Brasil comprometeu-se em efetivar uma guerra contra as drogas, punindo severamente quem as consumisse ou vendesse.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma nova abordagem à politica antidrogas no Brasil, considerando, em seu art. 5º, XLIII, crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o tráfico ilícito de entorpecentes. Tal posicionamento foi reafirmado pela Lei de Crimes Hediondos, a qual proibiu, ainda, em sua redação original, a concessão de liberdade provisória, além de ter aumentado o prazo da prisão temporária para 30 dias e previsto a possibilidade de sua prorrogação.
No entanto, a partir dos anos 2000, iniciou-se um movimento de olhar com mais cuidado e atenção aos usuários e dependentes, corroborando com a visão trazida anteriormente de diferenciação entre esses e traficantes. Em formalidade a isso, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.059, instituiu uma política de ações que visam à redução de danos sociais e à saúde.
Em 2006, foi aprovada a Lei nº 11.343, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Tal norma buscou, ainda que revogando-os, compatibilizar os instrumentos normativo anteriores que versavam sobre a temática. Um de seus pontos principais é o reconhecimento das diferenças entre a figura do traficante e a do usuário/dependente, que passaram a ser tratados de modo diferenciado e a ocupar capítulos diferentes da lei.
E com isso, temos a tipificação do crime de tráfico no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o qual determina 18 núcleos ao tipo penal descrito, quais sejam importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas. Na oportunidade, estabeleceu, além de pena de 5 a 15 anos de reclusão, pena de multa de 500 a 1500 dias-multas. E assim foi formada a visão de traficante à perspectiva do Estado.
No entanto, considerando essa divisão entre usuário e traficante, o artigo 28 da mesma lei estabeleceu que quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, está enquadrado na figura de usuário e, por se tratar de risco à saúde pública, é passivo de penas como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. A partir dessa legislação, o Brasil concebe que usuários e dependentes não devem ser penalizados com a privação de liberdade.
Assim, houve uma despenalização da conduta praticada pelo usuário, ou seja, deixou de ser punido com a restrição de liberdade. Apesar de representar um grande avanço legislativo para o contexto histórico no Brasil dos anos 2000, a Lei 11.343/2006 não eximiu os usuários dos efeitos criminais de possível condenação. Isso significa que, apesar de não ser um crime punido por uma pena, os efeitos da reincidência, por exemplo, ainda estão presentes e o usuário ainda é visto como um criminoso à luz no ordenamento jurídico.
Entendendo melhor o que levou à elaboração da Lei 11.343/2006 e à atual política criminal contra as drogas no Brasil, podemos afirmar que o ordenamento jurídico, aos poucos, tem adotado um posicionamento de penalizar o grande traficante, aquele que concorre para a manutenção do narcotráfico, mas ainda assim tratar de maneira mais humana o indivíduo que faz uso de determinadas substâncias – conforme resoluções normativas da Agência Nacional de Saúde.
Partindo à análise do caso concreto levado ao plenário do STF no RE 635.659, trata-se de um indivíduo preso portando apenas 2g da substância canabis sativa, fato ocorrido no ano de 2009. Conforme trâmite processual normal, foi interposto recurso extraordinário pelo Defensor Público-Geral do Estado de São Paulo contra acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP que, por entender constitucional o art. 28 da Lei 11.343/2006, manteve a condenação pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal.
Neste recurso extraordinário, fundamentado no art. 102, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alega-se violação ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. O recorrente argumenta que o crime (ou a infração) previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto no artigo 5º, X da Constituição Federal e, por conseguinte, o princípio da lesividade, valor basilar do direito penal.
Em 2011, deu-se início ao julgamento do RE 635.659, ocasião na qual reconheceu-se a existência de repercussão geral do caso diante da sociedade brasileira.
Dando início aos votos aos 20 de agosto de 2015, o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, votou a favor da descriminalização do porte de canabis sativa por entender que tratar como crime a posse de drogas para consumo próprio “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”. Para o Ministro, a decisão de por a própria saúde em risco fazendo uso de substâncias nocivas somente diz respeito ao indivíduo, não merecendo que tal conduta seja criminalizada por ofensa à proporcionalidade da medida adotada.
Destaca a necessidade de observar o uso de drogas como uma medida de saúde pública, e não de segurança pública, dando sentido à diferenciação de traficante e usuário presente na Lei 11.343/2006.
“Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais do porte de drogas para uso pessoal, a mera previsão de condutas referentes ao consumo pessoal como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional” relata o Ministro.
Por fim, o Relator destaca a necessidade de observar a proporcionalidade com a qual o legislador infraconstitucional criminaliza condutas à luz da constitucionalidade. Ainda que seja possível fazê-lo em diversos casos, como o racismo e a exploração sexual, não se pode permitir excessos legislativos: ao deturpar a finalidade com a qual a Lei de Drogas foi criada para manter os efeitos criminais do uso de substâncias entorpecentes ilícitas, indo em desacordo com a política criminal a ser desenvolvida, há um claro excesso de atuação do Estado.
Como o Direito Penal se traduz em autorizações para que o Estado interfira em direitos fundamentais, o ministro conclui que essas “medidas interventivas” devem sempre estar adequadas “ao cumprimento dos objetivos pretendidos”. Ou seja, “o pressuposto de que nenhum outro meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados”.
Abertas vistas ao Min. Edson Fachin, este proferiu seu voto aos 10 de setembro de 2015 no sentido de reconhecer a necessidade de resguardar a autonomia privada do indivíduo quanto ao uso de substâncias ilícitas, bem como afirmou que criminalizar o porte de drogas para uso pessoal devido a argumentos morais é medida “paternalista” do Estado e que a escolha de não utilizar deve ser “produto da escolha de cada indivíduo”. O ministro disse que “um ponto nodal” é entender que o dependente é vítima e não criminoso.
No entanto, esclareceu que a descriminalização do porte para consumo deveria se restringir apenas à maconha da espécie canabis sativa, não abrangendo quaisquer outras drogas. No final de seu voto, Fachin sustentou que se deve manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga da maconha, mas ao mesmo tempo “declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da maconha até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa”.
Ainda no mesmo dia, o Min. Luís Roberto Barroso também votou a favor da descriminalização do porte para uso pessoal da Maconha, ressaltando a incongruência entre a descriminalização do porte para consumo, mas mantendo a criminalização da produção e distribuição. Dentre as razões para seu voto, destacou o fracasso da política contra as drogas, os altos custos ao Estado para a manutenção do encarceramento em massa decorrente das condutas entendidas como traficância e, por mim, os prejuízos à saúde pública decorrente da falta de um olhar mais humano e menos punitivista do Estado ao dependente.
Além disso, em termos jurídicos e técnicos, entende que a autonomia individual e o direito à privacidade, assim como os demais Ministros, não encontram proporcionalidade na punição oferecida pelo Estado, haja vista que não afeta terceiros, nem é meio idôneo para promover a saúde pública. Por fim, propôs o estabelecimento das quantidades de porte para consumo pessoal de até 25g e plantação de até seis plantas fêmeas para enquadrar-se no art. 28 da Lei 11.343/2006.
Após 8 anos, no dia 2 de agosto de 2023, retomou-se o julgamento do Tema 506, referente ao Recurso Extraordinário analisado. Na ocasião, o Min. Alexandre de Moraes[14] propôs um critério objetivo e nacional relacionado à quantidade da substância apreendida para diferenciar o traficante do usuário, além de se mostrar favorável à descriminalização do porte para uso pessoal. No entanto, o Ministro deixou claro que seu posicionamento se restringe à canabis sativa, por se adequar ao caso concreto, se omitindo em relação às demais drogas.
Em seu posicionamento, o Ministro levantou a necessidade de estabelecer o critério da quantidade para diferenciar usuário de traficante a fim de impedir que dois indivíduos, abordados com a mesma quantidade de droga, tenham tratamento diferenciado em virtude de etnia, condição social, nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato. Declara a necessidade de uniformizar os flagrantes realizados pelo país e a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal em garantir a igual aplicação da lei a todos.
Dessa forma, propôs que sejam presumidas como usuárias as pessoas flagradas com 25g a 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas. Ele chegou a esses números a partir de levantamento que realizou sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017. O estudo foi realizado em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria e abrangeu mais de 1,2 milhão de ocorrências com drogas.
De acordo com o Ministro, a autoridade policial não ficaria impedida de realizar a prisão em flagrante por tráfico quando a quantidade de maconha for inferior ao limite. Entretanto, é necessário comprovar a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico, como a forma de acondicionamento da droga, a diversidade de entorpecentes e a apreensão de instrumentos e celulares com contatos, por exemplo. Da mesma forma, nas prisões em flagrante por quantidades superiores, o juiz, na audiência de custódia, deverá dar ao preso a possibilidade de comprovar que é usuário.
Após o voto de Alexandre de Moraes, o Ministro Relator Gilmar Mendes modificou seu voto para acolher os parâmetros de quantidade expostos, bem como restringir a descriminalização apenas à Maconha.
Aos 24 de agosto de 2023, os Ministros Cristiano Zanin e Rosa Weber proferiram seus votos. Zanin defende que, considerando o dispositivo do art. 28 da Lei 11.343/2006 é o único que diferencia usuário de traficante, não podendo ser declarado inconstitucional.
No entanto, também defende que haja uma diferenciação e propôs a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.
“A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde“, afirmou Zanin.
Após, Rosa Weber declarou que “tipificar o porte de drogas para consumo pessoal potencializa o estigma que recai sobre o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela própria lei no atendimento, tratamento e reinserção econômica dos usuários e dependentes de drogas“. Além de promover o estigma de criminoso ao usuário, impondo a este as demais consequências processuais de uma condenação criminal para além de cerceamento de liberdade, a Ministra entende que, caso não haja uma diferenciação real e objetiva – se referindo aos critérios de quantidade propostos pelos demais ministros – usuários continuarão a serem erroneamente punidos como se traficantes fossem.
Aos 06 de março de 2024, retomou-se o julgamento do Tema 506 com os votos dos Ministros André Mendonça e Nunes Marques. Ambos seguiram o entendimento de Zanin pela impossibilidade de declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal descrito.
André Marques tomou o posicionamento de que caberia ao Congresso Nacional, em 180 dias, estabelecer uma quantidade adequada para que o indivíduo abordado fosse considerado ou não usuário, parâmetros que não impedirão que, no caso concreto, seja afastada a presunção mediante fundamentação idônea da autoridade competente.
Já Nunes Marques seguiu o posicionamento de que a quantidade ideal deveria ser de 25g de Maconha ou 6 plantas fêmeas. Segundo o ministro, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”. Após, Ministro Edson Fachin, que ratificava o seu voto no sentido de acompanhar o Relator relativamente ao dispositivo impugnado, mas considerava que o estabelecimento da quantidade de maconha seria atribuição do Poder Legislativo.
Na reta final do julgamento, o Ministro Dias Toffoli, que, no caso concreto, negava provimento ao recurso extraordinário, determinava que a condenação do recorrente não gere efeitos penais. O Ministro explica que a legislação debatida nunca teve o intuito de estabelecer uma sanção penal ao usuário, haja vista que não se estabeleceu uma pena de reclusão, detenção ou prisão simples – o que excluiria a definição da conduta como crime ou ato infracional. Dessa forma, sustenta que não há o que descriminalizar algo que nunca teve, em suas raízes, a natureza criminal, mas meramente administrativa e com foco em medidas de saúde pública.
Além disso, fez um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que, no prazo de 18 meses, formulem e efetivem uma política pública de drogas, conforme previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, interinstitucional, multidisciplinar, baseada em evidências científicas, a qual deverá compreender, obrigatoriamente, a regulamentação das medidas previstas nos incisos I a III do art. 28, a fixação de critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante de cannabis e a formulação de programas voltados ao tratamento e à atenção integral ao usuário e dependentes. Determina, ainda, que sejam garantidas dotações orçamentárias suficientes para efetivar as políticas públicas de saúde previstas no art. 28 da Lei de Drogas.
Por fim, entende que as políticas públicas sobre a temática devem envolver todos os órgãos federais com atuação nas áreas de saúde (Ministério da Saúde e ANVISA), educação (Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação), trabalho e emprego (Ministério do Trabalho e Emprego e Conselho Nacional do Trabalho), segurança pública (Ministério da Justiça e Segurança Pública e Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos), dentre outros cuja temática necessariamente deva permear a política nacional de drogas como condição para a sua efetividade e eficácia.
Findado o debate jurídico sobre a temática, o que se pode esperar a partir de agora com tamanho precedente jurisprudencial e fixação do tema 506 do STF?
Com o entendimento de que as medidas previstas no art. 28 da Lei de Drogas têm caráter exclusivamente administrativos, não é mais possível que as penalidades processuais penais atinjam os usuários, o que retira a possibilidade de “sujar a ficha criminal” do indivíduo abordado com quantidade até 40 gramas de canabis sativa, ou 6 plantas fêmeas. O cálculo foi feito com base nos votos dos ministros que fixaram a quantia entre 25 e 60 gramas nos votos favoráveis à descriminalização. A partir de uma média entre as sugestões, a quantidade de 40 gramas foi fixada.
Isso não significa que em casos de apreensão de menos de 40g de maconha a possibilidade de prisão por tráfico seja completamente excluída, mas precisará se valer de outros elementos que indiquem traficância para justificar tal medida.
Consequentemente, as abordagens policiais continuam seguindo o mesmo procedimento de abordar o indivíduo, levá-lo à delegacia e caberá ao delegado pesar a droga, verificar se a situação realmente pode ser configurada como porte para uso pessoal. Em seguida, o usuário será notificado a comparecer à Justiça. O que não será possível é somente a prisão em flagrante do indivíduo.
Por fim, ao tratar de retroatividade da norma penal, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, disse que a decisão pode retroagir para atingir pessoas condenadas pela Justiça.
Segundo ele, a decisão pode beneficiar pessoas exclusivamente condenadas por porte de até 40 gramas de maconha, sem ligações com o tráfico. A revisão da pena não é automática e só poderia ocorrer por meio de um recurso apresentado à Justiça.
“A regra básica em matéria de Direito Penal é que a lei não retroage se ela agravar a situação de quem é acusado ou esteja preso. Para beneficiar, é possível”, afirmou Barroso.
Nesse sentido, é possível tratar da matéria em sede de revisão criminal, obedecendo os critérios de admissibilidade da peça processual em seus moldes, a fim de requerer novo cálculo de dosimetria de pena ou ainda pleitear a absolvição de um apenado que, erroneamente, foi condenado por tráfico.
Tal alteração jurisprudencial, no entanto, não tem força de lei.
Durante o julgamento do Tema 506 do STF, tramita o julgamento da PEC 45/2023 no Congresso Nacional, que objetiva inserir no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”[18]
A Proposta de Emenda à Constituição, em clara resposta ao julgamento do STF, inclui a criminalização do porte e posse de substâncias ilícitas consideradas como tais pela administração pública. Ela estabelece que o porte para uso pessoal não resultará em privação de liberdade, garantindo que o usuário não seja penalizado com prisão. Segundo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a ênfase não está na criminalização do usuário como dependente químico, mas sim no porte de substâncias consideradas ilícitas, cuja presença é intrinsecamente prejudicial.
O texto aprovado, com emendas do relator Senador Efraim Filho (União-PB), também determina que seja feita uma distinção clara entre traficantes e usuários, considerando todas as circunstâncias específicas de cada caso. Para os usuários, são aplicáveis penas alternativas à prisão e tratamento para dependência, conforme previsto na Lei de Entorpecentes (Lei 11.343/2006). Efraim Filho argumenta que as drogas têm impactos significativos na saúde pública, aumentando o consumo e a dependência química, além de fortalecerem o tráfico e financiarem o crime organizado.
“O motivo desta dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las. Com efeito, o traficante de drogas aufere renda — e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território — somente por meio da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um usuário final. Entendemos que a modificação proposta está em compasso com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário para que enfrentemos o abuso de entorpecentes e drogas afins, tema atualmente tão importante para a sociedade brasileira. Além disso, a legislação infraconstitucional está em constante revisão e reforma, tendo em conta as circunstâncias sociais e políticas vigentes”, argumenta Pacheco.
Com isso, ainda que haja uma diferenciação entre o usuário e o traficante, a possível aprovação da PEC 45/2023 poderá trazer novas diretrizes constitucionais, impactando diretamente futuras legislações sobre a criminalização do porte e posse de drogas para uso pessoal. Isso alteraria o paradigma utilizado pelo Supremo Tribunal Federal na análise da constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.
Dessarte, o debate sobre o porte e a posse de drogas para consumo pessoal, incluindo questões como a quantificação e a natureza da substância, ainda carece de uma discussão mais profunda por parte da sociedade civil. Embora a maconha seja frequentemente associada ao tráfico no Brasil, é importante considerar que seu impacto é consideravelmente diferente do de outras substâncias mais devastadoras, como a cocaína e drogas sintéticas, que são partes integrantes de redes internacionais de narcotráfico que movimentam bilhões de dólares anualmente. Portanto, a questão não se esgota com a decisão do STF, permanecendo aberta para novas reflexões e reformas legislativas.