CASO BOATE KISS: ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO ESPECIAL Nº 2.062.459

Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, localizada em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi cenário de uma das maiores tragédias da história recente do Brasil. Durante a festa universitária intitulada Agromerados, um artefato pirotécnico utilizado pela banda “Gurizada Fandangueira” causou um incêndio de grandes proporções. Em poucos minutos, o fogo consumiu a boate, resultando na morte de 242 pessoas e deixando mais de 600 feridos.

O caso gerou grande comoção pública e uma série de processos judiciais para apurar as responsabilidades dos envolvidos, incluindo os sócios da boate e integrantes da banda. Após anos de disputas jurídicas, o julgamento no Tribunal do Júri foi anulado por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), levando o Supremo Tribunal Federal (STF) a se pronunciar sobre o tema.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO CASO E DO PRIMEIRO JÚRI

O processo criminal contra Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann (sócios da Boate Kiss), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda) e Luciano Bonilha Leão (produtor musical) resultou na condenação dos réus em dezembro de 2021. O julgamento foi realizado pelo Tribunal do Júri, que estabeleceu penas variando entre 18 e 22 anos de reclusão para os acusados, com base na acusação de homicídio simples, em múltiplas instâncias (242 vezes consumado e 636 vezes tentado). No entanto, diversas nulidades processuais foram arguidas pelas defesas, culminando na anulação do julgamento pelo TJRS.

O TJRS identificou várias irregularidades, como a realização de sorteios suplementares de jurados, a falta de respeito aos prazos legais e a condução de uma reunião reservada entre o juiz e o Conselho de Sentença durante a sessão plenária, sem a presença da acusação e da defesa. Além disso, foi alegada a má formulação dos quesitos, violando o princípio da correlação entre denúncia, pronúncia e sentença.

2. AS PRINCIPAIS NULIDADES APONTADAS

A decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul baseou-se em três pontos principais para justificar a anulação do primeiro júri:

A) SORTEIOS DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO ART. 433, § 1º DO CPP: Os sorteios de jurados realizados de forma irregular, com prazos exíguos e fora dos limites estabelecidos pela lei, comprometeram o direito à ampla defesa. Foram realizados três sorteios (um principal e dois suplementares) que totalizaram 305 jurados, muito acima do limite legal de 25. A defesa argumentou que o número elevado de jurados, aliado ao tempo insuficiente para analisá-los, prejudicou o exercício do direito de recusa e a arguição de impedimentos e suspeições, configurando um prejuízo concreto para os réus.

B) REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS: Durante a sessão plenária, o juiz presidente do Tribunal do Júri interrompeu o julgamento para realizar uma reunião privada com os jurados, sem a presença das partes envolvidas, o que violou os princípios da transparência e do contraditório. O TJRS entendeu que esse ato, não previsto legalmente, constituiu uma nulidade absoluta, já que impediu as partes de impugnar o conteúdo da reunião, cujo teor permaneceu desconhecido.

C) FORMULAÇÃO DEFICIENTE DOS QUESITOS: A decisão também apontou nulidades nos quesitos formulados ao Conselho de Sentença. A formulação dos quesitos não respeitou o princípio da correlação, incluindo elementos que haviam sido excluídos na decisão de pronúncia anterior. Além disso, a linguagem utilizada nos quesitos era ambígua e dificultava a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, prejudicando os réus ao complicar a decisão dos jurados leigos.

3. JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL nº 2062459 PELO STJ

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ao julgar os recursos apresentados após a decisão que anulou o primeiro júri do caso Boate Kiss. O STJ avaliou as nulidades apontadas pela defesa dos réus e pelo Ministério Público, que questionaram a decisão do TJRS. O tribunal superior reafirmou a anulação do julgamento com base em três principais fundamentos:

  1. NÚMERO EXACERBADO DE JURADOS E VIOLAÇÃO DO PRAZO LEGAL

O STJ sustentou a nulidade referente ao número excessivo de jurados sorteados para compor o Conselho de Sentença, conforme alegado pela defesa e já reconhecido pelo TJRS. Embora o Ministério Público tenha argumentado que o aumento do número de jurados (de 25 para 305) foi justificado pelas circunstâncias da pandemia de COVID-19 e pela ausência de jurados, o STJ entendeu que as justificativas apresentadas não eram suficientes para ultrapassar o limite legal de 25 jurados.

Além disso, o tribunal destacou a falta de proporcionalidade entre o aumento no número de jurados e o tempo disponível para que a defesa realizasse a investigação necessária sobre os mesmos. Como resultado, o STJ concluiu que houve um efetivo prejuízo para a defesa, considerando a impossibilidade de conduzir uma investigação adequada dentro dos prazos reduzidos.

B)  REUNIÃO RESERVADA ENTRE JUIZ E JURADOS

O STJ também manteve o entendimento do TJRS quanto à nulidade da reunião reservada entre o juiz presidente do Tribunal do Júri e os jurados, realizada durante a sessão plenária, sem a presença do Ministério Público e das defesas. A defesa alegou que esse ato violou os princípios do contraditório e da transparência, resultando em uma nulidade absoluta.

O STJ concordou com essa interpretação, ressaltando que a falta de registro formal da reunião em ata, aliada ao fato de que as partes desconheciam o conteúdo do ato, configurou uma violação séria aos princípios constitucionais e processuais. O tribunal considerou que a gravação de som e imagem da sessão não foi suficiente para afastar a necessidade de um registro formal e a possibilidade de impugnação pelas partes.

C) UTILIZAÇÃO INADEQUADA DE PROVAS E INOVAÇÕES ACUSATÓRIAS

Outro ponto relevante analisado pelo STJ foi a utilização inadequada de provas e inovações acusatórias. A defesa alegou que o Ministério Público teria inovado ao introduzir novos elementos acusatórios em suas réplicas, sem que essas novas alegações fossem previstas ou previamente apresentadas durante o processo. Por exemplo, o uso de uma maquete digital em 3D pela acusação para ilustrar a dinâmica do incêndio foi questionado pela defesa, que argumentou que tal inovação poderia ter influenciado indevidamente a decisão dos jurados, uma vez que estes julgam segundo sua íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar seus votos.

O STJ aceitou esse argumento, reconhecendo que a introdução tardia de novas provas e argumentos pela acusação, sem oportunidade adequada de contraditório, poderia prejudicar a defesa, constituindo mais um motivo para anular o julgamento.

D) VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA CONGRUÊNCIA E HIERARQUIA DAS DECISÕES JUDICIAIS

O STJ também reconheceu a nulidade por violação do princípio da congruência e da hierarquia das decisões judiciais. A decisão do TJRS havia destacado que, durante o julgamento, houve inserção de imputações nos quesitos dirigidos aos jurados que não haviam sido admitidas na decisão de pronúncia, violando o princípio da correlação entre a denúncia e a pronúncia, além da hierarquia das decisões judiciais do Tribunal de Justiça.

O STJ concordou que essa falha constituía uma nulidade absoluta, capaz de gerar perplexidade nos jurados e comprometer a imparcialidade do julgamento, justificando assim a superação do óbice da preclusão.

4. DECISÃO DO STF E O RESTABELECIMENTO DO JULGAMENTO

O caso chegou ao STF por meio de recursos extraordinários interpostos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) e Réu Luciano Bonilha Leão, que apresentaram suas razões. O relator, Ministro Dias Toffoli, ao analisar o recurso, concluiu pela inexistência das nulidades apontadas, afastando os argumentos utilizados pelo TJRS e STJ.

a) Sorteios de Jurados: O STF considerou que não houve cerceamento da defesa relacionado ao sorteio de jurados. Argumentou-se que a irregularidade apontada se referia ao último sorteio realizado em 24/11/2021, do qual nenhum dos jurados sorteados compôs o Conselho de Sentença. Dessa forma, não se verificou qualquer prejuízo concreto para os réus, e a preclusão quanto a essa nulidade foi reconhecida, visto que a única insurgência apresentada se limitou a uma manifestação genérica do réu Elissandro em plenário, sem especificar qualquer ilegalidade.

b) Reunião Reservada entre Juiz e Jurados: Em relação à reunião reservada, o STF entendeu que não se configurou nulidade processual. Segundo o relator, a ausência de um registro formal em ata foi suprida pela gravação em vídeo da sessão, o que afastou a necessidade de uma impugnação formal pela defesa no momento da realização do ato.

c) Quesitação: Sobre a má formulação dos quesitos, a Corte Suprema considerou que as nulidades apontadas eram preclusas, pois não foram oportunamente apresentadas pelas defesas durante o julgamento. O STF reforçou que, conforme o artigo 571, VIII, do Código de Processo Penal, eventuais nulidades devem ser arguidas imediatamente, sob pena de preclusão.

4. Implicações da Decisão do STF

A decisão do STF, ao afastar as nulidades apontadas e restabelecer o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri, representa um marco importante para a jurisprudência brasileira sobre o funcionamento e as garantias processuais no Tribunal do Júri. Ao enfatizar a necessidade de demonstração de prejuízo concreto para a anulação de um julgamento, o STF reforça a importância de um equilíbrio entre a garantia dos direitos constitucionais dos réus e a manutenção da soberania dos veredictos do júri.

O entendimento do STF também evidencia a relevância de se observar rigorosamente os procedimentos legais no âmbito do Tribunal do Júri, particularmente em casos de grande repercussão social e complexidade, como o da Boate Kiss. A decisão do STF destacou o papel do Tribunal do Júri como guardião dos direitos fundamentais e do devido processo legal, enquanto reafirmou a necessidade de transparência e observância dos princípios acusatórios.

5. Considerações Finais

A decisão do STF no Recurso Extraordinário 1.486.671/RS é emblemática por diversos motivos. Primeiramente, ela reafirma a soberania do júri e a necessidade de respeito às formalidades processuais no contexto do Tribunal do Júri. Em segundo lugar, ela reforça a ideia de que as nulidades processuais só podem ser reconhecidas quando houver demonstração de prejuízo concreto à defesa, o que, mesmo com tamanha comprovação, o ministro relator insiste em, numa tentativa de dar uma resposta social, flexibilizar as garantias penais e constitucionais vigentes.

Importante destacar que, ainda que o ministro relator tenha determinado a prisão preventiva dos acusados e dado parcial provimento ao recurso da acusação, isso não significa que o processo acabou. É necessário observar o cabimento de agravo à decisão, a fim de requisitar uma análise colegiada do caso, principalmente tendo em vista a complexidade do caso e a necessidade de se analisar cada mínimo detalhe.

Além disso, como se pode perceber, os recursos interpostos até o presente momento tão somente abordaram questões preliminares de nulidade, não adentrando no mérito da questão, o que deve ser avaliado em julgamento de apelação. Assim, com a remessa dos autos ao TJRS após o indeferimento do pleito defensivo no STF, ainda haverá a possibilidade de análise do mérito tanto pelo TJRS, quando pelos Tribunais Superiores, garantindo, pelo menos, o duplo grau de jurisdição.

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ASPECTOS PRÁTICOS DO DEPOIMENTO ESPECIAL EM CRIMES DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Ao abordar os crimes sexuais contra vulneráveis, conforme os artigos 217 a 218-C do Código Penal, é imprescindível o entendimento de que, além da sensibilidade natural que os crimes sexuais exigem tanto da defesa quanto da acusação, os atos praticados contra crianças demandam uma postura ainda mais criteriosa por parte dos profissionais envolvidos.

A Constituição Federal, em seu artigo 227, consagra a proteção integral da criança e do adolescente como um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, princípio este que foi subsequentemente ratificado pela Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), além de outras legislações que visam resguardar a integridade do menor em todos os âmbitos de sua vida.

Neste contexto, à luz do conceito de “revitimização”, conforme abordado pela Vitimologia[1] — ramo da criminologia dedicado ao estudo da vítima, de sua personalidade e estatuto psicossocial, e dos efeitos psicológicos resultantes do crime — foi instituído pela Lei nº 13.431/2017 o Depoimento Especial. Essa legislação visa garantir parâmetros claros e objetivos para a coleta de depoimentos de crianças e adolescentes em casos de crimes sexuais, com especial atenção para a preservação do bem-estar psicológico da vítima.

A Lei do Depoimento Especial pode ser vista como parte do “microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas”, que inclui a Lei nº 14.245/21 (Lei Mariana Ferrer), a Lei 14.321/2022 (tipifica o crime de violência institucional), a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a recente Lei 14.344/22 (Lei Henry Borel), as quais consolidam mecanismos de adaptação do ordenamento jurídico brasileiro às necessidades da vítima, tratada a partir disso não apenas como um meio de prova para o Estado, mas como sujeito processual ativo com direitos próprios.

Como amplamente reconhecido, o depoimento pessoal da vítima em crimes sexuais possui elevado valor probante, sendo diferenciado em relação aos laudos periciais e depoimentos testemunhais. No entanto, justamente por reconhecer a necessidade de ouvir a vítima e o peso de suas palavras, é fundamental empregar técnicas especiais para a coleta desses depoimentos.

Ao tratarmos de crianças, surge um obstáculo ainda maior relacionado à formação de memórias e ao processo de verbalização da situação vivida, pois muitas vezes elas sequer entendem o que aconteceu. No contexto forense, frequentemente nos deparamos com um dos fenômenos mais prejudiciais à precisão da memória e, consequentemente, à confiabilidade da prova testemunhal infantil: a sugestionabilidade. Compreender os efeitos da sugestionabilidade em diferentes faixas etárias é crucial, pois esse fenômeno tem implicações práticas significativas no campo jurídico, especialmente no modo como os questionamentos são feitos e repetidos.

A distorção da memória é um fator crítico em casos legais, pois impacta diretamente a credibilidade dos testemunhos. Há uma vasta quantidade de pesquisas que corroboram a ideia de que entrevistas sugestivas podem levar a níveis mais elevados de falsas memórias, especialmente em crianças com menos de 5 anos de idade.

Nos crimes sexuais, devido à natureza intrínseca do delito, há uma escassez de evidências físicas, tornando os relatos das vítimas a principal fonte de prova. A vítima, portanto, torna-se uma peça-chave na investigação do crime. Dessa forma, é essencial tratar da questão da prova testemunhal, da oitiva da criança e dos efeitos que podem distorcer seu testemunho. A prova testemunhal infantil deve ser cuidadosamente analisada para confirmar ou refutar a existência de suporte factual ao delito sexual, sendo a credibilidade do relato da criança e a sua confrontação com as demais provas essenciais para fundamentar a decisão judicial.

No entanto, o depoimento infantil pode apresentar falhas psicológicas que comprometem a formação de um juízo de plena certeza sobre determinados fatos de relevância jurídico-penal. Tais falhas constituem uma ameaça à veracidade do testemunho infantil, razão pela qual, apenas em situações excepcionais, o depoimento de uma criança deve ser considerado como prova suficiente para a condenação penal.

Quando crianças são questionadas em contextos forenses ou chamadas a testemunhar em processos judiciais, frequentemente são convidadas a relatar incidentes extremamente angustiantes ou traumáticos que vivenciaram ou presenciaram. O ambiente formal e intimidante, aliado à falta de capacitação técnica de muitos profissionais envolvidos, pode transformar essa experiência em algo ainda mais traumático que o próprio ato vitimizador. Esse trauma reflete-se diretamente em seu testemunho, resultando, por vezes, na incapacidade da criança de relatar os fatos com precisão, ou levando-a a ajustar seu relato às expectativas dos questionadores, respondendo a perguntas sugestivas e intimidadoras.

Assim, é crucial reconhecer os benefícios do depoimento especial tanto para a vítima, que não precisa reviver constantemente a situação constrangedora e degradante ao repetir sua história, quanto para a defesa, que evita que a vítima crie falsas memórias ao repetir múltiplas vezes uma versão dos fatos, frequentemente conduzida pela acusação, sob uma ótica distorcida que a vítima, em si, não consegue diferenciar da realidade.

Mas, afinal, como é colhido o depoimento especial? É a mesma coisa da escuta especializada?

Ambos os institutos estão contidos na Lei 13.431/2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente- SGDCA. Todavia, a diferença consiste na finalidade do depoimento colhido e no local.

Quando tratamos da escuta especializada, ela se refere à entrevista sobre uma possível situação de violência contra criança ou adolescente, com o intuito de garantir a proteção e o cuidado da vítima. Pode ser realizada pelas instituições da rede de promoção e proteção, formada por profissionais da educação e da saúde, conselhos tutelares, serviços de assistência social, entre outros.

Em contrapartida, o depoimento especial é a oitiva da vítima, criança ou adolescente, perante a autoridade policial ou judiciária. Tem caráter investigativo, no sentido de apurar possíveis situações de violência sofridas. Todos os passos do procedimento estão descritos no artigo 12 da Lei 13.431/2017:

Vejamos:

Art. 12. O depoimento especial será colhido conforme o seguinte procedimento:

I – os profissionais especializados esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais;

II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos;

III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo;

IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco;

V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente;

VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo.

§ 1º À vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender.

§ 2º O juiz tomará todas as medidas apropriadas para a preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.

§ 3º O profissional especializado comunicará ao juiz se verificar que a presença, na sala de audiência, do autor da violência pode prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco, caso em que, fazendo constar em termo, será autorizado o afastamento do imputado.

§ 4º Nas hipóteses em que houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha, o juiz tomará as medidas de proteção cabíveis, inclusive a restrição do disposto nos incisos III e VI deste artigo.

§ 5º As condições de preservação e de segurança da mídia relativa ao depoimento da criança ou do adolescente serão objeto de regulamentação, de forma a garantir o direito à intimidade e à privacidade da vítima ou testemunha.

§ 6º O depoimento especial tramitará em segredo de justiça.

 Dessa forma, o principal ponto do depoimento especial é a oitiva da vítima pelo profissional especializado, utilizando-se de técnicas adequadas para a oitiva mais objetiva possível, a fim de evitar possíveis distorções na narrativa e uma revitimização da criança ou adolescente.

Todavia, o texto legal não especifica qual técnica deve ser utilizada e nem qual profissional é entendido como especializado para realizar tal procedimento.

Em termos de profissional, o mais comum é que estejam presentes um assistente social ou psicólogo, pela proximidade com as questões a serem abordadas. Os agentes jurídicos indispensáveis à produção válida da prova muitas vezes não possuem capacidade técnica para a oitiva dessas crianças, especialmente quando se trata de abuso sexual, tampouco conhecimento sobre os diferentes estágios de desenvolvimento infantil, síndromes, além do ambiente formal da sala de audiências, que não são preparadas para o correto acolhimento dessa criança vítima.

Já em relação à técnica utilizada, não se segue um modelo único, mas são desenvolvidos diversos estudos no campo da Psicologia do Testemunho para adequar ao caso concreto as melhores estratégias. No que diz respeito à linguagem, recomenda-se o uso de voz ativa, palavras e frases simples, a evitação de duplos negativos e perguntas múltiplas, além de assegurar que a criança compreenda plenamente a pergunta feita.

O protocolo NICHD, por exemplo, utiliza técnicas semelhantes às da entrevista cognitiva. Contudo, em relação ao testemunho infantil, este protocolo se mostra mais adequado, pois emprega técnicas que facilitam o acesso à memória episódica, aumentando a quantidade de informações e detalhes obtidos durante a entrevista com as crianças.

O protocolo NICHD (National Institute of Child Health and Human Development) foi desenvolvido como um conjunto estruturado de diretrizes para conduzir entrevistas forenses com crianças vítimas ou testemunhas de crimes. Sua origem está atrelada ao trabalho de pesquisadores e psicólogos especializados na área de Psicologia do Testemunho, que buscavam uma maneira de minimizar a sugestibilidade infantil e maximizar a precisão e a confiabilidade dos depoimentos colhidos de crianças.

A utilidade do protocolo NICHD reside na sua capacidade de orientar os entrevistadores a conduzir a entrevista de maneira que seja respeitosa e apropriada para a idade da criança, ao mesmo tempo em que extrai informações detalhadas e factuais sobre os eventos vivenciados. O protocolo é baseado em técnicas que favorecem o acesso à memória episódica, encorajando a criança a relatar o que aconteceu em suas próprias palavras, sem interferências indevidas por parte do entrevistador.

O protocolo NICHD enfatiza o uso de perguntas abertas e do relato livre (por exemplo, “diga-me tudo o que aconteceu”, “diga-me tudo o que você pode sobre isso”, “diga-me mais”).  Além do relato livre e das questões abertas, visando a não contaminação da memória da criança, o entrevistador somente faz referência a detalhes mencionados pelo infante, utilizando as mesmas palavras usadas. Perguntas sugestivas são fortemente desencorajadas na utilização do protocolo.

O Depoimento Especial, instituído pela Lei nº 13.431/2017, e anteriormente chamado de depoimento sem danos, é o procedimento de escuta realizada com o uso de técnicas não indutivas, através de intermediários (psicólogos ou assistentes sociais) que, em tese, teriam familiaridade em sua formação ou com treinamento específico, voltado aos aspectos cognitivos e sociais de crianças e adolescentes.

Nesse sentido, a criança tem consciência de que está sendo gravada e é livre para, de acordo com a condução do profissional, se abrir sobre a situação.

Corroborando com a determinação legal, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará normatizou, por meio do provimento 00015/2023, como deveria ser realizado a colheita de depoimento pessoal. No texto do provimento, ressalta que deve se preservar a ampla defesa e o contraditório sem, contudo, relativizar as garantias fundamentais do menor. Assim, a colheita do depoimento se dá por ocasião de Antecipação de Prova, mediante celebração de Acordo de Cooperação Técnica Institucional. Ainda, estabelece que é uma obrigatoriedade do Magistrado velar pela estrita observância do direito de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências a serem ouvidas.

Em sala adequada e com profissional devidamente capacitado pelo TJCE ou CNJ, a técnica aplicada nos processos de competência do Estado do Ceará utilização o PROTOCOLO BRASILEIRO DE ENTREVISTA FORENSE – PBEF, a ser realizado em dois estágios. Vejamos:

I – Estágio 1 – refere-se à construção do vínculo entre depoente e Entrevistador Forense, bem como, ao esclarecimento das regras e diretrizes para a condução da entrevista, sendo composto pelas seguintes fases:

a) Introdução;

b) Construção da empatia;

c) Regras básicas/Diretrizes;

d) Prática narrativa; e

e) Diálogos sobre a família.

II –  Estágio 2 – refere-se à parte substantiva, momento em que ocorre o relato sobre a situação de violência, sendo composto das seguintes fases:

 a) Transição;

b) Descrição narrativa;

c) Seguimento e detalhamento;

d) Interação com a sala de audiência ou sala de observação; e

e) Fechamento.

Ainda, considerando que o Magistrado deve estar em observância pelo direito da criança e do adolescente, caberá a ele determinar, mediante requisição do profissional capacitado, decidir pela presença do réu, dos pais da vítima ou de demais pessoas interessadas no processo.

Dessa maneira, a resolução determina que o procedimento inicial deve se dar somente com a intervenção do entrevistador forense, sem qualquer interrupção, e com perguntas baseadas unicamente no que a criança ou adolescente verbalizou, a fim de evitar sugestionabilidade. Fica vedado ao entrevistador também confrontar à vítima ou testemunha sobre qualquer contradição com versão anteriormente relatada em outro órgão do Sistema de Justiça ou Rede de Proteção, sob pena de causar prejuízo emocional, constrangimento e revitimização.

Assim, a instituição de colheita de depoimento especial vem como uma forma de garantir que, tanto em benefício da defesa quanto da acusação, sejam empregadas técnicas corretas da oitiva de crianças e adolescentes em clara situação de vulnerabilidade diante de crime sexual, sem a manipulação dos fatos.

Para a defesa, é muito importante ter discernimento do que é considerado relevante ao procedimento, a fim de evitar o constrangimento da vítima e reiterados indeferimentos de perguntas pelo Magistrado. Formular perguntas sem desqualificar o caráter da vítima, mas sim a coesão e coerência da sua narrativa dos fatos.

Em suma, o depoimento especial apenas trouxe mais uma variável para a oitiva de crianças e adolescentes a fim de tornar a sua fala o mais clara, objetiva e não manipulável possível dentro da persecução penal, garantindo a integridade pessoal da vítima e um julgamento sem subjetivismo da acusação para imputar uma culpa inexistente ao acusado inocente.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 21 ago. 2024.

Brasil. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 abr. 2017.

BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 nov. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14245.htm. Acesso em: 21 ago. 2024

Brasil. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Resolução nº 03/2019. Dispõe sobre a realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Fortaleza: TJCE, 2019.

BROWN, Deirdre A. et al. The NICHD investigative interview protocol: an analogue study. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 19, n. 4, p. 367, 2013, p. 370.

CONJUR. A questão de gênero no depoimento especial de adulto vítima de crime sexual. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-17/questao-genero-depoimento-especial-adulto-vitima-crime-sexual/. Acesso em: 21 ago. 2024.

EZAR, José Antônio Daltoé. A inquirição de crianças vítimas de abuso sexual em Juízo. In: DIAS, Maria Berenice. (coord.). Incesto e Alienação Parental: realidades que a justiça insiste em não ver. São Paulo: RT, 2010, p. 286.

MORENO DO AMARAL, Mariana; NORONHA DE ÁVILA, Gustavo. DEPOIMENTO ESPECIAL E VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTIL: UM OLHAR A PARTIR DA PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO. Revista Jurídica Cesumar: Mestrado, v. 22, n. 1, 2022.


[1] A criminologia, que inicialmente não tinha olhos para a figura da vítima, passou a estudar a pessoa sobre quem recai a conduta criminosa. Surgiu, assim, a vitimologia. Temos aqui uma considerável guinada. Essas pessoas que antes eram consideradas objeto ou meio de prova, passam a ser encaradas como sujeitos da persecução penal. São reconhecidas como pessoas dotadas de dignidade e que, como tal, merecem proteção e até mesmo acolhimento do sistema em um momento de extrema vulnerabilidade.

STALKING: COMPREENDENDO O CRIME E SUAS IMPLICAÇÕES LEGAIS NO BRASIL

O artigo 147-A do Código Penal brasileiro[i], que define o crime de stalking, marca um avanço significativo no ordenamento jurídico nacional ao abordar, de maneira detalhada e específica, a perseguição reiterada que ameaça a integridade física ou psicológica de uma pessoa, além de invadir ou perturbar sua liberdade ou privacidade.

Este tipo de comportamento, embora reconhecido internacionalmente como prejudicial e intrusivo, só foi formalmente tipificado no Brasil pela Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021[ii]. A introdução desse dispositivo legal reflete uma resposta legislativa necessária às crescentes preocupações com a segurança e o bem-estar das vítimas de stalking, proporcionando uma base legal sólida para a punição e prevenção desses atos nocivos. A pena estipulada de reclusão de 6 meses a 2 anos, além de multa, demonstra a seriedade com que o legislador encara esse tipo de violência, buscando garantir uma resposta adequada e proporcional aos danos causados por essa conduta reprovável.

O crime de stalking é considerado uma ação penal pública condicionada à representação da vítima. Em termos práticos, isso implica que a vítima precisa formalizar a denúncia para que o Ministério Público possa iniciar o processo contra o agressor. A prática demonstra que as vítimas enfrentam diversos desafios ao tentar denunciar tais casos, incluindo o medo de retaliação por parte do agressor e a carência de suporte adequado para lidar com a situação.

A legislação brasileira prevê uma série de medidas protetivas destinadas às vítimas de stalking. Entre essas medidas estão a restrição de contato e aproximação por parte do agressor. Essas proteções são fundamentais para garantir a segurança das vítimas e sublinham a importância de um sistema de apoio eficiente, capaz de oferecer o suporte necessário durante todo o processo judicial e além dele.

Todavia, não é qualquer comportamento que pode ser considerado stalking. Para que se enquadre nesse tipo penal, é necessário obedecer a uma série de requisitos, denominados elementos do crime. No caso do stalking, os elementos do crime são:

  • Ato de Perseguir Reiteradamente: A perseguição deve ser contínua, caracterizada por repetição. Não é suficiente um único ato isolado; deve haver uma série de ações que configurem uma perseguição persistente.
  • Meio de Perseguição: A perseguição pode ocorrer de diversas maneiras, incluindo presencialmente, por telefone, por meio de mensagens de texto, redes sociais, entre outros métodos.
  • Intenção de Ameaçar ou Perturbar: A ação deve ter a intenção clara de ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima, ou de invadir ou perturbar sua liberdade ou privacidade. Essa intenção pode se manifestar por meio de seguimentos na rua, envio constante de mensagens, ligações frequentes e outras formas de contato indesejado.

Em relação ao aumento de pena, a legislação prevê que a pena para o crime de stalking pode ser aumentada em até 50% em determinadas circunstâncias específicas, conforme estabelecido no § 1º do artigo 147-A:

  • Se o crime é cometido contra uma criança, adolescente ou idoso.
  • Se o crime é cometido contra uma mulher em razão de sua condição de sexo feminino, caracterizando-se como violência de gênero.
  • Se o crime é cometido com o concurso de duas ou mais pessoas.
  • Se o crime é cometido com o uso de arma.

Essas circunstâncias agravantes refletem a gravidade do crime em contextos específicos e a necessidade de uma resposta penal mais severa para garantir a proteção das vítimas.

Portanto, conclui-se que o crime de stalking representa uma grave violação dos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade das vítimas. A legislação brasileira, ao tipificar e punir essa conduta, busca não apenas proteger as vítimas, mas também assegurar que os agressores sejam responsabilizados de forma adequada. No entanto, a efetividade dessa proteção legal depende, essencialmente, da disposição das vítimas em denunciar os agressores e da correta aplicação das medidas protetivas e punitivas previstas na lei. Esse arcabouço legal destaca a necessidade de um suporte contínuo e robusto às vítimas, visando garantir que a justiça seja plenamente alcançada.

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[i] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 25 jun. 2024.

[ii] BRASIL. Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14132.htm. Acesso em: 25 jun. 2024.

RECONHECIMENTO PESSOAL E FOTOGRÁFICO NO PROCESSO PENAL: DESAFIOS DA DEFESA FRENTE ÀS RESISTÊNCIAS NOS TRIBUNAIS E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ

  1. INTRODUÇÃO

O reconhecimento de pessoas, especialmente nas modalidades pessoal e fotográfica, tem um papel crucial na elucidação de crimes. No entanto, como demonstrado por pesquisa recente realizada pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1], essa ferramenta investigativa ainda enfrenta desafios significativos em sua aplicação prática, especialmente no que se refere à observância das formalidades previstas nos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal (CPP).

O levantamento, conduzido pelo gabinete do ministro Rogério Schietti Cruz, reforça a necessidade de atenção redobrada por parte das autoridades investigativas e judiciais no manejo dessas provas. Assim o é, pois, em 2023, o STJ revogou 377 prisões provisórias ou absolveu réus devido a falhas no reconhecimento como autores de crimes. Desses casos, 74,6% estavam relacionados a erros em reconhecimentos fotográficos.

No que diz respeito a previsão legal do ato, como qualquer procedimento investigatório apto a produzir provas contra o investigado, o reconhecimento, em ambas as modalidades, deve ser observadas as formalidades constantes no Código de Processo Penal, nos artigos 226 a 228. Vejamos

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

  Art. 227.  No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.

  Art. 228.  Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.

Assim, quanto ao reconhecimento pessoal, o art. 226 disciplina mais detalhadamente como se deve proceder. No entanto, apesar do referido artigo determinar que se trata de reconhecimento pessoal, há também a possibilidade de reconhecimento fotográfico, quando observadas as mesmas determinações.

No que tange às exigências estabelecidas pelo Código de Processo Penal, pondera Aury Lopes Júnior que tais cuidados não podem ser considerados meras formalidades desprovidas de utilidade. Ao contrário, constituem “condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo diretamente na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país” (Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 490).

Nesse sentido, alerta o renomado processualista:

Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado (op. cit., 2017, p. 488, grifei).

m conclusão, é imprescindível reconhecer que, no processo penal, a forma não é um mero formalismo, mas uma garantia essencial à proteção dos direitos fundamentais. Como bem alerta a doutrina, o reconhecimento pessoal ou fotográfico constitui uma prova cuja produção deve observar rigorosamente as formalidades legais, sob pena de comprometer a credibilidade do sistema judiciário.

A prática de “reconhecimentos informais”, frequentemente admitida sob o manto do princípio do livre convencimento motivado, não apenas afronta o artigo 226 do Código de Processo Penal, mas também fragiliza a segurança jurídica e aumenta o risco de erros judiciários. Assim, o respeito aos ritos previstos em lei deve ser visto como um compromisso com a justiça e com a confiabilidade das decisões judiciais.

  • RECONHECIMENTO E O VALOR PROBATÓRIO: MUDANÇA DE PARADIGMA PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Até recentemente, o STJ entendia que o reconhecimento fotográfico ou presencial realizado na fase de inquérito policial poderia ser suficiente para embasar a autoria delitiva, mesmo quando não observadas as formalidades legais previstas no artigo 226 do CPP. Essa posição tratava os requisitos formais como “mera recomendação”, o que reduzia o controle sobre a qualidade do ato e abria espaço para questionamentos sobre a sua validade.

Contudo, essa visão foi substancialmente alterada pelo julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC, ocorrido em 27 de outubro de 2020, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz. Nesse marco decisório, a Sexta Turma do STJ reconheceu que o artigo 226 do CPP não configura mera recomendação, mas rito obrigatório, cuja inobservância torna o reconhecimento inválido e incapaz de sustentar uma condenação, ainda que posteriormente confirmado em juízo.

A decisão destacou que, diante dos riscos de erros associados ao reconhecimento de pessoas, é essencial cumprir rigorosamente as etapas previstas no CPP, incluindo a descrição prévia do suspeito pelo reconhecedor e a apresentação do investigado junto a outras pessoas com características semelhantes.

Decisões recentes do STF ilustram essa mudança do entendimento jurisprudencial. O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem reconhecido a necessidade de rigor no reconhecimento de pessoas. No julgamento do Habeas Corpus nº 172.606/SP, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, absolveu o réu em razão de a condenação ter sido embasada exclusivamente em reconhecimento fotográfico realizado na fase policial.

De igual modo, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 206.846/SP, concluído em 23 de fevereiro de 2022, a Segunda Turma do STF absolveu um réu preso com base em reconhecimento fotográfico, considerando a nulidade do ato e a ausência de outras provas que sustentassem a condenação.

  • DOS PROCEDIMENTOS A SEREM OBSERVADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL PARA O RECONHECIMENTO DE PESSOAS

DESCRIÇÃO DO INDIVÍDUO ANTERIOR AO RECONHECIMENTO: Ao prestar queixa junto à autoridade policial, a vítima ou testemunha deve primeiramente descrever o indivíduo. Por quê? Veja, ao partir diretamente para o reconhecimento pessoal ou fotográfico, a autoridade policial demonstra parcialidade diante da situação, dizendo implicitamente que, pelos seus conhecimentos de trabalho, já sabe quem poderia ter cometido tal crime e induzir a vítima a responder afirmativamente nessa situação. Portanto, a descrição prévia do indivíduo a ser reconhecido se faz necessária para demonstrar a imparcialidade da autoridade.

O INDIVÍDUO A SER RECONHECIDO SERÁ POSTO AO LADO DE DEMAIS COM CARACTERÍSTICAS SEMELHANTES: Mais uma medida para evitar a parcialidade da autoridade policial e a influência da vítima. Nesse caso, é importante que o indivíduo a ser reconhecido, após a descrição de suas características, seja posto ao lado de pessoas semelhantes. E isso não se restringe somente ao reconhecimento pessoal. No que tange ao reconhecimento fotográfico, este deve acontecer em sede de delegacia e por meio da apresentação do indivíduo entre diversos outros, para que não haja demonstração de “preferência” por parte da autoridade policial.

LAVRATURA DE TERMO PORMENORIZADO PELA AUTORIDADE POLICIAL: Constante no art. 226, IV do CPP, a norma processual se refere a necessidade de documentar o procedimento de identificação, necessitando de pelo menos duas testemunhas no momento, a fim de passar maior credibilidade ao ato.

Nesse interim, há de se questionar o porquê de tamanhos cuidados para a valoração de tal prova, e a resposta é bem simples: a memória humana é falha e pode ser facilmente manipulada, principalmente após eventos impactantes – como ser vítima de um crime.

Desse modo, é necessário observar que o principal ponto ao tratar de reconhecimento e a sua validade é a memória da vítima.

Observando isso, são necessários analisar 4 fatores que podem aumentar ou diminuir a confiabilidade da palavra da vítima no momento do reconhecimento, sejam estes:

  1. o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor (tempo de duração do evento criminoso);
  2. a gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento;
  3. as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos, aspectos geográficos etc.);
  4. a natureza do crime (com ou sem violência física, grau de violência psicológica etc.)

Todos esses fatores são importantes porque interferem diretamente na confiabilidade do reconhecimento da vítima, e é justamente por ser um procedimento sujeito a falhas que se faz tão importante que o disposto no art. 226 do CPP seja seguido a risca, a fim de minimizar erros e resguardar a integridade do indivíduo.

  • FALSAS MEMÓRIAS E RISCOS DE INJUSTIÇAS NO RECONHECIMENTO

Fato é que há diversos estudos, notadamente no campo da Psicologia moderna, que demonstram as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Os estudos indicam que a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível quando comparada à essência do evento. Ao mesmo tempo, as falsas memórias podem ser mais resistentes do que as verdadeiras, com relatos mais vívidos em testes de recordação (REYNA, V. F.; LLOYD, F. F. Theories of false memory in children and adults. Learning and Individual Differences, 9, 1997, 95-123).

Em abono a tal conclusão, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea aponta que as falsas memórias podem ser mais detalhadas do que as verdadeiras; são criadas por processos internos da própria pessoa ou por intermédio de informações implantadas pelo ambiente externo (Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Série Pensando o Direito, n. 59, Brasília: Ministério da Justiça, 2015, p. 23). Nesse contexto, vale mencionar a interessante conclusão de pesquisa realizada nos Estados Unidos, conduzida pelo professor Brandon Garrett, a qual apontou que a repetição de procedimentos de identificação não confere maior grau de confiabilidade a um reconhecimento.

Há, no entanto, correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva. Em amostra com 161 condenações de inocentes revertidas após a realização de exame de DNA, 57% dos casos contaram com mais de um procedimento de identificação: a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não tinha certeza quanto à autoria do delito e que passou a reconhecer o acusado somente depois do primeiro reconhecimento (Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).

Daí a razão pela qual as psicólogas Nancy K. Steblay e Jennifer E. Dysart recomendam não só que sejam evitados procedimentos de identificação que usam um mesmo suspeito como também que identificações produzidas por procedimentos repetidos não sejam consideradas tão confiáveis, justamente porque quanto mais vezes uma testemunha for solicitada a reconhecer uma mesma pessoa, mais provável ela desenvolver falsa memória a seu respeito (STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennier. E. Repeated eyewitness identification procedures with the same suspect. Journal of Applied Research in Memory and Cognition apud Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).

De todo modo, é válido afirmar que, seguindo o disposto no art. 226 do CPP, o reconhecimento pessoal é válido, mas não tem valor probante absoluto, precisa ser coerente com as demais provas colhidas em sede de juízo. Já o procedimento que não se atenta à norma processual, não será considerada válida e não poderá ser utilizada para justificar qualquer lastro de autoria.

Dessa forma, tendo com base no exame de processos julgados desde a data do acórdão proferido no HC n. 598.886/SC – 27/10/2020 – até 19/12/2021, período em que se contabilizaram pelo menos 28 acórdãos das duas Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte e 61 decisões monocráticas que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva, em razão de fundadas dúvidas sobre o reconhecimento feito em desconformidade com o modelo previsto no art. 226 do CPP (Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06022022- Reconhecimento-de-pessoas-um-campo-fertil-para-o-erro-judicial.aspx. Acesso em: fev. 2022). Cito, apenas a título de exemplo, alguns casos reproduzidos nesse levantamento:

No RHC n. 133.408/SC (DJe 18/12/2020), de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, não ficou demonstrado que o reconhecimento fotográfico realizado na fase do inquérito policial fora corroborado por outros elementos de prova amealhados no feito. Os acusados estavam com rostos parcialmente cobertos, sem que fosse possível ver totalmente suas faces, apenas detalhes de cor de pele, olhos, compleição física.

Já no HC n. 630.949/SP (DJe 29/3/2021), de minha relatoria, identificaram-se diversas irregularidades no auto de reconhecimento. Além disso, o ofendido deixou claro que foram apresentados outros indivíduos por foto, mas, para o reconhecimento pessoal, o acusado foi exibido sozinho. Previamente ao reconhecimento pessoal, foram mostradas à vítima várias fotos, entre as quais estaria, segundo a autoridade policial, a do indivíduo envolvido no roubo, sugestionando, portanto, que ao menos uma pessoa deveria ser reconhecida como indivíduo que participou do delito e buscando, na verdade, já uma préidentificação do autor do fato. Ou seja, a vítima não recebeu expressamente a opção de não apontar ninguém no reconhecimento pessoal que foi realizado depois da exibição das fotografias.

O AgRg no AREsp n. 1.722.914/DF (DJe 28/4/2021), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, trouxe hipótese na qual a vítima reconheceu o agravante apenas na fase investigativa, depois de lhe serem mostradas as fotos constantes de álbum fotográfico e porque o conheceria das redes sociais. O ofendido disse que reconheceu o acusado pela “touca” que usava no dia do delito, inclusive porque teria ele uma foto nas redes sociais em que portava a mesma peça de vestuário. Contudo, a vítima afirmou haver se lembrado do agravante em razão das características de seu rosto, que seriam bem peculiares (rosto seco e nariz achatado). Disse, ainda, que o reconheceu pelas tatuagens no braço; entretanto, ao mesmo tempo, afirmou que este estava com blusa de mangas compridas no momento da prática delitiva, o que se mostra incompatível, a menos que as instâncias ordinárias tivessem explicitado o motivo pelo qual seria possível esse reconhecimento, o que não ocorreu.

No HC n. 648.232/SP (DJe 21/5/2021), de relatoria do Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF1), o réu foi reconhecido através de uma viseira aberta de seu capacete, acessório que usava no momento do fato, destacando-se, da sentença absolutória, que a vítima, certamente dificultada pela visibilidade e pelo uso de capacete, não foi nada assertiva no reconhecimento pessoal em juízo.

No julgamento do HC n. 652.284/SC (DJe 3/5/2021), o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca registrou que “o reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível”. Na ocasião, reforçou a necessidade de seguir o procedimento estabelecido pelo CPP, haja vista a falibilidade de memória do ofendido.

  • RESOLUÇÃO N. 484/2022 DO CNJ: REJEIÇÃO DA TÉCNICA DO SHOW-UP E VALIDAÇÃO DO RECONHECIMENTO POR LINE-UP

A resolução determina que o reconhecimento pessoal deve ser feito preferencialmente com o alinhamento presencial de quatro pessoas. Em caso de impossibilidade, devem ser apresentadas quatro fotografias. Caso seja inviável seguir tais parâmetros, outros meios de prova devem ser priorizados.

Em todos os casos, devem ser observadas as formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, que exige que a pessoa a ser reconhecida seja descrita pela pessoa responsável pelo reconhecimento, bem como colocada ao lado de outras com quem tiver alguma semelhança.

Conforme a resolução, todo o procedimento deve ser gravado e disponibilizado às partes em caso de solicitação. É necessária investigação prévia para a colheita de indícios de participação da pessoa investigada no delito antes de submetê-la ao reconhecimento. Também é exigida a coleta de autodeclaração racial dos reconhecedores e dos investigados ou processados, para permitir à autoridade policial e ao juiz a adequada valoração da prova.

  • O alinhamento justo como condição necessária

A literatura tem apresentado que o método mais confiável para a apresentação do suspeito é o alinhamento (ou line-up) no qual o suspeito é apresentado com outros não suspeitos (geralmente cinco, mas a resolução do CNJ estabeleceu 4 como o número ideal).

O alinhamento deve ser justo, deve servir a proteger inocentes do risco de serem injustamente escolhidos. Por isso, há que se cuidar que o suspeito não se destaque dos demais, e todos os rostos presentes devem ser compatíveis com a descrição oferecida pela vítima/testemunha.

O alinhamento justo não se reduz a mero requisito numérico ou condição de pluralidade de sujeitos. A ausência de destaque, por assim dizer, é o que serve à proteção do inocente que porventura integre uma fila: o que se deve evitar é que outros fatores (ex.: roupa de presidiário, algemas, roupas de outros integrantes da fila que notoriamente são funcionários da Justiça…) alheios à recordação que a vítima/testemunha reteve do culpado contribuam à seleção.

  • Reconhecimento irregular – show up

A inerente sugestionabilidade do show up é seguida de um procedimento que serve a otimizar o falso reconhecimento. É dizer: a vítima/testemunha já viu a fotografia de um único suspeito e agora é chamada a apontá-lo junto com outros sujeitos. A familiaridade do rosto do suspeito, causada pelo reconhecimento anterior, desempenhará um papel crucial no falso reconhecimento.

show-up é o procedimento mais inadequado para o reconhecimento. Pesquisas têm apontado que, dentre todas as formas de reconhecimento, o show-up é a que possui maior risco de reconhecimento falso. Isto ocorre por que no show-up a vítima/testemunha deve comparar o rosto apresentado (suspeito), com o rosto visto na cena do crime. Assim, se o cérebro da testemunha julgar que o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o “reconhecimento” acontece. A ausência de comparação entre uma pluralidade de rostos semelhantes com o rosto do culpado incrementa as chances de que um inocente parecido preencha, sozinho, a lacuna que a vítima/testemunha tem ânsia por conseguir solucionar.

O álbum de suspeitos é procedimento inadequado, mas agora cabe dizê-lo em mais detalhe. Como o próprio nome indica, o álbum de suspeitos serve à exibição de vários rostos de pessoas suspeitas da prática de crimes, o que, por si só, já dá a entender que há grandes chances de que o autor do delito está presente.

Também é digna de nota a sobrecarga cognitiva que impõe à vítima/testemunha, a quem cabe observar grande quantidade de rostos ao mesmo tempo. Assim, o reconhecimento por álbum de suspeitos também é um procedimento inadequado, uma vez que pode prejudicar a capacidade de a testemunha reconhecer um autor corretamente, e aumenta o risco de um falso reconhecimento.

É imprescindível salientar que neste ponto há uma confusão em termos utilizados por atores do sistema de Justiça. O reconhecimento por show-up ou álbum de suspeitos não devem ser utilizados como sinônimos de reconhecimento fotográfico. Show-up consiste em se exibir apenas um rosto, o que pode ser feito por foto ou presencialmente. O álbum de suspeitos, por sua vez, faz um uso deturpado de fotografias a partir da exibição de múltiplos suspeitos de uma só vez. São práticas que devem ser abolidas porquanto facilitam falsos positivos, como já sinalizado. Mas o recurso a fotografias não precisa, e não deve, ser reduzido a isso.

Pelo contrário, considerando para o requisito do alinhamento justo, por exemplo, é notória a maior facilidade de se ter à mão cinco fotografias de sujeitos efetivamente semelhantes com o suspeito. As fotografias devem ser padronizadas, todas apresentando a mesma qualidade (o que em nada se confunde com as fotos das redes sociais).

Por outro lado, como esperar que cada delegacia de polícia conte com a presença de cinco pessoas semelhantes ao suspeito à disposição da realização de reconhecimentos? É simplesmente irreal supor que o desenho institucional da etapa investigatória possa depender da sorte de se ter disponíveis pessoas com as mesmas características físicas que a vítima/testemunha elencou como sendo as ostentadas pelo suspeito à espera da realização do reconhecimento, delegacias Brasil afora. É precisamente porque há que se assegurar um procedimento que proteja os inocentes do risco de serem falsamente apontados, que devemos considerar a alternativa do reconhecimento fotográfico.

  • SOBRE O DIREITO DO ACUSADO DE NÃO COMPARECER AO RECONHECIMENTO PESSOAL

Acerca da obrigatoriedade da presença do suspeito ao ato de reconhecimento, pode-se mencionar, a título exemplificativo, processo analisado pela corte italiana, datado de 1978[2]. O caso teve início após o envio de um ofício assinado por um juiz de Turim, em cujo conteúdo havia a determinação da realização do reconhecimento de um suspeito que residia em Roma. O juiz deprecado, em Roma, intimou o suspeito para o reconhecimento, tendo este se negado a comparecer. Entendendo não ser possível conduzi-lo coercitivamente, determinou, em face do princípio da não taxatividade dos meios de prova, sua identificação fotográfica. A divergência entre os magistrados começou quando o juiz deprecante determinou a nulidade do reconhecimento fotográfico sob o entendimento de que o suspeito tinha o dever de comparecer, sendo-lhe assegurado o direito de não participar ativamente do ato. Embora o caso não tenha sido julgado em razão da declaração de incompetência por parte do tribunal, o juiz de Turim considerou nulo o reconhecimento fotográfico sob o argumento de que não teria a mesma força probatória que o reconhecimento pessoal.

Atualmente, ainda existem autores que entendem que o suspeito é obrigado a comparecer ao ato de reconhecimento, pois, do contrário, sua recusa (a despeito dos direitos e garantias que lhe assistem durante o procedimento inquisitivo) impossibilitaria a continuidade das averiguações, comprometendo a eficácia das investigações. Fazem uma diferenciação entre cooperação ativa e passiva, além de afirmarem, no tocante ao inquérito policial, que, preponderando em sua plenitude o interesse individual da liberdade sobre o interesse público na persecução penal, esta “estaria fadada ao fracasso”, havendo o “engessamento das atividades investigatórias”. Para esses autores, apesar de haver necessidade da condução coercitiva do suspeito, não pode ser ele compelido a praticar comportamentos ativos, tais como abaixar-se, gesticular, sorrir ou fazer caretas, porquanto essas condutas afetariam seu direito à não autoincriminação. Legítima seria sua condução, durante o desenrolar do inquérito policial, para o local da identificação com a estrita finalidade de fazê-lo comparecer ao ato, sendo tratado como objeto de prova, não podendo opor-se à atividade estatal voltada à sua identificação pessoal, vez que não importaria, necessariamente, em autoincriminação.

Primeiramente, é preciso reconhecer que a distinção entre “cooperação ativa e passiva” é cosmética e deturpa o núcleo do direito de não produção de provas contra si mesmo. Em segundo lugar, é ilusória, na medida em que esvazia, de forma utilitarista, o direito fundamental do imputado ao obrigá-lo a participar do ritual probatório contra sua vontade, a pretexto de mera cooperação passiva. Em terceiro lugar, é um eufemismo chamar isso de “colaboração passiva”, quando na verdade é uma verdadeira coação, submissão ao poder.

Desse modo, o que se defende é que, respeitando o direito de não autoincriminação, cabe à acusação ou autoridade policial identificar outros meios de produção de provas referentes ao reconhecimento do investigado diferentes do reconhecimento pessoal presencial. O reconhecimento fotográfico seria uma saída para isso, mas sabendo que este não tem valor probante absoluto quanto a delimitar a autoria da conduta apurada.

  • CONCLUSÃO

O reconhecimento pessoal e fotográfico no processo penal, embora amplamente utilizado, exige rigorosa observância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal. O julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC pela Sexta Turma do STJ em 2020 consistiu em marco jurisprudencial disruptivo ao consolidar que tais formalidades não são meras recomendações, mas garantias indispensáveis à validade do ato, reconhecendo a nulidade do reconhecimento realizado em desacordo com os procedimentos legais.

Ainda assim, a prática forense demonstra que as resistências à aplicação da jurisprudência superior persistem nos Tribunais de Justiça, frequentemente ancoradas em interpretações equivocadas ou na negligência quanto à importância do rito obrigatório. Soma-se a isso o risco de falsas memórias e influências externas no ato de reconhecimento, que podem levar a graves erros judiciários, comprometendo a justiça e a segurança jurídica.

Nesse cenário, a Resolução nº 484/2022 do CNJ se apresenta como um avanço significativo ao rejeitar a técnica do show-up — reconhecimentos informais que induzem a erros — e ao valorizar o reconhecimento por line-up, que oferece maior controle e confiabilidade ao procedimento. Essa mudança visa assegurar um processo mais seguro e justo, alinhado com as melhores práticas internacionais. Além disso, a resolução reforça a necessidade de que a autoridade policial siga procedimentos rigorosos para evitar falsas memórias e garantir a integridade do reconhecimento.

Portanto, é essencial que a defesa continue a exigir o cumprimento das formalidades legais e que os tribunais se alinhem à jurisprudência do STJ, garantindo que o reconhecimento pessoal e fotográfico seja conduzido de forma técnica e imparcial, protegendo tanto a credibilidade do sistema de justiça quanto os direitos fundamentais dos acusados.


[1] Leia a íntegra da pesquisa produzida pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/Reconhecimento%20Formal%20-%202023.pdf

[2] LOPES, Mariângela Tomé. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 67-68

JUÍZO DE RETRATAÇÃO EM AGRAVO REGIMENTAL: ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO NOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O juízo de retratação em agravo regimental é um mecanismo de grande relevância no contexto do processo judicial brasileiro, especialmente nos tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Este instituto confere ao relator de um agravo regimental a possibilidade de reconsiderar sua decisão monocrática antes de submetê-la à apreciação de um órgão colegiado, como turma, seção ou plenário do tribunal. Trata-se de uma medida essencial para garantir eficiência e celeridade na prestação jurisdicional, permitindo a correção imediata de eventuais erros materiais, omissões ou interpretações equivocadas da lei, evitando que o processo seja encaminhado indevidamente para deliberação colegiada, o que implicaria desperdício de recursos e tempo.

BASES LEGISLATIVAS E FUNDAMENTAÇÃO NORMATIVA

A previsão normativa do agravo regimental encontra-se estabelecida nos regimentos internos dos tribunais superiores. No caso do STJ, o agravo regimental é disciplinado pelo art. 258 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (RISTJ), o qual dispõe sobre a competência do órgão colegiado para conhecer e julgar este recurso. O dispositivo destaca que o agravo regimental pode ser interposto sempre que a decisão do relator causar prejuízo a uma das partes, permitindo que a matéria seja apreciada pela turma, seção ou pelo plenário, conforme a competência regimental. Em complemento, o regimento especifica que o agravo não cabe contra decisões do relator que derem provimento a agravo de instrumento, determinando a subida de recurso especial não admitido.

Já no âmbito do STF, o agravo regimental é regulamentado pelo art. 317 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), que estabelece que tal recurso não possui efeito suspensivo e pode ser manejado contra decisões monocráticas que neguem seguimento aos recursos. O texto regimental é claro ao afirmar que o agravo seguirá o procedimento ordinário de análise previsto para decisões monocráticas, devendo ser avaliado em conformidade com os critérios de admissibilidade e mérito estabelecidos pelo tribunal.

É importante destacar que, embora o Código de Processo Civil (CPC) não contenha uma previsão expressa acerca do agravo regimental, ele menciona, em seu art. 1.021, a possibilidade de interposição de agravo interno contra decisões monocráticas de relatores, o que, na prática, é assimilado ao agravo regimental no âmbito dos tribunais superiores. O Código de Processo Penal (CPP), por sua vez, é omisso quanto a qualquer menção específica ao agravo regimental ou interno, o que não impede sua utilização, desde que respaldada pelos regimentos internos das cortes superiores.

OBJETIVOS E FINALIDADES DO AGRAVO REGIMENTAL

O agravo regimental desempenha funções essenciais na dinâmica processual dos tribunais superiores. Entre os seus principais objetivos, destacam-se:

  1. Revisão de Decisões Monocráticas: O agravo regimental visa, primordialmente, possibilitar a revisão de decisões que foram tomadas de forma individual por um relator, sem que tenham passado pela deliberação de um órgão colegiado. Este recurso permite que tais decisões sejam submetidas à análise de um grupo de magistrados (turma, câmara ou seção), assegurando uma revisão mais aprofundada, democrática e plural das matérias, garantindo maior transparência e legitimidade ao processo decisório.
  2. Correção de Eventuais Erros ou Injustiças: Outra função importante do agravo regimental é a correção de erros materiais, omissões, contradições ou má aplicação da lei que possam ter ocorrido na decisão monocrática. O recurso abre a possibilidade para que o relator, ao exercer o juízo de retratação, ou o colegiado, ao julgar o agravo, possa corrigir equívocos, evitando injustiças e garantindo que a decisão final esteja em conformidade com o ordenamento jurídico, os princípios constitucionais e a jurisprudência dominante.
  3. Assegurar o Direito ao Contraditório e à Ampla Defesa: O agravo regimental também é um importante instrumento de proteção dos direitos fundamentais das partes, especialmente no que tange ao contraditório e à ampla defesa. Ao permitir a revisão de uma decisão monocrática, o recurso garante que todas as alegações e provas apresentadas pelas partes sejam devidamente consideradas por um órgão colegiado, assegurando que a decisão seja proferida de maneira justa e equilibrada.
  4. Prevenção de Recursos para Instâncias Superiores: Ao facultar a revisão de decisões ainda no âmbito do próprio tribunal, o agravo regimental evita a interposição de outros recursos para instâncias superiores, promovendo a celeridade e a economia processual. Esse recurso, portanto, contribui para evitar o acúmulo de processos nos tribunais superiores, racionalizando o trabalho judiciário e aumentando a eficiência da prestação jurisdicional.

TRÂMITE DO AGRAVO REGIMENTAL NOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O trâmite do agravo regimental varia de acordo com o tribunal e a natureza da decisão que se pretende impugnar. No STJ, o agravo regimental é geralmente julgado pela Turma ou pela Seção a que pertence o relator da decisão monocrática. Quando o agravo é interposto contra decisões que negam seguimento a recurso especial ou agravo em recurso especial, ele é julgado pela Turma correspondente. Em situações mais complexas, que envolvem questões de competência interna ou matérias de maior relevância, o julgamento poderá ser realizado pela Seção ou até mesmo pelo Plenário do tribunal.

No STF, o agravo regimental segue procedimento semelhante. Em geral, é julgado pela Turma, especialmente quando se trata de decisões monocráticas proferidas no âmbito de recursos extraordinários ou ações originárias de menor repercussão. No entanto, para temas de grande relevância ou repercussão geral, o agravo pode ser submetido diretamente ao Plenário, onde todos os ministros do STF participam do julgamento.

JUÍZO DE RETRATAÇÃO: DEFINIÇÃO E IMPORTÂNCIA

O juízo de retratação é um aspecto fundamental do agravo regimental, configurando-se como o poder conferido ao relator para reconsiderar sua própria decisão monocrática antes que ela seja submetida ao julgamento do órgão colegiado. Este mecanismo permite que o relator reveja e, se necessário, modifique sua decisão à luz de novos argumentos apresentados pela parte agravante ou de eventuais erros identificados no ato decisório original.

A importância do juízo de retratação reside em sua capacidade de promover a correção imediata de erros materiais, omissões ou interpretações equivocadas da lei, sem a necessidade de sobrecarregar o colegiado com questões que poderiam ser resolvidas de forma célere pelo próprio relator. Esta prática assegura uma economia processual significativa, reduzindo o tempo e os recursos gastos em julgamentos desnecessários, e concentrando os esforços do tribunal em questões que realmente demandam uma deliberação colegiada.

Ademais, o juízo de retratação contribui para a celeridade processual, ao permitir que o relator corrija possíveis equívocos imediatamente, evitando o prolongamento indevido do processo e assegurando uma resposta mais rápida e eficaz às partes envolvidas. Em última análise, o juízo de retratação reforça o princípio da eficiência, promovendo uma justiça mais célere, justa e transparente.

CASOS PRÁTICOS DE JUÍZO DE RETRATAÇÃO E AGRAVO REGIMENTAL

O uso do agravo regimental e do juízo de retratação pode ser ilustrado por casos práticos que demonstram sua relevância e eficácia. No julgamento do Habeas Corpus nº 865422 pelo STJ, por exemplo, a defesa do agravante pleiteou o redimensionamento da pena-base, afastamento da reincidência e exclusão das qualificadoras, com base na Súmula 241 do STJ. O relator, em decisão monocrática, indeferiu liminarmente o Habeas Corpus, alegando que o recurso havia sido impetrado contra um acórdão já transitado em julgado, o que configuraria uso indevido do Habeas Corpus como substitutivo de revisão criminal.

No entanto, a defesa argumentou que não houve trânsito em julgado do acórdão em relação ao agravante, uma vez que recursos ainda estavam pendentes de julgamento. Além disso, destacou-se a existência de flagrante ilegalidade na dosimetria da pena, uma vez que a mesma condenação foi usada tanto como circunstância judicial negativa quanto como agravante de reincidência, configurando “bis in idem” em violação à Súmula 241 do STJ.

Além desse caso, tem-se o AgRg em HC nº 894454, o qual trata de paciente que impetrou HC contra decisão que negou seguimento ao HC impetrado contra sentença condenatória que, mesmo ao reconhecer a menor participação do indivíduo e aplicar a fração de diminuição de pena, não permitiu que recorresse em liberdade sob fundamento no perigo da conduta dos demais corréus.

O primeiro HC impetrado no TJCE teve como fundamento a notória antecipação de pena do paciente, haja vista que a sentença não considerou os fatos novos – reconhecimento da menor participação – para avaliar a necessidade de manutenção da prisão preventiva, impedindo-o de recorrer em liberdade.

O segundo HC, impetrado já no STJ, explicou sobre a ausência de fundamentação da decisão que negou a liberdade provisória do paciente, se limitando a descrever a conduta dos demais corréus e ignorando por completo o princípio da individualização da pena. Argumento de ausência de fundamentação idônea e contemporânea para a manutenção da prisão preventiva. Em decisão monocrática, o Relator Rogério Schietti Cruz negou seguimento ao HC sob fundamento no art. 210 do RISTJ, SEM reconhecer a menor importância destacada na sentença condenatória de 1º grau

Todavia, após Agravo Regimental contra tal decisão monocrática, com o pleito de remessa para decisão colegiada ou retratação do Ministro, este proferiu nova decisão em juízo de retratação. Vejamos:

Tem razão a defesa. Embora a gravidade concreta dos crimes evidencie a periculosidade social de seus autores, em relação ao sentenciado, uma vez declarada sua participação diferenciada nos fatos (ele não participou da execução dos roubos), é suficiente a substituição da medida extrema por outras menos severas (art. 282 c/c o art. 319 do CPP), igualmente suficientes para evitar a reiteração delitiva.

Desa forma, concedeu a liberdade provisória do agravante por reconhecer veracidade nos argumentos da defesa.

Essas situações evidenciam a importância do juízo de retratação, permitindo que o relator reconsiderasse sua decisão à luz dos novos argumentos e elementos trazidos pela defesa, promovendo uma correção célere e eficiente, evitando o desgaste desnecessário de recursos judiciais e garantindo uma decisão justa e conforme aos parâmetros legais estabelecidos.

Dessa forma, o agravo regimental, junto com o juízo de retratação, desempenha um papel crucial na dinâmica dos tribunais superiores, permitindo a revisão de decisões monocráticas, a correção de erros e injustiças, e a promoção da celeridade e economia processual. Sua correta utilização é essencial para assegurar que as decisões judiciais sejam justas, transparentes e em conformidade com o ordenamento jurídico, reforçando os princípios fundamentais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.


CNJ DETERMINA QUE TJ/CE ADEQUE REGRAS CRIADAS SOBRE JUIZ DAS GARANTIAS: Portaria e Resolução do Tribunal devem ser ajustadas às novas diretrizes do CNJ para garantir direitos dos custodiados.

O CNJ, por meio do corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, determinou que o TJ/CE adeque suas normas sobre a competência para a realização de audiências de custódia a presos. A decisão foi tomada em resposta a um pedido de providências apresentado por advogados que questionaram a conformidade das normas locais com a resolução CNJ 562/24.

Os advogados alegaram que as disposições do TJ/CE, previstas na portaria 498/22 e na resolução 01/22, não estavam em conformidade com as diretrizes do CNJ, ao limitar a competência dos juízes responsáveis pelas audiências de custódia à análise de aspectos formais da prisão, sem a possibilidade de deliberar sobre a manutenção da prisão preventiva ou substituí-la por outras medidas cautelares.

Na decisão, o ministro Mauro Campbell Marques destacou que as normas do CNJ garantem a universalidade das audiências de custódia, abrangendo todas as modalidades prisionais, e que a competência para a condução dessas audiências deve ser atribuída ao juiz das garantias ou ao juiz plantonista.

A primeira questão apontada pelo corregedor foi a de que, nos normativos elaborados pelo TJ/CE, a competência para a realização das audiências de custódia é entregue aos juízes dos Núcleos de Custódia e de Inquéritos, sem fazer qualquer menção ao juiz das garantias ou ao juiz plantonista.

O normativo precisa ser corrigido no ponto, pois tais juízes integrantes dos Núcleos de Custódia e de Inquéritos somente poderão realizar as audiências de custódia se o forem simultaneamente juízes das garantias ou juízes plantonistas, como o exige a resolução CNJ 562/24.”

Entre outros pontos, o corregedor observou que é necessário que o normativo do TJ/CE estabeleça prazo para o encaminhamento da ata ao juiz competente que determinou a expedição da ordem de prisão e prazo para esse mesmo juiz decidir a respeito das demais questões levantadas na audiência de custódia as quais não puderam ser apreciadas anteriormente em razão da incompetência do juiz das garantias e do juiz do lugar em que ocorreu a prisão.

Com base nisso, o CNJ determinou que o TJ/CE adeque suas normas em conformidade com a resolução CNJ 213/15 e suas alterações.

O pedido foi formulado pelo escritório Oséas Rodrigues & Nogueira Advogados Associados, representado pelos advogados Oséas de Souza Rodrigues Filho, José Jonathan Gomes de Brito e Laura Karine Melo Dias.

Processo: 0003136-92.2024.2.00.0000.


O QUE MUDA COM A DECISÃO DO STF SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DA MACONHA? OS EFEITOS PRÁTICOS DA ALTERAÇÃO JURISPRUDENCIAL TRAZIDA AO ART. 28 DA LEI DE DROGAS NO JULGAMENTO DO STF RE 635.659 RG

Decorrida quase uma década de sucessivas interrupções, o Supremo Tribunal Federal finalizou em 26/06/2024 o julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal por 6 votos a 3. A ata do julgamento foi publicada do Diário da Justiça em 02/08/2024 e deve ser aplicada em todo o país. A decisão descriminalizou o porte de até 40g de maconha para uso pessoal, quantia fixada para diferenciar usuário de traficantes. A medida não legaliza o porte, mas muda as repercussões na vida do usuário que deve sofrer consequências administrativas. Para entender melhor os efeitos do julgamento e o seu impacto na política de drogas do Brasil, necessário fazer uma leitura histórica sobre a regulamentação de entorpecentes no país e entender o posicionamento de cada Ministro, conforme se fará nas linhas seguintes.

Para compreender a política antidrogas do Brasil, é necessário entender a evolução legislativa sobre a temática. Dessa forma, A primeira lei federal a prever algo a respeito teve influência internacional, a exemplo das Convenções Internacionais do Ópio, que visavam discutir a regulamentação do comércio e do consumo de ópio e outras substâncias orgânicas no mundo. Essa relação teve início em 1912 e resultou, no Brasil, no Decreto nº 11.481, de 10 de fevereiro de 1915, que aprovava no território nacional, para todos os efeitos, medidas a impedir os abusos crescentes do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína.

A primeira lei específica sobre drogas no Brasil foi sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa. O Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, composto por 13 artigos, “estabeleceu penalidades para os contraventores na venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados; criou um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo álcool ou substâncias venenosas; estabeleceu as formas de processo e julgamento e mandou abrir os créditos necessários”.

A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) foi um projeto instituído no Palácio do Itamaraty em agosto de 1935. Foi essa Comissão que institucionalizou a primeira legislação que consolida ações de fiscalização de entorpecentes, através do Decreto Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938.

Já na esfera criminal sobre drogas, em 1940 foi editado o Código Penal, que previa o crime de tráfico e de posse de substâncias entorpecentes, punido com reclusão de um a cinco anos. As infrações entraram na categoria dos crimes contra a saúde pública. Em 1964 adicionou-se ao crime a ação de “plantar”, e em 1968 incluiu-se “preparar ou produzir”, explicitando-se, ainda, que as mesmas penas se aplicariam a quem trouxesse consigo, “para uso próprio”, substâncias entorpecentes.

Em 1976, foi aprovada a Lei nº 6.368, que dispôs sobre as “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”. Através dessa Lei, em que pese tenham sido previstos tipos penais distintos para traficantes e usuários, com penas mais brandas para esses últimos, o Brasil comprometeu-se em efetivar uma guerra contra as drogas, punindo severamente quem as consumisse ou vendesse.

Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma nova abordagem à politica antidrogas no Brasil, considerando, em seu art. 5º, XLIII, crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o tráfico ilícito de entorpecentes. Tal posicionamento foi reafirmado pela Lei de Crimes Hediondos, a qual proibiu, ainda, em sua redação original, a concessão de liberdade provisória, além de ter aumentado o prazo da prisão temporária para 30 dias e previsto a possibilidade de sua prorrogação.

No entanto, a partir dos anos 2000, iniciou-se um movimento de olhar com mais cuidado e atenção aos usuários e dependentes, corroborando com a visão trazida anteriormente de diferenciação entre esses e traficantes. Em formalidade a isso, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.059, instituiu uma política de ações que visam à redução de danos sociais e à saúde.

Em 2006, foi aprovada a Lei nº 11.343, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) e prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Tal norma buscou, ainda que revogando-os, compatibilizar os instrumentos normativo anteriores que versavam sobre a temática. Um de seus pontos principais é o reconhecimento das diferenças entre a figura do traficante e a do usuário/dependente, que passaram a ser tratados de modo diferenciado e a ocupar capítulos diferentes da lei.

E com isso, temos a tipificação do crime de tráfico no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o qual determina 18 núcleos ao tipo penal descrito, quais sejam importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas. Na oportunidade, estabeleceu, além de pena de 5 a 15 anos de reclusão, pena de multa de 500 a 1500 dias-multas. E assim foi formada a visão de traficante à perspectiva do Estado.

No entanto, considerando essa divisão entre usuário e traficante, o artigo 28 da mesma lei estabeleceu que quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, está enquadrado na figura de usuário e, por se tratar de risco à saúde pública, é passivo de penas como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. A partir dessa legislação, o Brasil concebe que usuários e dependentes não devem ser penalizados com a privação de liberdade.

Assim, houve uma despenalização da conduta praticada pelo usuário, ou seja, deixou de ser punido com a restrição de liberdade. Apesar de representar um grande avanço legislativo para o contexto histórico no Brasil dos anos 2000, a Lei 11.343/2006 não eximiu os usuários dos efeitos criminais de possível condenação. Isso significa que, apesar de não ser um crime punido por uma pena, os efeitos da reincidência, por exemplo, ainda estão presentes e o usuário ainda é visto como um criminoso à luz no ordenamento jurídico.

Entendendo melhor o que levou à elaboração da Lei 11.343/2006 e à atual política criminal contra as drogas no Brasil, podemos afirmar que o ordenamento jurídico, aos poucos, tem adotado um posicionamento de penalizar o grande traficante, aquele que concorre para a manutenção do narcotráfico, mas ainda assim tratar de maneira mais humana o indivíduo que faz uso de determinadas substâncias – conforme resoluções normativas da Agência Nacional de Saúde.

Partindo à análise do caso concreto levado ao plenário do STF no RE 635.659, trata-se de um indivíduo preso portando apenas 2g da substância canabis sativa, fato ocorrido no ano de 2009. Conforme trâmite processual normal, foi interposto recurso extraordinário pelo Defensor Público-Geral do Estado de São Paulo contra acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP que, por entender constitucional o art. 28 da Lei 11.343/2006, manteve a condenação pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal.

Neste recurso extraordinário, fundamentado no art. 102, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, alega-se violação ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. O recorrente argumenta que o crime (ou a infração) previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto no artigo 5º, X da Constituição Federal e, por conseguinte, o princípio da lesividade, valor basilar do direito penal.

Em 2011, deu-se início ao julgamento do RE 635.659, ocasião na qual reconheceu-se a existência de repercussão geral do caso diante da sociedade brasileira.

Dando início aos votos aos 20 de agosto de 2015, o Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, votou a favor da descriminalização do porte de canabis sativa por entender que tratar como crime a posse de drogas para consumo próprio “fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”. Para o Ministro, a decisão de por a própria saúde em risco fazendo uso de substâncias nocivas somente diz respeito ao indivíduo, não merecendo que tal conduta seja criminalizada por ofensa à proporcionalidade da medida adotada.

Destaca a necessidade de observar o uso de drogas como uma medida de saúde pública, e não de segurança pública, dando sentido à diferenciação de traficante e usuário presente na Lei 11.343/2006.

Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais do porte de drogas para uso pessoal, a mera previsão de condutas referentes ao consumo pessoal como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional” relata o Ministro.

Por fim, o Relator destaca a necessidade de observar a proporcionalidade com a qual o legislador infraconstitucional criminaliza condutas à luz da constitucionalidade. Ainda que seja possível fazê-lo em diversos casos, como o racismo e a exploração sexual, não se pode permitir excessos legislativos: ao deturpar a finalidade com a qual a Lei de Drogas foi criada para manter os efeitos criminais do uso de substâncias entorpecentes ilícitas, indo em desacordo com a política criminal a ser desenvolvida, há um claro excesso de atuação do Estado.

Como o Direito Penal se traduz em autorizações para que o Estado interfira em direitos fundamentais, o ministro conclui que essas “medidas interventivas” devem sempre estar adequadas “ao cumprimento dos objetivos pretendidos”. Ou seja, “o pressuposto de que nenhum outro meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados”.

Abertas vistas ao Min. Edson Fachin, este proferiu seu voto aos 10 de setembro de 2015 no sentido de reconhecer a necessidade de resguardar a autonomia privada do indivíduo quanto ao uso de substâncias ilícitas, bem como afirmou que criminalizar o porte de drogas para uso pessoal devido a argumentos morais é medida “paternalista” do Estado e que a escolha de não utilizar deve ser “produto da escolha de cada indivíduo”. O ministro disse que “um ponto nodal” é entender que o dependente é vítima e não criminoso.

No entanto, esclareceu que a descriminalização do porte para consumo deveria se restringir apenas à maconha da espécie canabis sativa, não abrangendo quaisquer outras drogas. No final de seu voto, Fachin sustentou que se deve manter a tipificação criminal das condutas relacionadas à produção e à comercialização da droga da maconha, mas ao mesmo tempo “declarar neste ato a inconstitucionalidade progressiva dessa tipificação das condutas relacionadas à produção e à comercialização da maconha até que sobrevenha a devida regulamentação legislativa”.

Ainda no mesmo dia, o Min. Luís Roberto Barroso também votou a favor da descriminalização do porte para uso pessoal da Maconha, ressaltando a incongruência entre a descriminalização do porte para consumo, mas mantendo a criminalização da produção e distribuição. Dentre as razões para seu voto, destacou o fracasso da política contra as drogas, os altos custos ao Estado para a manutenção do encarceramento em massa decorrente das condutas entendidas como traficância e, por mim, os prejuízos à saúde pública decorrente da falta de um olhar mais humano e menos punitivista do Estado ao dependente.

Além disso, em termos jurídicos e técnicos, entende que a autonomia individual e o direito à privacidade, assim como os demais Ministros, não encontram proporcionalidade na punição oferecida pelo Estado, haja vista que não afeta terceiros, nem é meio idôneo para promover a saúde pública. Por fim, propôs o estabelecimento das quantidades de porte para consumo pessoal de até 25g e plantação de até seis plantas fêmeas para enquadrar-se no art. 28 da Lei 11.343/2006.

Após 8 anos, no dia 2 de agosto de 2023, retomou-se o julgamento do Tema 506, referente ao Recurso Extraordinário analisado. Na ocasião, o Min. Alexandre de Moraes[14] propôs um critério objetivo e nacional relacionado à quantidade da substância apreendida para diferenciar o traficante do usuário, além de se mostrar favorável à descriminalização do porte para uso pessoal. No entanto, o Ministro deixou claro que seu posicionamento se restringe à canabis sativa, por se adequar ao caso concreto, se omitindo em relação às demais drogas.

Em seu posicionamento, o Ministro levantou a necessidade de estabelecer o critério da quantidade para diferenciar usuário de traficante a fim de impedir que dois indivíduos, abordados com a mesma quantidade de droga, tenham tratamento diferenciado em virtude de etnia, condição social, nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato. Declara a necessidade de uniformizar os flagrantes realizados pelo país e a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal em garantir a igual aplicação da lei a todos.

Dessa forma, propôs que sejam presumidas como usuárias as pessoas flagradas com 25g a 60g de maconha ou que tenham seis plantas fêmeas. Ele chegou a esses números a partir de levantamento que realizou sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017. O estudo foi realizado em conjunto com a Associação Brasileira de Jurimetria e abrangeu mais de 1,2 milhão de ocorrências com drogas.

De acordo com o Ministro, a autoridade policial não ficaria impedida de realizar a prisão em flagrante por tráfico quando a quantidade de maconha for inferior ao limite. Entretanto, é necessário comprovar a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico, como a forma de acondicionamento da droga, a diversidade de entorpecentes e a apreensão de instrumentos e celulares com contatos, por exemplo. Da mesma forma, nas prisões em flagrante por quantidades superiores, o juiz, na audiência de custódia, deverá dar ao preso a possibilidade de comprovar que é usuário.

Após o voto de Alexandre de Moraes, o Ministro Relator Gilmar Mendes modificou seu voto para acolher os parâmetros de quantidade expostos, bem como restringir a descriminalização apenas à Maconha.

Aos 24 de agosto de 2023, os Ministros Cristiano Zanin e Rosa Weber proferiram seus votos.  Zanin defende que, considerando o dispositivo do art. 28 da Lei 11.343/2006 é o único que diferencia usuário de traficante, não podendo ser declarado inconstitucional.

No entanto, também defende que haja uma diferenciação e propôs a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.

A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde“, afirmou Zanin.

Após, Rosa Weber declarou que “tipificar o porte de drogas para consumo pessoal potencializa o estigma que recai sobre o usuário e acaba por aniquilar os efeitos pretendidos pela própria lei no atendimento, tratamento e reinserção econômica dos usuários e dependentes de drogas“. Além de promover o estigma de criminoso ao usuário, impondo a este as demais consequências processuais de uma condenação criminal para além de cerceamento de liberdade, a Ministra entende que, caso não haja uma diferenciação real e objetiva – se referindo aos critérios de quantidade propostos pelos demais ministros – usuários continuarão a serem erroneamente punidos como se traficantes fossem.

Aos 06 de março de 2024, retomou-se o julgamento do Tema 506 com os votos dos Ministros André Mendonça e Nunes Marques. Ambos seguiram o entendimento de Zanin pela impossibilidade de declarar a inconstitucionalidade do dispositivo legal descrito.

André Marques tomou o posicionamento de que caberia ao Congresso Nacional, em 180 dias, estabelecer uma quantidade adequada para que o indivíduo abordado fosse considerado ou não usuário, parâmetros que não impedirão que, no caso concreto, seja afastada a presunção mediante fundamentação idônea da autoridade competente.

Já Nunes Marques seguiu o posicionamento de que a quantidade ideal deveria ser de 25g de Maconha ou 6 plantas fêmeas. Segundo o ministro, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”. Após, Ministro Edson Fachin, que ratificava o seu voto no sentido de acompanhar o Relator relativamente ao dispositivo impugnado, mas considerava que o estabelecimento da quantidade de maconha seria atribuição do Poder Legislativo.

Na reta final do julgamento, o Ministro Dias Toffoli, que, no caso concreto, negava provimento ao recurso extraordinário, determinava que a condenação do recorrente não gere efeitos penais. O Ministro explica que a legislação debatida nunca teve o intuito de estabelecer uma sanção penal ao usuário, haja vista que não se estabeleceu uma pena de reclusão, detenção ou prisão simples – o que excluiria a definição da conduta como crime ou ato infracional. Dessa forma, sustenta que não há o que descriminalizar algo que nunca teve, em suas raízes, a natureza criminal, mas meramente administrativa e com foco em medidas de saúde pública.

Além disso, fez um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que, no prazo de 18 meses, formulem e efetivem uma política pública de drogas, conforme previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, interinstitucional, multidisciplinar, baseada em evidências científicas, a qual deverá compreender, obrigatoriamente, a regulamentação das medidas previstas nos incisos I a III do art. 28, a fixação de critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante de cannabis e a formulação de programas voltados ao tratamento e à atenção integral ao usuário e dependentes. Determina, ainda, que sejam garantidas dotações orçamentárias suficientes para efetivar as políticas públicas de saúde previstas no art. 28 da Lei de Drogas.

Por fim, entende que as políticas públicas sobre a temática devem envolver todos os órgãos federais com atuação nas áreas de saúde (Ministério da Saúde e ANVISA), educação (Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação), trabalho e emprego (Ministério do Trabalho e Emprego e Conselho Nacional do Trabalho), segurança pública (Ministério da Justiça e Segurança Pública e Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos), dentre outros cuja temática necessariamente deva permear a política nacional de drogas como condição para a sua efetividade e eficácia.

Findado o debate jurídico sobre a temática, o que se pode esperar a partir de agora com tamanho precedente jurisprudencial e fixação do tema 506 do STF?

Com o entendimento de que as medidas previstas no art. 28 da Lei de Drogas têm caráter exclusivamente administrativos, não é mais possível que as penalidades processuais penais atinjam os usuários, o que retira a possibilidade de “sujar a ficha criminal” do indivíduo abordado com quantidade até 40 gramas de canabis sativa, ou 6 plantas fêmeas. O cálculo foi feito com base nos votos dos ministros que fixaram a quantia entre 25 e 60 gramas nos votos favoráveis à descriminalização.  A partir de uma média entre as sugestões, a quantidade de 40 gramas foi fixada.

Isso não significa que em casos de apreensão de menos de 40g de maconha a possibilidade de prisão por tráfico seja completamente excluída, mas precisará se valer de outros elementos que indiquem traficância para justificar tal medida.

Consequentemente, as abordagens policiais continuam seguindo o mesmo procedimento de abordar o indivíduo, levá-lo à delegacia e caberá ao delegado pesar a droga, verificar se a situação realmente pode ser configurada como porte para uso pessoal. Em seguida, o usuário será notificado a comparecer à Justiça. O que não será possível é somente a prisão em flagrante do indivíduo.

Por fim, ao tratar de retroatividade da norma penal, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, disse que a decisão pode retroagir para atingir pessoas condenadas pela Justiça.

Segundo ele, a decisão pode beneficiar pessoas exclusivamente condenadas por porte de até 40 gramas de maconha, sem ligações com o tráfico. A revisão da pena não é automática e só poderia ocorrer por meio de um recurso apresentado à Justiça.

“A regra básica em matéria de Direito Penal é que a lei não retroage se ela agravar a situação de quem é acusado ou esteja preso. Para beneficiar, é possível”, afirmou Barroso.

Nesse sentido, é possível tratar da matéria em sede de revisão criminal, obedecendo os critérios de admissibilidade da peça processual em seus moldes, a fim de requerer novo cálculo de dosimetria de pena ou ainda pleitear a absolvição de um apenado que, erroneamente, foi condenado por tráfico.

Tal alteração jurisprudencial, no entanto, não tem força de lei.

Durante o julgamento do Tema 506 do STF, tramita o julgamento da PEC 45/2023 no Congresso Nacional, que objetiva inserir no art. 5º da Constituição a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”[18]

A Proposta de Emenda à Constituição, em clara resposta ao julgamento do STF, inclui a criminalização do porte e posse de substâncias ilícitas consideradas como tais pela administração pública. Ela estabelece que o porte para uso pessoal não resultará em privação de liberdade, garantindo que o usuário não seja penalizado com prisão. Segundo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a ênfase não está na criminalização do usuário como dependente químico, mas sim no porte de substâncias consideradas ilícitas, cuja presença é intrinsecamente prejudicial.

O texto aprovado, com emendas do relator Senador Efraim Filho (União-PB), também determina que seja feita uma distinção clara entre traficantes e usuários, considerando todas as circunstâncias específicas de cada caso. Para os usuários, são aplicáveis penas alternativas à prisão e tratamento para dependência, conforme previsto na Lei de Entorpecentes (Lei 11.343/2006). Efraim Filho argumenta que as drogas têm impactos significativos na saúde pública, aumentando o consumo e a dependência química, além de fortalecerem o tráfico e financiarem o crime organizado.

“O motivo desta dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las. Com efeito, o traficante de drogas aufere renda — e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território — somente por meio da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um usuário final. Entendemos que a modificação proposta está em compasso com o tratamento multidisciplinar e interinstitucional necessário para que enfrentemos o abuso de entorpecentes e drogas afins, tema atualmente tão importante para a sociedade brasileira. Além disso, a legislação infraconstitucional está em constante revisão e reforma, tendo em conta as circunstâncias sociais e políticas vigentes”, argumenta Pacheco. 

Com isso, ainda que haja uma diferenciação entre o usuário e o traficante, a possível aprovação da PEC 45/2023 poderá trazer novas diretrizes constitucionais, impactando diretamente futuras legislações sobre a criminalização do porte e posse de drogas para uso pessoal. Isso alteraria o paradigma utilizado pelo Supremo Tribunal Federal na análise da constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06.

Dessarte, o debate sobre o porte e a posse de drogas para consumo pessoal, incluindo questões como a quantificação e a natureza da substância, ainda carece de uma discussão mais profunda por parte da sociedade civil. Embora a maconha seja frequentemente associada ao tráfico no Brasil, é importante considerar que seu impacto é consideravelmente diferente do de outras substâncias mais devastadoras, como a cocaína e drogas sintéticas, que são partes integrantes de redes internacionais de narcotráfico que movimentam bilhões de dólares anualmente. Portanto, a questão não se esgota com a decisão do STF, permanecendo aberta para novas reflexões e reformas legislativas.


OS LIMITES DO ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS PELA VISÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

O encontro fortuito de provas, também conhecido como serendipidade, é um fenômeno jurídico que ocorre quando, no curso de uma investigação direcionada a determinado fato, são descobertas provas inesperadas, sem relação direta com o objeto original da apuração. A aceitação desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro permite que tais elementos probatórios, mesmo não sendo previamente conhecidos ou buscados, possam ser validamente utilizados para subsidiar investigações relativas a crimes de ação penal pública incondicionada.

Essa prática tem gerado intensos debates nos tribunais superiores, especialmente quanto aos limites de sua aplicação, à proteção dos direitos fundamentais e à admissibilidade dessas provas, uma vez que o encontro fortuito pode, em determinadas situações, colidir com garantias constitucionais, como a inviolabilidade da intimidade e a legalidade estrita das provas. Assim, a análise sobre a legitimidade e os limites do uso dessas provas inesperadas torna-se essencial para compreender o equilíbrio entre a eficiência da investigação criminal e o respeito aos direitos e garantias individuais.

Dentro do processo penal, é de suma importância que observemos a legalidade das provas colhidas durante todo o procedimento investigatório, pois qualquer ilegalidade nas formalidades da persecução vem a se tornar uma nulidade a ser arguida e poderá contaminar todo o processo.

Ao tratar do assunto, o Código de Processo Penal, em seu artigo 155, aborda sobre a necessidade de livre convencimento do juiz na apreciação da prova produzida em contraditório judicial, devendo fundamentar bem suas decisões nessas determinadas provas. Mais adiante, o artigo 157 torna inadmissível a valoração de provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais, bem como as provas decorrentes dessas.

Dessa forma, para que uma prova seja considerada válida e apta a influenciar as decisões dentro do processo, ela precisa, ao menos, ser colhida de maneira a observar os procedimentos legais de obtenção dentro da persecução penal, principalmente na fundamentação da necessidade e possibilidade de realização de cada procedimento investigatório.

Todavia, especialmente se tratando de relativização de garantias constitucionais à inviolabilidade do domicílio e das comunicações, questionou-se sobre a validade da utilização de prova colhida por meio desses procedimentos, mas que não correspondida à prova procurada, ou ainda sequer ao fato apurado naquela ação penal. É o que chamamos de encontro fortuito da prova, quando não há a intenção de investigar aquela ação ou aquele tipo de prova, mas “por acaso” e dentro de procedimentos legais, as encontra. O que fazer com essas provas? São aptas a influenciar na formação de culpa do investigado? São aptas a fundamentar uma nova ação penal para apuração?

Esses questionamentos têm sido constantemente debatidos no STJ, o qual adota atualmente a Teoria da Serendipidade. Essa teoria versa sobre a descoberta inesperada, no decorrer de uma investigação legalmente autorizada, de provas sobre crime que a princípio não estava sendo investigado. Diferentemente do fishing expedition, o qual será debatido mais adiante, o encontro fortuito da prova está baseado na pré-existência de um contexto investigatório legal que, sem desvio de finalidade, encontra provas inesperadas, sejam elas conexas ao crime investigado ou não.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela legalidade de tal prova a depender do caso concreto, pois se faz necessário verificar a razoabilidade do encontro de provas conforme a finalidade da conduta da autoridade.

A tendência jurisprudencial ganhou força com a midiatização da Operação Lava-Jato, na qual houve grande relevância para as provas colhidas por meio de quebra de sigilo telefônico, bancário e fiscal.

O entendimento pacificado é de que, para haver legalidade no encontro fortuito da prova, a persecução penal deve ter um objetivo claro, ser direcionada e fundamentada, mesmo que em relação a outro objeto. Somente será admitido o encontro fortuito diante de uma legalidade prévia.

Tratando da legalidade dos meios de investigação, desde 2013 que a posição do Superior Tribunal de Justiça é reafirmada no sentido de admitir a aplicação da Serendipidade – ainda que a prova encontrada não tenha qualquer conexão com o fato apurado na ação penal principal -, devendo ser aberto novo procedimento de apuração com a prova encontrada, desde que haja legalidade no procedimento investigatório original que oportunizou o encontro da prova.

Ainda em 2013, no julgamento do HC 187.189, o Ministro Og Fernandes afirmou que “não se pode esperar ou mesmo exigir que a autoridade policial, no momento que dá início a uma investigação, saiba exatamente o que irá encontrar, definindo, de antemão quais são os crimes encontrados”, entendendo a naturalidade com que novos fatos e provas possam se apresentar ao longo das investigações.

No entanto, nada disso exime a autoridade policial de cumprir com a finalidade da medida investigativa exatamente nos termos em que ela foi autorizada, vedando o exagero e o “aproveitamento” de oportunidades para investigar além do que fora fundamentado.

Conforme o HC 197.044, o ministro Sebastião Reis Júnior advertiu que é preciso haver equilíbrio entre a proteção à intimidade e a quebra de sigilo. Para ele, não pode haver uma devassa indiscriminada de dados, mas, se a interceptação telefônica é lícita, como tal, captará licitamente toda a conversa. “Havendo indícios de crime nesses diálogos, o estado não deve se quedar inerte; cumpre-lhe tomar as cabíveis providências”.

O mesmo entendimento vale para a participação de terceiros em um crime apurado: caso haja menção do indivíduo não representado nos áudios de uma interceptação, por exemplo, ainda que se vá indiciar a partir daquela prova, ela permanece válida, pois foi colhida sobre um pretexto válido e cumpriu com a sua finalidade.

Ainda tratando sobre finalidade da medida investigatória, o entendimento sobre a legalidade indiscriminada das provas encontradas fortuitamente foi, aos poucos, dando espaço para o questionamento sobre a pesca probatória, quando uma investigação não tem motivação clara, objetiva e fundamentada, muito menos causa provável, mas busca apenas encontrar algo para além dos limites autorizados.

Em 2022, no julgamento do HC 663.055, o Ministro Rogério Schietti Cruz declarou ilícitas as provas colhidas mediante invasão de domicílio em busca de um fugitivo. No caso concreto, foi preciso vasculhar a casa para encontrar o material ilegal, medida completamente além da autorizada para o cumprimento das investigações, demonstrando o desvio de finalidade dos policiais. Se a medida adotada é apenas encontrar o indivíduo, não cabe aos policiais vasculharem pela residência desse qualquer outro material.

Ora, não é à toa que há necessidade de expedição de mandado de prisão e mandado de busca e apreensão, pois são institutos distintos. A menos que os objetos apreendidos estivessem sob o olhar dos policiais ao entrar na residência, qualquer coisa apreendida seria ilegal.

Em contraposição a isso, no RHC 39.412, o entendimento foi pela licitude da prova. Ao cumprir o mandado de busca e apreensão de uma arma pertencente ao estagiário de um estabelecimento, os policiais encontraram outros materiais ilícitos no local, pertencentes ao chefe do alvo do mandado.

Ao solicitar a nulidade da prova, foi esclarecido que, ainda que não houvesse mandado específico àquele indivíduo, as provas foram colhidas fortuitamente, sob cumprimento legal de outro mandado no mesmo local, portanto, sem desvio de finalidade da medida.

Por fim, há de se falar sobre sigilo profissional e extração parcial de dados de aparelho telefônico. No julgamento do RHC 157.143, a Sexta Turma considerou que o acesso aos dados telemáticos extraídos dos celulares de advogados investigados em uma operação policial não configurou investigação especulativa, tampouco serendipidade. Para o colegiado, ainda que a garantia do sigilo profissional entre advogado e cliente fosse preterida em relação à necessidade da investigação, ela seria preservada com a transferência do sigilo para quem estivesse na posse dos dados.

Fora requisitado pelos advogados investigados que a extração se desse de maneira somente parcial, a fim de preservar o sigilo profissional, mas o Ministro Relator entendeu pela impossibilidade técnica de investigação parcial: “não há como exigir da autoridade cumpridora do mandado que filtre imediatamente o que interessa ou não à investigação, devendo o que não interessa ser prontamente restituído ao investigado após a perícia”.

Dessa forma, podemos concluir que, ainda que o Superior Tribunal de Justiça seja adepto à Teoria da Serendipidade, admitindo a prova colhida fortuitamente, é necessário observar dois principais pontos:

  1. A legalidade da medida autorizadora do procedimento investigatório, principalmente no que tange à quebra de sigilo telefônico e telemático, extração de dados digitais e invasão domiciliar, por serem garantias constitucionais fundamentais no Estado Democrático de Direito;
  2. A finalidade da medida e possíveis desvios no seu cumprimento, de modo que não se ultrapassem os limites estipulados na decisão autorizadora. Insta ressaltar que tais limites dizem respeito à conduta a ser praticada pelas autoridades, não sobre o indivíduo alvo.

No entanto, em contraponto à aplicação da Teoria da Serendipidade, temos o que está sendo conhecido por “Fishing Expedition”, ou também “pescaria probatória”, prática ilegal no ordenamento jurídico brasileiro.

A teoria do Fishing Expedition se refere a uma busca indiscriminada por provas, sem uma fundamentação concreta, sem um objetivo claro, sem um alvo definido e, consequentemente, sem justificativa razoável para dar justa causa à persecução penal.

Como uma extensão ao princípio da não autoincriminação vigente no ordenamento jurídico brasileiro, a vedação da prática de pescaria probatória existe de maneira a tentar resguardar a integridade dos indivíduos e as garantias constitucionais à intimidade, direcionando a persecução penal a uma documentação e fundamentação dos seus atos, a fim de justificar a origem de cada ato e cada prova.

Desse modo, é certo que o Direito brasileiro exige uma prévia “causa provável” e uma finalidade definida para justificar qualquer tipo de investigação e colheita de provas, sob pena de nulidade dessas. Todas as violações a garantias constitucionais se dão em regime restrito, em geral, sendo necessária autorização judicial, com prévia definição de objeto: o que fazer? Com quem fazer? Por que fazer? Onde fazer? Como fazer? Fundamentado como? Todas essas perguntas devem ser respondidas em juízo antes do ato investigativo, a fim de se preservar a intimidade do investigado.

Assim, é possível citar alguns atos como claros exemplos da fishing expedition:

a) Busca e apreensão sem alvo definido, tangível e descrito no mandado (mandados genéricos);

b) Vasculhamento de todo o conteúdo do celular apreendido;

c) Continuidade da busca e apreensão depois de obtido o material objeto da diligência;

d) Investigações criminais dissimuladas de fiscalizações de órgãos públicos (Receita Federal, controladorias, Tribunais de Contas, órgãos públicos etc.);

e) Interceptação ou monitoramento por períodos longos de tempo;

f) Prisão temporária ou preventiva para “forçar” a descoberta ou colaboração premiada ou incriminação;

g) Buscas pessoais (ou residenciais) desprovidas de “fundada suspeita” prévia e objetiva;

h) Quebra de sigilo (bancário, fiscal, dados etc.) sem justificativa do período requisitado.

Observando esse rol de possibilidades, vemos que há uma certa semelhança entre a pescaria probatória e o encontro fortuito da prova. Entretanto, a diferenciação dos dois institutos está justamente na averiguação da legalidade da medida utilizada na persecução penal.

É, sim, necessário que haja a delimitação do objeto de investigação, o período, o alvo, a fundamentação e o método de colheita de provas para justificar uma ação investigativa. No entanto, se, durante essa ação e sem qualquer mudança de finalidade do agente em seu curso, forem encontradas provas que se refiram a terceiros ou a outro crime, não será considerada prova ilícita, pois a medida investigativa inicial, referente ao objeto inicial, se deu de maneira legítima, sendo apenas um “acaso” o encontro das demais provas.

Em resumo, a validade do encontro fortuito de provas está diretamente ligada à legalidade da investigação desde seu início. Se for comprovado que a ação investigativa foi conduzida de forma ilícita ou houve desvio de finalidade sem a devida autorização judicial, estaremos diante de uma “pescaria probatória”, prática proibida por lei. Nesse caso, as provas obtidas serão consideradas ilegais e, portanto, não poderão ser usadas para fundamentar a culpa do investigado, devendo ser excluídas do processo, conforme garantem os princípios da legalidade e do devido processo legal.

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PRESCRIÇÃO E JUSTIÇA: COMO OS MARCOS INTERRUPTIVOS IMPACTAM OS PROCESSOS DE COMPETÊNCIA DO JÚRI E A EXECUÇÃO PENAL

A prescrição penal é um instrumento essencial para assegurar a proteção dos direitos individuais e garantir a segurança jurídica no âmbito do direito penal brasileiro. Trata-se de um limite temporal imposto ao Estado para o exercício do seu direito de punir, refletindo a necessidade de equilibrar os interesses públicos e privados. Nos processos de execução de pena, especialmente no âmbito do Tribunal do Júri, a aplicação dos marcos interruptivos da prescrição desempenha um papel crucial na determinação do tempo máximo para a punição de um crime. A análise desses marcos revela como o sistema penal busca regular, de maneira justa e eficaz, o prazo para a execução de uma sentença, evitando a perpetuação indefinida do processo e assegurando o respeito às garantias constitucionais do apenado.

Quando esse lapso temporal é ultrapassado sem que a ação penal tenha sido efetivamente iniciada ou sem que a condenação tenha transitado em julgado, ou seja, sem que a decisão condenatória tenha se tornado definitiva e imutável, ocorre a extinção da pretensão punitiva do Estado. Isso significa que o Estado perde o direito de impor sanções penais ao acusado, consolidando-se, assim, uma proteção jurídica ao indivíduo contra a eternização dos processos penais e garantindo a observância dos princípios constitucionais de ampla defesa e razoável duração do processo.

Nesse sentido, a prescrição, ainda que observada sob a ótica do processo penal e constitucional, não se manifesta de igual maneira em todos os ritos, seja no ordinário, sumário, sumaríssimo ou Tribunal do Juri. Isso porque a prescrição depende do tipo penal praticado e da pena máxima que pode ser aplicada a ele, conforme o estabelecido no artigo 109 do Código de Processo Penal.

Mas não basta apenas saber qual o prazo prescricional, é também necessário saber contá-lo! Para isso, o CPP trouxe o artigo 117, o qual demonstra as causas interruptivas de prescrição, ou seja, os pontos “de partida” da contagem do tempo necessário para se alcançar a prescrição, e esse é o ponto mais importante para que se possa formular uma estratégia defensiva com foco na liberdade do indivíduo.

Dentre as hipóteses trazidas pelo artigo 117 do CPP relacionadas ao rito do Tribunal do Juri, temos as seguintes:

  • Pelo recebimento da denúncia ou queixa – O recebimento da denúncia ou queixa, conforme dispõe o artigo 117, I, do Código de Processo Penal, interrompe a prescrição. Essa é uma fase comum aos Ritos Sumário, Ordinário e do Juri em que o Magistrado, ao verificar que a denúncia preenche os critérios de admissibilidade, a recebe e determina que seja o réu citado.
  • Pela pronúncia e decisão confirmatória de pronúncia – A decisão de pronúncia, que ocorre ao final da primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri, é outro marco interruptivo relevante. A pronúncia confirma a admissibilidade da acusação e decide pela submissão do réu a julgamento perante o Júri Popular. Conforme o artigo 117, II e III, do Código de Processo Penal, a pronúncia e a decisão de confirmação de pronúncia interrompem a prescrição, recomeçando a contagem do prazo prescricional.
  • Pela sentença condenatória recorrível – A sentença condenatória recorrível, ainda que proferida por órgão singular, também interrompe a prescrição (art. 117, IV, do Código de Processo Penal). No âmbito do Tribunal do Júri, a sentença condenatória dos jurados que reconhecem a culpabilidade do réu pode ser sujeita a recursos, mas interrompe a prescrição quando é proferida.
  • Pelo acórdão condenatório de tribunal – A decisão condenatória em segunda instância também constitui um marco interruptivo da prescrição. O acórdão condenatório, mesmo que sujeito a recursos, interrompe a prescrição, conforme estabelece o artigo 117, IV, do Código de Processo Penal.

Dessa forma, são diversas as situações que interrompem a contagem do prazo prescricional. No entanto, não se deve olhar com superficialidade para as hipóteses trazidas pelo art. 117 do CPP, pois é justamente nas entrelinhas que se consegue desenvolver a melhor estratégia.

Um dos pontos que mais merece destaque ao tratar da prescrição em Tribunal do Juri, é aquele relacionado à decisão de pronúncia. Que ela é contada como marco interruptivo, isso é fato e está expresso em lei, bem como a decisão confirmatória de pronúncia, mas qual exatamente é o limite dessa “confirmação de pronúncia”?

Para entender melhor essa questão, o precedente HC nº 826.977/SP, julgado pelo STJ em dezembro de 2023, sob relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, é extremamente didático quanto ao posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça.

A questão debatida girou em torno da possibilidade ou não de considerar acórdãos proferidos por tribunais superiores relativos à decisão de pronúncia como marco interruptivo da prescrição.

Em um primeiro momento, o Min. Relator Ribeiro Dantas se mostrou desfavorável ao pleito do paciente, sob justificativa de que a redação do art. 177, III do CPP não especifica o termo “decisão” ao determinar que a decisão que confirme a pronúncia será considerada marco interruptivo. Para o ministro, o termo referido é abrangente e engloba todos os atos decisórios que versem sobre a matéria da pronúncia, independente da fase processual que são proferidos.

No entanto, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca explicou a discordância sobre o posicionamento do Relator, ressaltando que a referida norma utilizada na fundamentação guarda estreita relação com a formação de culpa do indivíduo. Isso significa que, ao considerar que as decisões proferidas após o julgamento do Recurso em Sentido Estrito interposto frente à decisão de pronúncia, após a segunda instância, não há mais julgamento de mérito e, consequentemente, formação de culpa. Por isso, o termo “decisão” deveria ser interpretado de maneira restritiva quanto à configuração de marco interruptivo.

“Assim, não obstante a decisão proferida por esta Corte Superior revele ‘pleno exercício da jurisdição penal’, constata-se que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores não foram contempladas como causas interruptivas da prescrição, mas apenas aquelas emanadas das instâncias ordinárias. Trata-se de uma opção político-legislativa que, a meu ver, não pode ser desconsiderada mediante uma interpretação extensiva em uma matéria que deve ser interpretada restritivamente.”

Ressaltou, ainda, que o único caso em que recursos extraordinários deveriam configurar marco interruptivo de prescrição se dá somente quando estes reafirmam uma pronúncia anteriormente destituída.

Em concordância com esse posicionamento, o Min. Joel Ilan Paciornik apresentou mais 3 argumentos, sejam esses:

  1. Interpretação sistemática do CPP – observando a disposição dos demais incisos do artigo 117 do Código de Ritos, temos que há uma previsão legal expressa no inciso IV sobre a publicação de sentença condenatória ou acórdão recorrível.
  2. Análise restritiva à matéria de direito – ao contrário dos recursos de Apelação ou em Sentido Estrito, nos recursos interpostos aos tribunais superiores, “o objetivo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e a uniformidade na aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual que se sinta prejudicada e recorra por esses meios”. Dessa forma, como exposto anteriormente, não há aqui uma formação de culpa.
  3. Origem do instituto da prescrição como combate à inércia do Estado – por fim, foi demonstrado que, em casos de debate nos Tribunais Superiores sobre a decisão de pronúncia do acusado, não há um impedimento legal para o seguimento do feito em vista da ausência de efeito suspensivo dos recursos especiais e extraordinários (CPP, artigo 637), podendo ser marcada a sessão plenária ainda que tais razões recursais ainda não tenham sido julgadas. Mais uma vez, isso gira em torno da formação de culpa do indivíduo e a possibilidade de julgamento de mérito do feito. Caso, havendo a possibilidade de realização de julgamento perante o Tribunal do Juri, o Estado não o faça por inércia em marcar o julgamento, tal ônus não pode ser imputado ao acusado.

Nesse ínterim, o precedente formado foi pela desconsideração de julgamento de recursos nas instâncias superiores configurarem marco interruptivo da prescrição, haja vista a ausência de discussão de mérito.

Sob essa mesma perspectiva, surgiu o questionamento sobre a possibilidade de aplicação do entendimento quando em situação de decisão sobre embargos de declaração em RESE.

Ao analisar a natureza de embargos declaratórios, sabe-se que, de acordo com o artigo 619 do Código de Processo Penal, tem a finalidade de sanar qualquer ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão. Ou seja, não significa rediscutir o mérito do processo, não se reexamina a situação fática, mas tão somente tem a finalidade de esclarecer a sentença ou acórdão que foram embargados.

Dessa maneira, utilizando-se de uma interpretação extensiva do precedente acima exposto, temos que, em comunhão, ambas as situações não podem ser utilizadas para rediscussão do mérito, assim como não possuem previsão legal expressa no artigo 117 do CPP.

O entendimento dos Tribunais brasileiros é o de que as decisões que não analisem o mérito, principalmente as referentes à admissibilidade de recursos que tratam de matéria de direito, como embargos declaratórios, REsp, RE e agravos, não podem ser utilizadas como marco interruptivo da prescrição, pois não há uma impugnação direta da decisão de pronúncia, ao contrário do acórdão em RESE.

Trata-se de decisões de natureza mista, ou seja, é aquela que não resolve somente uma controvérsia entre as partes, como também encerra uma etapa do processo, mas sem julgar seu mérito. Dessa forma, é incoerente utilizar tais decisões como marco interruptivo da prescrição quando a principal finalidade da prescrição é evitar a inércia estatal para exercer seu direito de punir.

Além disso, o STJ decidiu no julgamento do HC 274.954/SC[6], sob relatoria do Min. Moura Ribeiro, que as causas de interrupção de prescrição presentes no artigo 117 do CPP são taxativas, não cabendo qualquer interpretação extensiva para além do que está expressamente descrito em lei.

No entanto, com a promulgação da Lei nº 13.964/2019[7], também conhecida como Pacote Anticrime, houve uma modificação no artigo 116 do Código Penal Brasileiro[8], incluindo, no inciso III do referido artigo, a possibilidade de suspensão do prazo prescricional antes do julgado da sentença final quando pendente embargos de declaração ou recursos nos Tribunais Superiores.

Mas, afinal, qual o impacto disso nos casos de execução de pena?

Ao observarmos o caso concreto referente ao processo de nº 0000799-03.2019.8.06.0077[9], o apenado se encontrava em cárcere privado cumprindo pena pela prática do delito tipificado no art. 121, caput, do Código Penal desde o trânsito em julgado da sentença, o que ocorreu em outubro de 2017.

No entanto, o fato delituoso ocorreu em junho de 2007, ocasião na qual o indivíduo possuía apenas 19 anos. A partir desse momento, em outubro do mesmo ano, a denúncia foi recebida, contando como primeiro marco interruptivo da prescrição. Posteriormente, a pronúncia se deu em janeiro de 2009.

Em novembro de 2009, após interposição de RESE contra a decisão de pronúncia, foi proferido acórdão confirmando a referida decisão, surgindo como mais um marco interruptivo da prescrição. Na sequência, foram opostos embargos declaratórios, os quais foram rejeitados em março de 2011.

O Apenado então fora submetido a julgamento em sessão plenária, restando condenado conforme sentença publicada em agosto de 2016. Tendo a defesa interposto Recurso de Apelação, que foi julgado em setembro de 2017, a condenação do Apenado transitou em julgado em outubro de 2017, culminando em uma pena de 6 anos e 6 meses.

Conforme já observado anteriormente, o tempo de prescrição obedece aos prazos estabelecidos no art. 109 do CPP. Todavia, neste caso em apreço, teremos que nos valer também do art. 115 do CPP, o qual trata sobre a redução em ½ do prazo prescricional na hipótese de ser o agente menor de 21 anos à época do fato.

Nesse sentido, considerando a pena de 6 anos e 6 meses in concreto, o prazo estabelecido pelo art. 109, III do CPP é o de 12 anos. No entanto, considerando que o agente era menor de 21 anos, nos termos do art. 115 do CPP, o prazo prescricional reduz para apenas 6 anos.

A partir disso, sobreveio à análise de qual marco interruptivo deveria ser considerado ao calcular a prescrição.

Considerando que o fato ocorreu anteriormente à alteração dada pelo Pacote Anticrime, o acórdão que deveria ser utilizado para calcular o lapso temporal entre o último marco interruptivo e a sentença condenatória é o de julgamento do RESE, e não o de julgamento dos embargos.

Assim, comprovando ao juízo da execução que o prazo prescricional do crime no caso concreto era de apenas 6 anos e o lapso temporal entre a decisão de julgamento do RESE e a sentença condenatória foi de 6 anos e 9 meses, ocorrendo assim a prescrição da pretensão punitiva.

Ou seja, considerando que a decisão foi proferida pelo juízo de execução somente em 2024 e que o indivíduo estava em regime semiaberto desde 2022 e posteriormente preso em 2024, temos um homem que perdeu 2 anos de sua vida ilegalmente.

No processo penal, não se trata apenas de nomes, datas ou procedimentos. O profissional do direito que atua no processo penal lida diretamente com vidas, e é imprescindível desenvolver o olhar aguçado para não permitir que esse tipo de ilegalidade se perpetue. Ninguém merece ter sua vida mudada, sua liberdade tolhida por um erro de cálculo e a inércia de defensores e julgadores.

O processo penal não pode ser conduzido de forma automatizada, desconsiderando os efeitos diretos sobre a liberdade e os direitos individuais dos acusados. Reconhecer a prescrição corretamente é essencial para evitar que erros de cálculo e a inércia dos atores jurídicos comprometam a justiça. Garantir a efetividade da prescrição é, acima de tudo, preservar as liberdades e a dignidade dos cidadãos diante do poder punitivo estatal.