O QUE MUDA COM A DECISÃO DO STF SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DA MACONHA? OS EFEITOS PRÁTICOS DA ALTERAÇÃO JURISPRUDENCIAL TRAZIDA AO ART. 28 DA LEI DE DROGAS NO JULGAMENTO DO STF RE 635.659 RG

Decorrida quase uma década de sucessivas interrupções, o Supremo Tribunal Federal finalizou em 26/06/2024 o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal por 6 votos a 3. A ata do julgamento foi publicada do Diário da Justiça em 02/08/2024 e deve ser aplicada em todo o país. A decisão descriminalizou o porte de até 40g de maconha para uso pessoal, quantia fixada para diferenciar usuário de traficantes. A medida não legaliza o porte, mas muda as repercussões na vida do usuário que deve sofrer consequências administrativas. Para entender melhor os efeitos do julgamento e o seu impacto na política de drogas do Brasil, necessário fazer uma leitura histórica sobre a regulamentação de entorpecentes no país e entender o posicionamento de cada Ministro, conforme se fará nas linhas seguintes.

Para compreender a política antidrogas do Brasil, é necessário entender a evolução legislativa sobre a temática. Dessa forma, A primeira lei federal a prever algo a respeito teve influência internacional, a exemplo das Convenções Internacionais do Ópio, que visavam discutir a regulamentação do comércio e do consumo de ópio e outras substâncias orgânicas no mundo. Essa relação teve início em 1912 e resultou, no Brasil, no Decreto nº 11.481, de 10 de fevereiro de 1915, que aprovava no território nacional, para todos os efeitos, medidas a impedir os abusos crescentes do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína.

A primeira lei específica sobre drogas no Brasil foi sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa. O Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, composto por 13 artigos, “estabeleceu penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados; criou um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substâncias venenosas; estabeleceu as formas de processo e julgamento e mandou abrir os créditos necessários”.

A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) foi um projeto instituído no Palácio do Itamaraty em agosto de 1935. Foi essa Comissão que institucionalizou a primeira legislação que consolida ações de fiscalização de entorpecentes, através do Decreto Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938.

Já na esfera criminal sobre drogas, em 1940 foi editado o Código Penal, que previa o crime de tráfico e de posse de substâncias entorpecentes, punido com reclusão de um a cinco anos. As infrações entraram na categoria dos crimes contra a saúde pública. Em 1964 adicionou-se ao crime a ação de “plantar”, e em 1968 incluiu-se “preparar ou produzir”, explicitando-se, ainda, que as mesmas penas se aplicariam a quem trouxesse consigo, “para uso próprio”, substâncias entorpecentes.

Em 1976, foi aprovada a Lei nº 6.368, que dispôs sobre as “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”. Através dessa Lei, em que pese tenham sido previstos tipos penais distintos para traficantes e usuários, com penas mais brandas para esses últimos, o Brasil comprometeu-se em efetivar uma guerra contra as drogas, punindo severamente quem as consumisse ou vendesse.

Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma nova abordagem à politica antidrogas no Brasil, considerando, em seu art. 5º, XLIII, crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o tráfico ilícito de entorpecentes. Tal posicionamento foi reafirmado pela Lei de Crimes Hediondos, a qual proibiu, ainda, em sua redação original, a concessão de liberdade provisória, além de ter aumentado o prazo da prisão temporária para 30 dias e previsto a possibilidade de sua prorrogação.

No entanto, a partir dos anos 2000, iniciou-se um movimento de olhar com mais cuidado e atenção aos usuários e dependentes, corroborando com a visão trazida anteriormente de diferenciação entre esses e traficantes. Em formalidade a isso, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.059, instituiu uma política de ações que visam à redução de danos sociais e à saúde.

Em 2006, foi aprovada a Lei nº 11.343, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Tal norma buscou, ainda que revogando-os, compatibilizar os instrumentos normativo anteriores que versavam sobre a temática. Um de seus pontos principais é o reconhecimento das diferenças entre a figura do traficante e a do usuário/dependente, que passaram a ser tratados de modo diferenciado e a ocupar capítulos diferentes da lei.

E com isso, temos a tipificação do crime de tráfico no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o qual determina 18 núcleos ao tipo penal descrito, quais sejam importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas. Na oportunidade, estabeleceu, além de pena de 5 a 15 anos de reclusão, pena de multa de 500 a 1500 dias-multas. E assim foi formada a visão de traficante à perspectiva do Estado.

No entanto, considerando essa divisão entre usuário e traficante, o artigo 28 da mesma lei estabeleceu que quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, está enquadrado na figura de usuário e, por se tratar de risco à saúde pública, é passivo de penas como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. A partir dessa legislação, o Brasil concebe que usuários e dependentes não devem ser penalizados com a privação de liberdade.

Assim, houve uma despenalização da conduta praticada pelo usuário, ou seja, deixou de ser punido com a restrição de liberdade. Apesar de representar um grande avanço legislativo para o contexto histórico no Brasil dos anos 2000, a Lei 11.343/2006 não eximiu os usuários dos efeitos criminais de possível condenação. Isso significa que, apesar de não ser um crime punido por uma pena, os efeitos da reincidência, por exemplo, ainda estão presentes e o usuário ainda é visto como um criminoso à luz no ordenamento jurídico.

Entendendo melhor o que levou à elaboração da Lei 11.343/2006 e à atual política criminal contra as drogas no Brasil, podemos afirmar que o ordenamento jurídico, aos poucos, tem adotado um posicionamento de penalizar o grande traficante, aquele que concorre para a manutenção do narcotráfico, mas ainda assim tratar de maneira mais humana o indivíduo que faz uso de determinadas substâncias – conforme resoluções normativas da Agência Nacional de Saúde.

Partindo à análise do caso concreto levado ao plenário do STF no RE 635.659, trata-se de um indivíduo preso portando apenas 2g da substância canabis sativa, fato ocorrido no ano de 2009. Conforme trâmite processual normal, foi interposto recurso extraordinário pelo Defensor Público-Geral do Estado de São Paulo contra acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP que, por entender constitucional o art. 28 da Lei 11.343/2006, manteve a condenação pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal.

Neste recurso extraordinário, fundamentado no art. 102, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alega-se violação ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. O recorrente argumenta que o crime (ou a infração) previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto no artigo 5º, X da Constituição Federal e, por conseguinte, o princípio da lesividade, valor basilar do direito penal.

Em 2011, deu-se início ao julgamento do RE 635.659, ocasião na qual reconheceu-se a existência de repercussão geral do caso diante da sociedade brasileira.

Dando início aos votos aos 20 de agosto de 2015, o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, votou a favor da descriminalização do porte de canabis sativa por entender que tratar como crime a posse de drogas para consumo próprio “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”. Para o Ministro, a decisão de por a própria saúde em risco fazendo uso de substâncias nocivas somente diz respeito ao indivíduo, não merecendo que tal conduta seja criminalizada por ofensa à proporcionalidade da medida adotada.

Destaca a necessidade de observar o uso de drogas como uma medida de saúde pública, e não de segurança pública, dando sentido à diferenciação de traficante e usuário presente na Lei 11.343/2006.

Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais do porte de drogas para uso pessoal, a mera previsão de condutas referentes ao consumo pessoal como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional” relata o Ministro.

Por fim, o Relator destaca a necessidade de observar a proporcionalidade com a qual o legislador infraconstitucional criminaliza condutas à luz da constitucionalidade. Ainda que seja possível fazê-lo em diversos casos, como o racismo e a exploração sexual, não se pode permitir excessos legislativos: ao deturpar a finalidade com a qual a Lei de Drogas foi criada para manter os efeitos criminais do uso de substâncias entorpecentes ilícitas, indo em desacordo com a política criminal a ser desenvolvida, há um claro excesso de atuação do Estado.

Como o Direito Penal se traduz em autorizações para que o Estado interfira em direitos fundamentais, o ministro conclui que essas “medidas interventivas” devem sempre estar adequadas “ao cumprimento dos objetivos pretendidos”. Ou seja, “o pressuposto de que nenhum outro meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados”.

Abertas vistas ao Min. Edson Fachin, este proferiu seu voto aos 10 de setembro de 2015 no sentido de reconhecer a necessidade de resguardar a autonomia privada do indivíduo quanto ao uso de substâncias ilícitas, bem como afirmou que criminalizar o porte de drogas para uso pessoal devido a argumentos morais é medida “paternalista” do Estado e que a escolha de não utilizar deve ser “produto da escolha de cada indivíduo”. O ministro disse que “um ponto nodal” é entender que o dependente é vítima e não criminoso.

No entanto, esclareceu que a descriminalização do porte para consumo deveria se restringir apenas à maconha da espécie canabis sativa, não abrangendo quaisquer outras drogas. No final de seu voto, Fachin sustentou que se deve manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga da maconha, mas ao mesmo tempo “declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da maconha até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa”.

Ainda no mesmo dia, o Min. Luís Roberto Barroso também votou a favor da descriminalização do porte para uso pessoal da Maconha, ressaltando a incongruência entre a descriminalização do porte para consumo, mas mantendo a criminalização da produção e distribuição. Dentre as razões para seu voto, destacou o fracasso da política contra as drogas, os altos custos ao Estado para a manutenção do encarceramento em massa decorrente das condutas entendidas como traficância e, por mim, os prejuízos à saúde pública decorrente da falta de um olhar mais humano e menos punitivista do Estado ao dependente.

Além disso, em termos jurídicos e técnicos, entende que a autonomia individual e o direito à privacidade, assim como os demais Ministros, não encontram proporcionalidade na punição oferecida pelo Estado, haja vista que não afeta terceiros, nem é meio idôneo para promover a saúde pública. Por fim, propôs o estabelecimento das quantidades de porte para consumo pessoal de até 25g e plantação de até seis plantas fêmeas para enquadrar-se no art. 28 da Lei 11.343/2006.

Após 8 anos, no dia 2 de agosto de 2023, retomou-se o julgamento do Tema 506, referente ao Recurso Extraordinário analisado. Na ocasião, o Min. Alexandre de Moraes[14] propôs um critério objetivo e nacional relacionado à quantidade da substância apreendida para diferenciar o traficante do usuário, além de se mostrar favorável à descriminalização do porte para uso pessoal. No entanto, o Ministro deixou claro que seu posicionamento se restringe à canabis sativa, por se adequar ao caso concreto, se omitindo em relação às demais drogas.

Em seu posicionamento, o Ministro levantou a necessidade de estabelecer o critério da quantidade para diferenciar usuário de traficante a fim de impedir que dois indivíduos, abordados com a mesma quantidade de droga, tenham tratamento diferenciado em virtude de etnia, condição social, nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato. Declara a necessidade de uniformizar os flagrantes realizados pelo país e a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal em garantir a igual aplicação da lei a todos.

Dessa forma, propôs que sejam presumidas como usuárias as pessoas flagradas com 25g a 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas. Ele chegou a esses números a partir de levantamento que realizou sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017. O estudo foi realizado em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria e abrangeu mais de 1,2 milhão de ocorrências com drogas.

De acordo com o Ministro, a autoridade policial não ficaria impedida de realizar a prisão em flagrante por tráfico quando a quantidade de maconha for inferior ao limite. Entretanto, é necessário comprovar a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico, como a forma de acondicionamento da droga, a diversidade de entorpecentes e a apreensão de instrumentos e celulares com contatos, por exemplo. Da mesma forma, nas prisões em flagrante por quantidades superiores, o juiz, na audiência de custódia, deverá dar ao preso a possibilidade de comprovar que é usuário.

Após o voto de Alexandre de Moraes, o Ministro Relator Gilmar Mendes modificou seu voto para acolher os parâmetros de quantidade expostos, bem como restringir a descriminalização apenas à Maconha.

Aos 24 de agosto de 2023, os Ministros Cristiano Zanin e Rosa Weber proferiram seus votos.  Zanin defende que, considerando o dispositivo do art. 28 da Lei 11.343/2006 é o único que diferencia usuário de traficante, não podendo ser declarado inconstitucional.

No entanto, também defende que haja uma diferenciação e propôs a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.

A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde“, afirmou Zanin.

Após, Rosa Weber declarou que “tipificar o porte de drogas para consumo pessoal potencializa o estigma que recai sobre o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela própria lei no atendimento, tratamento e reinserção econômica dos usuários e dependentes de drogas“. Além de promover o estigma de criminoso ao usuário, impondo a este as demais consequências processuais de uma condenação criminal para além de cerceamento de liberdade, a Ministra entende que, caso não haja uma diferenciação real e objetiva – se referindo aos critérios de quantidade propostos pelos demais ministros – usuários continuarão a serem erroneamente punidos como se traficantes fossem.

Aos 06 de março de 2024, retomou-se o julgamento do Tema 506 com os votos dos Ministros André Mendonça e Nunes Marques. Ambos seguiram o entendimento de Zanin pela impossibilidade de declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal descrito.

André Marques tomou o posicionamento de que caberia ao Congresso Nacional, em 180 dias, estabelecer uma quantidade adequada para que o indivíduo abordado fosse considerado ou não usuário, parâmetros que não impedirão que, no caso concreto, seja afastada a presunção mediante fundamentação idônea da autoridade competente.

Já Nunes Marques seguiu o posicionamento de que a quantidade ideal deveria ser de 25g de Maconha ou 6 plantas fêmeas. Segundo o ministro, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”. Após, Ministro Edson Fachin, que ratificava o seu voto no sentido de acompanhar o Relator relativamente ao dispositivo impugnado, mas considerava que o estabelecimento da quantidade de maconha seria atribuição do Poder Legislativo.

Na reta final do julgamento, o Ministro Dias Toffoli, que, no caso concreto, negava provimento ao recurso extraordinário, determinava que a condenação do recorrente não gere efeitos penais. O Ministro explica que a legislação debatida nunca teve o intuito de estabelecer uma sanção penal ao usuário, haja vista que não se estabeleceu uma pena de reclusão, detenção ou prisão simples – o que excluiria a definição da conduta como crime ou ato infracional. Dessa forma, sustenta que não há o que descriminalizar algo que nunca teve, em suas raízes, a natureza criminal, mas meramente administrativa e com foco em medidas de saúde pública.

Além disso, fez um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que, no prazo de 18 meses, formulem e efetivem uma política pública de drogas, conforme previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, interinstitucional, multidisciplinar, baseada em evidências científicas, a qual deverá compreender, obrigatoriamente, a regulamentação das medidas previstas nos incisos I a III do art. 28, a fixação de critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante de cannabis e a formulação de programas voltados ao tratamento e à atenção integral ao usuário e dependentes. Determina, ainda, que sejam garantidas dotações orçamentárias suficientes para efetivar as políticas públicas de saúde previstas no art. 28 da Lei de Drogas.

Por fim, entende que as políticas públicas sobre a temática devem envolver todos os órgãos federais com atuação nas áreas de saúde (Ministério da Saúde e ANVISA), educação (Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação), trabalho e emprego (Ministério do Trabalho e Emprego e Conselho Nacional do Trabalho), segurança pública (Ministério da Justiça e Segurança Pública e Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos), dentre outros cuja temática necessariamente deva permear a política nacional de drogas como condição para a sua efetividade e eficácia.

Findado o debate jurídico sobre a temática, o que se pode esperar a partir de agora com tamanho precedente jurisprudencial e fixação do tema 506 do STF?

Com o entendimento de que as medidas previstas no art. 28 da Lei de Drogas têm caráter exclusivamente administrativos, não é mais possível que as penalidades processuais penais atinjam os usuários, o que retira a possibilidade de “sujar a ficha criminal” do indivíduo abordado com quantidade até 40 gramas de canabis sativa, ou 6 plantas fêmeas. O cálculo foi feito com base nos votos dos ministros que fixaram a quantia entre 25 e 60 gramas nos votos favoráveis à descriminalização.  A partir de uma média entre as sugestões, a quantidade de 40 gramas foi fixada.

Isso não significa que em casos de apreensão de menos de 40g de maconha a possibilidade de prisão por tráfico seja completamente excluída, mas precisará se valer de outros elementos que indiquem traficância para justificar tal medida.

Consequentemente, as abordagens policiais continuam seguindo o mesmo procedimento de abordar o indivíduo, levá-lo à delegacia e caberá ao delegado pesar a droga, verificar se a situação realmente pode ser configurada como porte para uso pessoal. Em seguida, o usuário será notificado a comparecer à Justiça. O que não será possível é somente a prisão em flagrante do indivíduo.

Por fim, ao tratar de retroatividade da norma penal, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, disse que a decisão pode retroagir para atingir pessoas condenadas pela Justiça.

Segundo ele, a decisão pode beneficiar pessoas exclusivamente condenadas por porte de até 40 gramas de maconha, sem ligações com o tráfico. A revisão da pena não é automática e só poderia ocorrer por meio de um recurso apresentado à Justiça.

“A regra básica em matéria de Direito Penal é que a lei não retroage se ela agravar a situação de quem é acusado ou esteja preso. Para beneficiar, é possível”, afirmou Barroso.

Nesse sentido, é possível tratar da matéria em sede de revisão criminal, obedecendo os critérios de admissibilidade da peça processual em seus moldes, a fim de requerer novo cálculo de dosimetria de pena ou ainda pleitear a absolvição de um apenado que, erroneamente, foi condenado por tráfico.

Tal alteração jurisprudencial, no entanto, não tem força de lei.

Durante o julgamento do Tema 506 do STF, tramita o julgamento da PEC 45/2023 no Congresso Nacional, que objetiva inserir no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”[18]

A Proposta de Emenda à Constituição, em clara resposta ao julgamento do STF, inclui a criminalização do porte e posse de substâncias ilícitas consideradas como tais pela administração pública. Ela estabelece que o porte para uso pessoal não resultará em privação de liberdade, garantindo que o usuário não seja penalizado com prisão. Segundo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a ênfase não está na criminalização do usuário como dependente químico, mas sim no porte de substâncias consideradas ilícitas, cuja presença é intrinsecamente prejudicial.

O texto aprovado, com emendas do relator Senador Efraim Filho (União-PB), também determina que seja feita uma distinção clara entre traficantes e usuários, considerando todas as circunstâncias específicas de cada caso. Para os usuários, são aplicáveis penas alternativas à prisão e tratamento para dependência, conforme previsto na Lei de Entorpecentes (Lei 11.343/2006). Efraim Filho argumenta que as drogas têm impactos significativos na saúde pública, aumentando o consumo e a dependência química, além de fortalecerem o tráfico e financiarem o crime organizado.

“O motivo desta dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las. Com efeito, o traficante de drogas aufere renda — e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território — somente por meio da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um usuário final. Entendemos que a modificação proposta está em compasso com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário para que enfrentemos o abuso de entorpecentes e drogas afins, tema atualmente tão importante para a sociedade brasileira. Além disso, a legislação infraconstitucional está em constante revisão e reforma, tendo em conta as circunstâncias sociais e políticas vigentes”, argumenta Pacheco. 

Com isso, ainda que haja uma diferenciação entre o usuário e o traficante, a possível aprovação da PEC 45/2023 poderá trazer novas diretrizes constitucionais, impactando diretamente futuras legislações sobre a criminalização do porte e posse de drogas para uso pessoal. Isso alteraria o paradigma utilizado pelo Supremo Tribunal Federal na análise da constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

Dessarte, o debate sobre o porte e a posse de drogas para consumo pessoal, incluindo questões como a quantificação e a natureza da substância, ainda carece de uma discussão mais profunda por parte da sociedade civil. Embora a maconha seja frequentemente associada ao tráfico no Brasil, é importante considerar que seu impacto é consideravelmente diferente do de outras substâncias mais devastadoras, como a cocaína e drogas sintéticas, que são partes integrantes de redes internacionais de narcotráfico que movimentam bilhões de dólares anualmente. Portanto, a questão não se esgota com a decisão do STF, permanecendo aberta para novas reflexões e reformas legislativas.


OS LIMITES DO ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS PELA VISÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O encontro fortuito de provas, também conhecido como serendipidade, é um fenômeno jurídico que ocorre quando, no curso de uma investigação direcionada a determinado fato, são descobertas provas inesperadas, sem relação direta com o objeto original da apuração. A aceitação desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro permite que tais elementos probatórios, mesmo não sendo previamente conhecidos ou buscados, possam ser validamente utilizados para subsidiar investigações relativas a crimes de ação penal pública incondicionada.

Essa prática tem gerado intensos debates nos tribunais superiores, especialmente quanto aos limites de sua aplicação, à proteção dos direitos fundamentais e à admissibilidade dessas provas, uma vez que o encontro fortuito pode, em determinadas situações, colidir com garantias constitucionais, como a inviolabilidade da intimidade e a legalidade estrita das provas. Assim, a análise sobre a legitimidade e os limites do uso dessas provas inesperadas torna-se essencial para compreender o equilíbrio entre a eficiência da investigação criminal e o respeito aos direitos e garantias individuais.

Dentro do processo penal, é de suma importância que observemos a legalidade das provas colhidas durante todo o procedimento investigatório, pois qualquer ilegalidade nas formalidades da persecução vem a se tornar uma nulidade a ser arguida e poderá contaminar todo o processo.

Ao tratar do assunto, o Código de Processo Penal, em seu artigo 155, aborda sobre a necessidade de livre convencimento do juiz na apreciação da prova produzida em contraditório judicial, devendo fundamentar bem suas decisões nessas determinadas provas. Mais adiante, o artigo 157 torna inadmissível a valoração de provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais, bem como as provas decorrentes dessas.

Dessa forma, para que uma prova seja considerada válida e apta a influenciar as decisões dentro do processo, ela precisa, ao menos, ser colhida de maneira a observar os procedimentos legais de obtenção dentro da persecução penal, principalmente na fundamentação da necessidade e possibilidade de realização de cada procedimento investigatório.

Todavia, especialmente se tratando de relativização de garantias constitucionais à inviolabilidade do domicílio e das comunicações, questionou-se sobre a validade da utilização de prova colhida por meio desses procedimentos, mas que não correspondida à prova procurada, ou ainda sequer ao fato apurado naquela ação penal. É o que chamamos de encontro fortuito da prova, quando não há a intenção de investigar aquela ação ou aquele tipo de prova, mas “por acaso” e dentro de procedimentos legais, as encontra. O que fazer com essas provas? São aptas a influenciar na formação de culpa do investigado? São aptas a fundamentar uma nova ação penal para apuração?

Esses questionamentos têm sido constantemente debatidos no STJ, o qual adota atualmente a Teoria da Serendipidade. Essa teoria versa sobre a descoberta inesperada, no decorrer de uma investigação legalmente autorizada, de provas sobre crime que a princípio não estava sendo investigado. Diferentemente do fishing expedition, o qual será debatido mais adiante, o encontro fortuito da prova está baseado na pré-existência de um contexto investigatório legal que, sem desvio de finalidade, encontra provas inesperadas, sejam elas conexas ao crime investigado ou não.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela legalidade de tal prova a depender do caso concreto, pois se faz necessário verificar a razoabilidade do encontro de provas conforme a finalidade da conduta da autoridade.

A tendência jurisprudencial ganhou força com a midiatização da Operação Lava-Jato, na qual houve grande relevância para as provas colhidas por meio de quebra de sigilo telefônico, bancário e fiscal.

O entendimento pacificado é de que, para haver legalidade no encontro fortuito da prova, a persecução penal deve ter um objetivo claro, ser direcionada e fundamentada, mesmo que em relação a outro objeto. Somente será admitido o encontro fortuito diante de uma legalidade prévia.

Tratando da legalidade dos meios de investigação, desde 2013 que a posição do Superior Tribunal de Justiça é reafirmada no sentido de admitir a aplicação da Serendipidade – ainda que a prova encontrada não tenha qualquer conexão com o fato apurado na ação penal principal -, devendo ser aberto novo procedimento de apuração com a prova encontrada, desde que haja legalidade no procedimento investigatório original que oportunizou o encontro da prova.

Ainda em 2013, no julgamento do HC 187.189, o Ministro Og Fernandes afirmou que “não se pode esperar ou mesmo exigir que a autoridade policial, no momento que dá início a uma investigação, saiba exatamente o que irá encontrar, definindo, de antemão quais são os crimes encontrados”, entendendo a naturalidade com que novos fatos e provas possam se apresentar ao longo das investigações.

No entanto, nada disso exime a autoridade policial de cumprir com a finalidade da medida investigativa exatamente nos termos em que ela foi autorizada, vedando o exagero e o “aproveitamento” de oportunidades para investigar além do que fora fundamentado.

Conforme o HC 197.044, o ministro Sebastião Reis Júnior advertiu que é preciso haver equilíbrio entre a proteção à intimidade e a quebra de sigilo. Para ele, não pode haver uma devassa indiscriminada de dados, mas, se a interceptação telefônica é lícita, como tal, captará licitamente toda a conversa. “Havendo indícios de crime nesses diálogos, o estado não deve se quedar inerte; cumpre-lhe tomar as cabíveis providências”.

O mesmo entendimento vale para a participação de terceiros em um crime apurado: caso haja menção do indivíduo não representado nos áudios de uma interceptação, por exemplo, ainda que se vá indiciar a partir daquela prova, ela permanece válida, pois foi colhida sobre um pretexto válido e cumpriu com a sua finalidade.

Ainda tratando sobre finalidade da medida investigatória, o entendimento sobre a legalidade indiscriminada das provas encontradas fortuitamente foi, aos poucos, dando espaço para o questionamento sobre a pesca probatória, quando uma investigação não tem motivação clara, objetiva e fundamentada, muito menos causa provável, mas busca apenas encontrar algo para além dos limites autorizados.

Em 2022, no julgamento do HC 663.055, o Ministro Rogério Schietti Cruz declarou ilícitas as provas colhidas mediante invasão de domicílio em busca de um fugitivo. No caso concreto, foi preciso vasculhar a casa para encontrar o material ilegal, medida completamente além da autorizada para o cumprimento das investigações, demonstrando o desvio de finalidade dos policiais. Se a medida adotada é apenas encontrar o indivíduo, não cabe aos policiais vasculharem pela residência desse qualquer outro material.

Ora, não é à toa que há necessidade de expedição de mandado de prisão e mandado de busca e apreensão, pois são institutos distintos. A menos que os objetos apreendidos estivessem sob o olhar dos policiais ao entrar na residência, qualquer coisa apreendida seria ilegal.

Em contraposição a isso, no RHC 39.412, o entendimento foi pela licitude da prova. Ao cumprir o mandado de busca e apreensão de uma arma pertencente ao estagiário de um estabelecimento, os policiais encontraram outros materiais ilícitos no local, pertencentes ao chefe do alvo do mandado.

Ao solicitar a nulidade da prova, foi esclarecido que, ainda que não houvesse mandado específico àquele indivíduo, as provas foram colhidas fortuitamente, sob cumprimento legal de outro mandado no mesmo local, portanto, sem desvio de finalidade da medida.

Por fim, há de se falar sobre sigilo profissional e extração parcial de dados de aparelho telefônico. No julgamento do RHC 157.143, a Sexta Turma considerou que o acesso aos dados telemáticos extraídos dos celulares de advogados investigados em uma operação policial não configurou investigação especulativa, tampouco serendipidade. Para o colegiado, ainda que a garantia do sigilo profissional entre advogado e cliente fosse preterida em relação à necessidade da investigação, ela seria preservada com a transferência do sigilo para quem estivesse na posse dos dados.

Fora requisitado pelos advogados investigados que a extração se desse de maneira somente parcial, a fim de preservar o sigilo profissional, mas o Ministro Relator entendeu pela impossibilidade técnica de investigação parcial: “não há como exigir da autoridade cumpridora do mandado que filtre imediatamente o que interessa ou não à investigação, devendo o que não interessa ser prontamente restituído ao investigado após a perícia”.

Dessa forma, podemos concluir que, ainda que o Superior Tribunal de Justiça seja adepto à Teoria da Serendipidade, admitindo a prova colhida fortuitamente, é necessário observar dois principais pontos:

  1. A legalidade da medida autorizadora do procedimento investigatório, principalmente no que tange à quebra de sigilo telefônico e telemático, extração de dados digitais e invasão domiciliar, por serem garantias constitucionais fundamentais no Estado Democrático de Direito;
  2. A finalidade da medida e possíveis desvios no seu cumprimento, de modo que não se ultrapassem os limites estipulados na decisão autorizadora. Insta ressaltar que tais limites dizem respeito à conduta a ser praticada pelas autoridades, não sobre o indivíduo alvo.

No entanto, em contraponto à aplicação da Teoria da Serendipidade, temos o que está sendo conhecido por “Fishing Expedition”, ou também “pescaria probatória”, prática ilegal no ordenamento jurídico brasileiro.

A teoria do Fishing Expedition se refere a uma busca indiscriminada por provas, sem uma fundamentação concreta, sem um objetivo claro, sem um alvo definido e, consequentemente, sem justificativa razoável para dar justa causa à persecução penal.

Como uma extensão ao princípio da não autoincriminação vigente no ordenamento jurídico brasileiro, a vedação da prática de pescaria probatória existe de maneira a tentar resguardar a integridade dos indivíduos e as garantias constitucionais à intimidade, direcionando a persecução penal a uma documentação e fundamentação dos seus atos, a fim de justificar a origem de cada ato e cada prova.

Desse modo, é certo que o Direito brasileiro exige uma prévia “causa provável” e uma finalidade definida para justificar qualquer tipo de investigação e colheita de provas, sob pena de nulidade dessas. Todas as violações a garantias constitucionais se dão em regime restrito, em geral, sendo necessária autorização judicial, com prévia definição de objeto: o que fazer? Com quem fazer? Por que fazer? Onde fazer? Como fazer? Fundamentado como? Todas essas perguntas devem ser respondidas em juízo antes do ato investigativo, a fim de se preservar a intimidade do investigado.

Assim, é possível citar alguns atos como claros exemplos da fishing expedition:

a) Busca e apreensão sem alvo definido, tangível e descrito no mandado (mandados genéricos);

b) Vasculhamento de todo o conteúdo do celular apreendido;

c) Continuidade da busca e apreensão depois de obtido o material objeto da diligência;

d) Investigações criminais dissimuladas de fiscalizações de órgãos públicos (Receita Federal, controladorias, Tribunais de Contas, órgãos públicos etc.);

e) Interceptação ou monitoramento por períodos longos de tempo;

f) Prisão temporária ou preventiva para “forçar” a descoberta ou colaboração premiada ou incriminação;

g) Buscas pessoais (ou residenciais) desprovidas de “fundada suspeita” prévia e objetiva;

h) Quebra de sigilo (bancário, fiscal, dados etc.) sem justificativa do período requisitado.

Observando esse rol de possibilidades, vemos que há uma certa semelhança entre a pescaria probatória e o encontro fortuito da prova. Entretanto, a diferenciação dos dois institutos está justamente na averiguação da legalidade da medida utilizada na persecução penal.

É, sim, necessário que haja a delimitação do objeto de investigação, o período, o alvo, a fundamentação e o método de colheita de provas para justificar uma ação investigativa. No entanto, se, durante essa ação e sem qualquer mudança de finalidade do agente em seu curso, forem encontradas provas que se refiram a terceiros ou a outro crime, não será considerada prova ilícita, pois a medida investigativa inicial, referente ao objeto inicial, se deu de maneira legítima, sendo apenas um “acaso” o encontro das demais provas.

Em resumo, a validade do encontro fortuito de provas está diretamente ligada à legalidade da investigação desde seu início. Se for comprovado que a ação investigativa foi conduzida de forma ilícita ou houve desvio de finalidade sem a devida autorização judicial, estaremos diante de uma “pescaria probatória”, prática proibida por lei. Nesse caso, as provas obtidas serão consideradas ilegais e, portanto, não poderão ser usadas para fundamentar a culpa do investigado, devendo ser excluídas do processo, conforme garantem os princípios da legalidade e do devido processo legal.

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PRESCRIÇÃO E JUSTIÇA: COMO OS MARCOS INTERRUPTIVOS IMPACTAM OS PROCESSOS DE COMPETÊNCIA DO JÚRI E A EXECUÇÃO PENAL

A prescrição penal é um instrumento essencial para assegurar a proteção dos direitos individuais e garantir a segurança jurídica no âmbito do direito penal brasileiro. Trata-se de um limite temporal imposto ao Estado para o exercício do seu direito de punir, refletindo a necessidade de equilibrar os interesses públicos e privados. Nos processos de execução de pena, especialmente no âmbito do Tribunal do Júri, a aplicação dos marcos interruptivos da prescrição desempenha um papel crucial na determinação do tempo máximo para a punição de um crime. A análise desses marcos revela como o sistema penal busca regular, de maneira justa e eficaz, o prazo para a execução de uma sentença, evitando a perpetuação indefinida do processo e assegurando o respeito às garantias constitucionais do apenado.

Quando esse lapso temporal é ultrapassado sem que a ação penal tenha sido efetivamente iniciada ou sem que a condenação tenha transitado em julgado, ou seja, sem que a decisão condenatória tenha se tornado definitiva e imutável, ocorre a extinção da pretensão punitiva do Estado. Isso significa que o Estado perde o direito de impor sanções penais ao acusado, consolidando-se, assim, uma proteção jurídica ao indivíduo contra a eternização dos processos penais e garantindo a observância dos princípios constitucionais de ampla defesa e razoável duração do processo.

Nesse sentido, a prescrição, ainda que observada sob a ótica do processo penal e constitucional, não se manifesta de igual maneira em todos os ritos, seja no ordinário, sumário, sumaríssimo ou Tribunal do Juri. Isso porque a prescrição depende do tipo penal praticado e da pena máxima que pode ser aplicada a ele, conforme o estabelecido no artigo 109 do Código de Processo Penal.

Mas não basta apenas saber qual o prazo prescricional, é também necessário saber contá-lo! Para isso, o CPP trouxe o artigo 117, o qual demonstra as causas interruptivas de prescrição, ou seja, os pontos “de partida” da contagem do tempo necessário para se alcançar a prescrição, e esse é o ponto mais importante para que se possa formular uma estratégia defensiva com foco na liberdade do indivíduo.

Dentre as hipóteses trazidas pelo artigo 117 do CPP relacionadas ao rito do Tribunal do Juri, temos as seguintes:

  • Pelo recebimento da denúncia ou queixa – O recebimento da denúncia ou queixa, conforme dispõe o artigo 117, I, do Código de Processo Penal, interrompe a prescrição. Essa é uma fase comum aos Ritos Sumário, Ordinário e do Juri em que o Magistrado, ao verificar que a denúncia preenche os critérios de admissibilidade, a recebe e determina que seja o réu citado.
  • Pela pronúncia e decisão confirmatória de pronúncia – A decisão de pronúncia, que ocorre ao final da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, é outro marco interruptivo relevante. A pronúncia confirma a admissibilidade da acusação e decide pela submissão do réu a julgamento perante o Júri Popular. Conforme o artigo 117, II e III, do Código de Processo Penal, a pronúncia e a decisão de confirmação de pronúncia interrompem a prescrição, recomeçando a contagem do prazo prescricional.
  • Pela sentença condenatória recorrível – A sentença condenatória recorrível, ainda que proferida por órgão singular, também interrompe a prescrição (art. 117, IV, do Código de Processo Penal). No âmbito do Tribunal do Júri, a sentença condenatória dos jurados que reconhecem a culpabilidade do réu pode ser sujeita a recursos, mas interrompe a prescrição quando é proferida.
  • Pelo acórdão condenatório de tribunal – A decisão condenatória em segunda instância também constitui um marco interruptivo da prescrição. O acórdão condenatório, mesmo que sujeito a recursos, interrompe a prescrição, conforme estabelece o artigo 117, IV, do Código de Processo Penal.

Dessa forma, são diversas as situações que interrompem a contagem do prazo prescricional. No entanto, não se deve olhar com superficialidade para as hipóteses trazidas pelo art. 117 do CPP, pois é justamente nas entrelinhas que se consegue desenvolver a melhor estratégia.

Um dos pontos que mais merece destaque ao tratar da prescrição em Tribunal do Juri, é aquele relacionado à decisão de pronúncia. Que ela é contada como marco interruptivo, isso é fato e está expresso em lei, bem como a decisão confirmatória de pronúncia, mas qual exatamente é o limite dessa “confirmação de pronúncia”?

Para entender melhor essa questão, o precedente HC nº 826.977/SP, julgado pelo STJ em dezembro de 2023, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, é extremamente didático quanto ao posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça.

A questão debatida girou em torno da possibilidade ou não de considerar acórdãos proferidos por tribunais superiores relativos à decisão de pronúncia como marco interruptivo da prescrição.

Em um primeiro momento, o Min. Relator Ribeiro Dantas se mostrou desfavorável ao pleito do paciente, sob justificativa de que a redação do art. 177, III do CPP não especifica o termo “decisão” ao determinar que a decisão que confirme a pronúncia será considerada marco interruptivo. Para o ministro, o termo referido é abrangente e engloba todos os atos decisórios que versem sobre a matéria da pronúncia, independente da fase processual que são proferidos.

No entanto, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca explicou a discordância sobre o posicionamento do Relator, ressaltando que a referida norma utilizada na fundamentação guarda estreita relação com a formação de culpa do indivíduo. Isso significa que, ao considerar que as decisões proferidas após o julgamento do Recurso em Sentido Estrito interposto frente à decisão de pronúncia, após a segunda instância, não há mais julgamento de mérito e, consequentemente, formação de culpa. Por isso, o termo “decisão” deveria ser interpretado de maneira restritiva quanto à configuração de marco interruptivo.

“Assim, não obstante a decisão proferida por esta Corte Superior revele ‘pleno exercício da jurisdição penal’, constata-se que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores não foram contempladas como causas interruptivas da prescrição, mas apenas aquelas emanadas das instâncias ordinárias. Trata-se de uma opção político-legislativa que, a meu ver, não pode ser desconsiderada mediante uma interpretação extensiva em uma matéria que deve ser interpretada restritivamente.”

Ressaltou, ainda, que o único caso em que recursos extraordinários deveriam configurar marco interruptivo de prescrição se dá somente quando estes reafirmam uma pronúncia anteriormente destituída.

Em concordância com esse posicionamento, o Min. Joel Ilan Paciornik apresentou mais 3 argumentos, sejam esses:

  1. Interpretação sistemática do CPP – observando a disposição dos demais incisos do artigo 117 do Código de Ritos, temos que há uma previsão legal expressa no inciso IV sobre a publicação de sentença condenatória ou acórdão recorrível.
  2. Análise restritiva à matéria de direito – ao contrário dos recursos de Apelação ou em Sentido Estrito, nos recursos interpostos aos tribunais superiores, “o objetivo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e a uniformidade na aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual que se sinta prejudicada e recorra por esses meios”. Dessa forma, como exposto anteriormente, não há aqui uma formação de culpa.
  3. Origem do instituto da prescrição como combate à inércia do Estado – por fim, foi demonstrado que, em casos de debate nos Tribunais Superiores sobre a decisão de pronúncia do acusado, não há um impedimento legal para o seguimento do feito em vista da ausência de efeito suspensivo dos recursos especiais e extraordinários (CPP, artigo 637), podendo ser marcada a sessão plenária ainda que tais razões recursais ainda não tenham sido julgadas. Mais uma vez, isso gira em torno da formação de culpa do indivíduo e a possibilidade de julgamento de mérito do feito. Caso, havendo a possibilidade de realização de julgamento perante o Tribunal do Juri, o Estado não o faça por inércia em marcar o julgamento, tal ônus não pode ser imputado ao acusado.

Nesse ínterim, o precedente formado foi pela desconsideração de julgamento de recursos nas instâncias superiores configurarem marco interruptivo da prescrição, haja vista a ausência de discussão de mérito.

Sob essa mesma perspectiva, surgiu o questionamento sobre a possibilidade de aplicação do entendimento quando em situação de decisão sobre embargos de declaração em RESE.

Ao analisar a natureza de embargos declaratórios, sabe-se que, de acordo com o artigo 619 do Código de Processo Penal, tem a finalidade de sanar qualquer ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão. Ou seja, não significa rediscutir o mérito do processo, não se reexamina a situação fática, mas tão somente tem a finalidade de esclarecer a sentença ou acórdão que foram embargados.

Dessa maneira, utilizando-se de uma interpretação extensiva do precedente acima exposto, temos que, em comunhão, ambas as situações não podem ser utilizadas para rediscussão do mérito, assim como não possuem previsão legal expressa no artigo 117 do CPP.

O entendimento dos Tribunais brasileiros é o de que as decisões que não analisem o mérito, principalmente as referentes à admissibilidade de recursos que tratam de matéria de direito, como embargos declaratórios, REsp, RE e agravos, não podem ser utilizadas como marco interruptivo da prescrição, pois não há uma impugnação direta da decisão de pronúncia, ao contrário do acórdão em RESE.

Trata-se de decisões de natureza mista, ou seja, é aquela que não resolve somente uma controvérsia entre as partes, como também encerra uma etapa do processo, mas sem julgar seu mérito. Dessa forma, é incoerente utilizar tais decisões como marco interruptivo da prescrição quando a principal finalidade da prescrição é evitar a inércia estatal para exercer seu direito de punir.

Além disso, o STJ decidiu no julgamento do HC 274.954/SC[6], sob relatoria do Min. Moura Ribeiro, que as causas de interrupção de prescrição presentes no artigo 117 do CPP são taxativas, não cabendo qualquer interpretação extensiva para além do que está expressamente descrito em lei.

No entanto, com a promulgação da Lei nº 13.964/2019[7], também conhecida como Pacote Anticrime, houve uma modificação no artigo 116 do Código Penal Brasileiro[8], incluindo, no inciso III do referido artigo, a possibilidade de suspensão do prazo prescricional antes do julgado da sentença final quando pendente embargos de declaração ou recursos nos Tribunais Superiores.

Mas, afinal, qual o impacto disso nos casos de execução de pena?

Ao observarmos o caso concreto referente ao processo de nº 0000799-03.2019.8.06.0077[9], o apenado se encontrava em cárcere privado cumprindo pena pela prática do delito tipificado no art. 121, caput, do Código Penal desde o trânsito em julgado da sentença, o que ocorreu em outubro de 2017.

No entanto, o fato delituoso ocorreu em junho de 2007, ocasião na qual o indivíduo possuía apenas 19 anos. A partir desse momento, em outubro do mesmo ano, a denúncia foi recebida, contando como primeiro marco interruptivo da prescrição. Posteriormente, a pronúncia se deu em janeiro de 2009.

Em novembro de 2009, após interposição de RESE contra a decisão de pronúncia, foi proferido acórdão confirmando a referida decisão, surgindo como mais um marco interruptivo da prescrição. Na sequência, foram opostos embargos declaratórios, os quais foram rejeitados em março de 2011.

O Apenado então fora submetido a julgamento em sessão plenária, restando condenado conforme sentença publicada em agosto de 2016. Tendo a defesa interposto Recurso de Apelação, que foi julgado em setembro de 2017, a condenação do Apenado transitou em julgado em outubro de 2017, culminando em uma pena de 6 anos e 6 meses.

Conforme já observado anteriormente, o tempo de prescrição obedece aos prazos estabelecidos no art. 109 do CPP. Todavia, neste caso em apreço, teremos que nos valer também do art. 115 do CPP, o qual trata sobre a redução em ½ do prazo prescricional na hipótese de ser o agente menor de 21 anos à época do fato.

Nesse sentido, considerando a pena de 6 anos e 6 meses in concreto, o prazo estabelecido pelo art. 109, III do CPP é o de 12 anos. No entanto, considerando que o agente era menor de 21 anos, nos termos do art. 115 do CPP, o prazo prescricional reduz para apenas 6 anos.

A partir disso, sobreveio à análise de qual marco interruptivo deveria ser considerado ao calcular a prescrição.

Considerando que o fato ocorreu anteriormente à alteração dada pelo Pacote Anticrime, o acórdão que deveria ser utilizado para calcular o lapso temporal entre o último marco interruptivo e a sentença condenatória é o de julgamento do RESE, e não o de julgamento dos embargos.

Assim, comprovando ao juízo da execução que o prazo prescricional do crime no caso concreto era de apenas 6 anos e o lapso temporal entre a decisão de julgamento do RESE e a sentença condenatória foi de 6 anos e 9 meses, ocorrendo assim a prescrição da pretensão punitiva.

Ou seja, considerando que a decisão foi proferida pelo juízo de execução somente em 2024 e que o indivíduo estava em regime semiaberto desde 2022 e posteriormente preso em 2024, temos um homem que perdeu 2 anos de sua vida ilegalmente.

No processo penal, não se trata apenas de nomes, datas ou procedimentos. O profissional do direito que atua no processo penal lida diretamente com vidas, e é imprescindível desenvolver o olhar aguçado para não permitir que esse tipo de ilegalidade se perpetue. Ninguém merece ter sua vida mudada, sua liberdade tolhida por um erro de cálculo e a inércia de defensores e julgadores.

O processo penal não pode ser conduzido de forma automatizada, desconsiderando os efeitos diretos sobre a liberdade e os direitos individuais dos acusados. Reconhecer a prescrição corretamente é essencial para evitar que erros de cálculo e a inércia dos atores jurídicos comprometam a justiça. Garantir a efetividade da prescrição é, acima de tudo, preservar as liberdades e a dignidade dos cidadãos diante do poder punitivo estatal.