- INTRODUÇÃO
O reconhecimento de pessoas, especialmente nas modalidades pessoal e fotográfica, tem um papel crucial na elucidação de crimes. No entanto, como demonstrado por pesquisa recente realizada pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1], essa ferramenta investigativa ainda enfrenta desafios significativos em sua aplicação prática, especialmente no que se refere à observância das formalidades previstas nos artigos 226 a 228 do Código de Processo Penal (CPP).
O levantamento, conduzido pelo gabinete do ministro Rogério Schietti Cruz, reforça a necessidade de atenção redobrada por parte das autoridades investigativas e judiciais no manejo dessas provas. Assim o é, pois, em 2023, o STJ revogou 377 prisões provisórias ou absolveu réus devido a falhas no reconhecimento como autores de crimes. Desses casos, 74,6% estavam relacionados a erros em reconhecimentos fotográficos.
No que diz respeito a previsão legal do ato, como qualquer procedimento investigatório apto a produzir provas contra o investigado, o reconhecimento, em ambas as modalidades, deve ser observadas as formalidades constantes no Código de Processo Penal, nos artigos 226 a 228. Vejamos
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Art. 227. No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.
Art. 228. Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas.
Assim, quanto ao reconhecimento pessoal, o art. 226 disciplina mais detalhadamente como se deve proceder. No entanto, apesar do referido artigo determinar que se trata de reconhecimento pessoal, há também a possibilidade de reconhecimento fotográfico, quando observadas as mesmas determinações.
No que tange às exigências estabelecidas pelo Código de Processo Penal, pondera Aury Lopes Júnior que tais cuidados não podem ser considerados meras formalidades desprovidas de utilidade. Ao contrário, constituem “condição de credibilidade do instrumento probatório, refletindo diretamente na qualidade da tutela jurisdicional prestada e na própria confiabilidade do sistema judiciário de um país” (Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 490).
Nesse sentido, alerta o renomado processualista:
Trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais. Infelizmente, prática bastante comum na praxe forense consiste em fazer “reconhecimentos informais”, admitidos em nome do princípio do livre convencimento motivado (op. cit., 2017, p. 488, grifei).
m conclusão, é imprescindível reconhecer que, no processo penal, a forma não é um mero formalismo, mas uma garantia essencial à proteção dos direitos fundamentais. Como bem alerta a doutrina, o reconhecimento pessoal ou fotográfico constitui uma prova cuja produção deve observar rigorosamente as formalidades legais, sob pena de comprometer a credibilidade do sistema judiciário.
A prática de “reconhecimentos informais”, frequentemente admitida sob o manto do princípio do livre convencimento motivado, não apenas afronta o artigo 226 do Código de Processo Penal, mas também fragiliza a segurança jurídica e aumenta o risco de erros judiciários. Assim, o respeito aos ritos previstos em lei deve ser visto como um compromisso com a justiça e com a confiabilidade das decisões judiciais.
- RECONHECIMENTO E O VALOR PROBATÓRIO: MUDANÇA DE PARADIGMA PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Até recentemente, o STJ entendia que o reconhecimento fotográfico ou presencial realizado na fase de inquérito policial poderia ser suficiente para embasar a autoria delitiva, mesmo quando não observadas as formalidades legais previstas no artigo 226 do CPP. Essa posição tratava os requisitos formais como “mera recomendação”, o que reduzia o controle sobre a qualidade do ato e abria espaço para questionamentos sobre a sua validade.
Contudo, essa visão foi substancialmente alterada pelo julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC, ocorrido em 27 de outubro de 2020, sob a relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz. Nesse marco decisório, a Sexta Turma do STJ reconheceu que o artigo 226 do CPP não configura mera recomendação, mas rito obrigatório, cuja inobservância torna o reconhecimento inválido e incapaz de sustentar uma condenação, ainda que posteriormente confirmado em juízo.
A decisão destacou que, diante dos riscos de erros associados ao reconhecimento de pessoas, é essencial cumprir rigorosamente as etapas previstas no CPP, incluindo a descrição prévia do suspeito pelo reconhecedor e a apresentação do investigado junto a outras pessoas com características semelhantes.
Decisões recentes do STF ilustram essa mudança do entendimento jurisprudencial. O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem reconhecido a necessidade de rigor no reconhecimento de pessoas. No julgamento do Habeas Corpus nº 172.606/SP, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, absolveu o réu em razão de a condenação ter sido embasada exclusivamente em reconhecimento fotográfico realizado na fase policial.
De igual modo, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 206.846/SP, concluído em 23 de fevereiro de 2022, a Segunda Turma do STF absolveu um réu preso com base em reconhecimento fotográfico, considerando a nulidade do ato e a ausência de outras provas que sustentassem a condenação.
- DOS PROCEDIMENTOS A SEREM OBSERVADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL PARA O RECONHECIMENTO DE PESSOAS
DESCRIÇÃO DO INDIVÍDUO ANTERIOR AO RECONHECIMENTO: Ao prestar queixa junto à autoridade policial, a vítima ou testemunha deve primeiramente descrever o indivíduo. Por quê? Veja, ao partir diretamente para o reconhecimento pessoal ou fotográfico, a autoridade policial demonstra parcialidade diante da situação, dizendo implicitamente que, pelos seus conhecimentos de trabalho, já sabe quem poderia ter cometido tal crime e induzir a vítima a responder afirmativamente nessa situação. Portanto, a descrição prévia do indivíduo a ser reconhecido se faz necessária para demonstrar a imparcialidade da autoridade.
O INDIVÍDUO A SER RECONHECIDO SERÁ POSTO AO LADO DE DEMAIS COM CARACTERÍSTICAS SEMELHANTES: Mais uma medida para evitar a parcialidade da autoridade policial e a influência da vítima. Nesse caso, é importante que o indivíduo a ser reconhecido, após a descrição de suas características, seja posto ao lado de pessoas semelhantes. E isso não se restringe somente ao reconhecimento pessoal. No que tange ao reconhecimento fotográfico, este deve acontecer em sede de delegacia e por meio da apresentação do indivíduo entre diversos outros, para que não haja demonstração de “preferência” por parte da autoridade policial.
LAVRATURA DE TERMO PORMENORIZADO PELA AUTORIDADE POLICIAL: Constante no art. 226, IV do CPP, a norma processual se refere a necessidade de documentar o procedimento de identificação, necessitando de pelo menos duas testemunhas no momento, a fim de passar maior credibilidade ao ato.
Nesse interim, há de se questionar o porquê de tamanhos cuidados para a valoração de tal prova, e a resposta é bem simples: a memória humana é falha e pode ser facilmente manipulada, principalmente após eventos impactantes – como ser vítima de um crime.
Desse modo, é necessário observar que o principal ponto ao tratar de reconhecimento e a sua validade é a memória da vítima.
Observando isso, são necessários analisar 4 fatores que podem aumentar ou diminuir a confiabilidade da palavra da vítima no momento do reconhecimento, sejam estes:
- o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor (tempo de duração do evento criminoso);
- a gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento;
- as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos, aspectos geográficos etc.);
- a natureza do crime (com ou sem violência física, grau de violência psicológica etc.)
Todos esses fatores são importantes porque interferem diretamente na confiabilidade do reconhecimento da vítima, e é justamente por ser um procedimento sujeito a falhas que se faz tão importante que o disposto no art. 226 do CPP seja seguido a risca, a fim de minimizar erros e resguardar a integridade do indivíduo.
- FALSAS MEMÓRIAS E RISCOS DE INJUSTIÇAS NO RECONHECIMENTO
Fato é que há diversos estudos, notadamente no campo da Psicologia moderna, que demonstram as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Os estudos indicam que a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível quando comparada à essência do evento. Ao mesmo tempo, as falsas memórias podem ser mais resistentes do que as verdadeiras, com relatos mais vívidos em testes de recordação (REYNA, V. F.; LLOYD, F. F. Theories of false memory in children and adults. Learning and Individual Differences, 9, 1997, 95-123).
Em abono a tal conclusão, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea aponta que as falsas memórias podem ser mais detalhadas do que as verdadeiras; são criadas por processos internos da própria pessoa ou por intermédio de informações implantadas pelo ambiente externo (Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Série Pensando o Direito, n. 59, Brasília: Ministério da Justiça, 2015, p. 23). Nesse contexto, vale mencionar a interessante conclusão de pesquisa realizada nos Estados Unidos, conduzida pelo professor Brandon Garrett, a qual apontou que a repetição de procedimentos de identificação não confere maior grau de confiabilidade a um reconhecimento.
Há, no entanto, correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva. Em amostra com 161 condenações de inocentes revertidas após a realização de exame de DNA, 57% dos casos contaram com mais de um procedimento de identificação: a testemunha admitiu em juízo que, inicialmente, não tinha certeza quanto à autoria do delito e que passou a reconhecer o acusado somente depois do primeiro reconhecimento (Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).
Daí a razão pela qual as psicólogas Nancy K. Steblay e Jennifer E. Dysart recomendam não só que sejam evitados procedimentos de identificação que usam um mesmo suspeito como também que identificações produzidas por procedimentos repetidos não sejam consideradas tão confiáveis, justamente porque quanto mais vezes uma testemunha for solicitada a reconhecer uma mesma pessoa, mais provável ela desenvolver falsa memória a seu respeito (STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennier. E. Repeated eyewitness identification procedures with the same suspect. Journal of Applied Research in Memory and Cognition apud Innocence Project Brasil. Prova de reconhecimento e erro judiciário. São Paulo. 1. ed., jun. 2020, p. 13).
De todo modo, é válido afirmar que, seguindo o disposto no art. 226 do CPP, o reconhecimento pessoal é válido, mas não tem valor probante absoluto, precisa ser coerente com as demais provas colhidas em sede de juízo. Já o procedimento que não se atenta à norma processual, não será considerada válida e não poderá ser utilizada para justificar qualquer lastro de autoria.
Dessa forma, tendo com base no exame de processos julgados desde a data do acórdão proferido no HC n. 598.886/SC – 27/10/2020 – até 19/12/2021, período em que se contabilizaram pelo menos 28 acórdãos das duas Turmas que compõem a Terceira Seção desta Corte e 61 decisões monocráticas que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva, em razão de fundadas dúvidas sobre o reconhecimento feito em desconformidade com o modelo previsto no art. 226 do CPP (Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06022022- Reconhecimento-de-pessoas-um-campo-fertil-para-o-erro-judicial.aspx. Acesso em: fev. 2022). Cito, apenas a título de exemplo, alguns casos reproduzidos nesse levantamento:
No RHC n. 133.408/SC (DJe 18/12/2020), de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, não ficou demonstrado que o reconhecimento fotográfico realizado na fase do inquérito policial fora corroborado por outros elementos de prova amealhados no feito. Os acusados estavam com rostos parcialmente cobertos, sem que fosse possível ver totalmente suas faces, apenas detalhes de cor de pele, olhos, compleição física.
Já no HC n. 630.949/SP (DJe 29/3/2021), de minha relatoria, identificaram-se diversas irregularidades no auto de reconhecimento. Além disso, o ofendido deixou claro que foram apresentados outros indivíduos por foto, mas, para o reconhecimento pessoal, o acusado foi exibido sozinho. Previamente ao reconhecimento pessoal, foram mostradas à vítima várias fotos, entre as quais estaria, segundo a autoridade policial, a do indivíduo envolvido no roubo, sugestionando, portanto, que ao menos uma pessoa deveria ser reconhecida como indivíduo que participou do delito e buscando, na verdade, já uma préidentificação do autor do fato. Ou seja, a vítima não recebeu expressamente a opção de não apontar ninguém no reconhecimento pessoal que foi realizado depois da exibição das fotografias.
O AgRg no AREsp n. 1.722.914/DF (DJe 28/4/2021), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, trouxe hipótese na qual a vítima reconheceu o agravante apenas na fase investigativa, depois de lhe serem mostradas as fotos constantes de álbum fotográfico e porque o conheceria das redes sociais. O ofendido disse que reconheceu o acusado pela “touca” que usava no dia do delito, inclusive porque teria ele uma foto nas redes sociais em que portava a mesma peça de vestuário. Contudo, a vítima afirmou haver se lembrado do agravante em razão das características de seu rosto, que seriam bem peculiares (rosto seco e nariz achatado). Disse, ainda, que o reconheceu pelas tatuagens no braço; entretanto, ao mesmo tempo, afirmou que este estava com blusa de mangas compridas no momento da prática delitiva, o que se mostra incompatível, a menos que as instâncias ordinárias tivessem explicitado o motivo pelo qual seria possível esse reconhecimento, o que não ocorreu.
No HC n. 648.232/SP (DJe 21/5/2021), de relatoria do Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF1), o réu foi reconhecido através de uma viseira aberta de seu capacete, acessório que usava no momento do fato, destacando-se, da sentença absolutória, que a vítima, certamente dificultada pela visibilidade e pelo uso de capacete, não foi nada assertiva no reconhecimento pessoal em juízo.
No julgamento do HC n. 652.284/SC (DJe 3/5/2021), o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca registrou que “o reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível”. Na ocasião, reforçou a necessidade de seguir o procedimento estabelecido pelo CPP, haja vista a falibilidade de memória do ofendido.
- RESOLUÇÃO N. 484/2022 DO CNJ: REJEIÇÃO DA TÉCNICA DO SHOW-UP E VALIDAÇÃO DO RECONHECIMENTO POR LINE-UP
A resolução determina que o reconhecimento pessoal deve ser feito preferencialmente com o alinhamento presencial de quatro pessoas. Em caso de impossibilidade, devem ser apresentadas quatro fotografias. Caso seja inviável seguir tais parâmetros, outros meios de prova devem ser priorizados.
Em todos os casos, devem ser observadas as formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, que exige que a pessoa a ser reconhecida seja descrita pela pessoa responsável pelo reconhecimento, bem como colocada ao lado de outras com quem tiver alguma semelhança.
Conforme a resolução, todo o procedimento deve ser gravado e disponibilizado às partes em caso de solicitação. É necessária investigação prévia para a colheita de indícios de participação da pessoa investigada no delito antes de submetê-la ao reconhecimento. Também é exigida a coleta de autodeclaração racial dos reconhecedores e dos investigados ou processados, para permitir à autoridade policial e ao juiz a adequada valoração da prova.
- O alinhamento justo como condição necessária
A literatura tem apresentado que o método mais confiável para a apresentação do suspeito é o alinhamento (ou line-up) no qual o suspeito é apresentado com outros não suspeitos (geralmente cinco, mas a resolução do CNJ estabeleceu 4 como o número ideal).
O alinhamento deve ser justo, deve servir a proteger inocentes do risco de serem injustamente escolhidos. Por isso, há que se cuidar que o suspeito não se destaque dos demais, e todos os rostos presentes devem ser compatíveis com a descrição oferecida pela vítima/testemunha.
O alinhamento justo não se reduz a mero requisito numérico ou condição de pluralidade de sujeitos. A ausência de destaque, por assim dizer, é o que serve à proteção do inocente que porventura integre uma fila: o que se deve evitar é que outros fatores (ex.: roupa de presidiário, algemas, roupas de outros integrantes da fila que notoriamente são funcionários da Justiça…) alheios à recordação que a vítima/testemunha reteve do culpado contribuam à seleção.
- Reconhecimento irregular – show up
A inerente sugestionabilidade do show up é seguida de um procedimento que serve a otimizar o falso reconhecimento. É dizer: a vítima/testemunha já viu a fotografia de um único suspeito e agora é chamada a apontá-lo junto com outros sujeitos. A familiaridade do rosto do suspeito, causada pelo reconhecimento anterior, desempenhará um papel crucial no falso reconhecimento.
O show-up é o procedimento mais inadequado para o reconhecimento. Pesquisas têm apontado que, dentre todas as formas de reconhecimento, o show-up é a que possui maior risco de reconhecimento falso. Isto ocorre por que no show-up a vítima/testemunha deve comparar o rosto apresentado (suspeito), com o rosto visto na cena do crime. Assim, se o cérebro da testemunha julgar que o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o “reconhecimento” acontece. A ausência de comparação entre uma pluralidade de rostos semelhantes com o rosto do culpado incrementa as chances de que um inocente parecido preencha, sozinho, a lacuna que a vítima/testemunha tem ânsia por conseguir solucionar.
O álbum de suspeitos é procedimento inadequado, mas agora cabe dizê-lo em mais detalhe. Como o próprio nome indica, o álbum de suspeitos serve à exibição de vários rostos de pessoas suspeitas da prática de crimes, o que, por si só, já dá a entender que há grandes chances de que o autor do delito está presente.
Também é digna de nota a sobrecarga cognitiva que impõe à vítima/testemunha, a quem cabe observar grande quantidade de rostos ao mesmo tempo. Assim, o reconhecimento por álbum de suspeitos também é um procedimento inadequado, uma vez que pode prejudicar a capacidade de a testemunha reconhecer um autor corretamente, e aumenta o risco de um falso reconhecimento.
É imprescindível salientar que neste ponto há uma confusão em termos utilizados por atores do sistema de Justiça. O reconhecimento por show-up ou álbum de suspeitos não devem ser utilizados como sinônimos de reconhecimento fotográfico. Show-up consiste em se exibir apenas um rosto, o que pode ser feito por foto ou presencialmente. O álbum de suspeitos, por sua vez, faz um uso deturpado de fotografias a partir da exibição de múltiplos suspeitos de uma só vez. São práticas que devem ser abolidas porquanto facilitam falsos positivos, como já sinalizado. Mas o recurso a fotografias não precisa, e não deve, ser reduzido a isso.
Pelo contrário, considerando para o requisito do alinhamento justo, por exemplo, é notória a maior facilidade de se ter à mão cinco fotografias de sujeitos efetivamente semelhantes com o suspeito. As fotografias devem ser padronizadas, todas apresentando a mesma qualidade (o que em nada se confunde com as fotos das redes sociais).
Por outro lado, como esperar que cada delegacia de polícia conte com a presença de cinco pessoas semelhantes ao suspeito à disposição da realização de reconhecimentos? É simplesmente irreal supor que o desenho institucional da etapa investigatória possa depender da sorte de se ter disponíveis pessoas com as mesmas características físicas que a vítima/testemunha elencou como sendo as ostentadas pelo suspeito à espera da realização do reconhecimento, delegacias Brasil afora. É precisamente porque há que se assegurar um procedimento que proteja os inocentes do risco de serem falsamente apontados, que devemos considerar a alternativa do reconhecimento fotográfico.
- SOBRE O DIREITO DO ACUSADO DE NÃO COMPARECER AO RECONHECIMENTO PESSOAL
Acerca da obrigatoriedade da presença do suspeito ao ato de reconhecimento, pode-se mencionar, a título exemplificativo, processo analisado pela corte italiana, datado de 1978[2]. O caso teve início após o envio de um ofício assinado por um juiz de Turim, em cujo conteúdo havia a determinação da realização do reconhecimento de um suspeito que residia em Roma. O juiz deprecado, em Roma, intimou o suspeito para o reconhecimento, tendo este se negado a comparecer. Entendendo não ser possível conduzi-lo coercitivamente, determinou, em face do princípio da não taxatividade dos meios de prova, sua identificação fotográfica. A divergência entre os magistrados começou quando o juiz deprecante determinou a nulidade do reconhecimento fotográfico sob o entendimento de que o suspeito tinha o dever de comparecer, sendo-lhe assegurado o direito de não participar ativamente do ato. Embora o caso não tenha sido julgado em razão da declaração de incompetência por parte do tribunal, o juiz de Turim considerou nulo o reconhecimento fotográfico sob o argumento de que não teria a mesma força probatória que o reconhecimento pessoal.
Atualmente, ainda existem autores que entendem que o suspeito é obrigado a comparecer ao ato de reconhecimento, pois, do contrário, sua recusa (a despeito dos direitos e garantias que lhe assistem durante o procedimento inquisitivo) impossibilitaria a continuidade das averiguações, comprometendo a eficácia das investigações. Fazem uma diferenciação entre cooperação ativa e passiva, além de afirmarem, no tocante ao inquérito policial, que, preponderando em sua plenitude o interesse individual da liberdade sobre o interesse público na persecução penal, esta “estaria fadada ao fracasso”, havendo o “engessamento das atividades investigatórias”. Para esses autores, apesar de haver necessidade da condução coercitiva do suspeito, não pode ser ele compelido a praticar comportamentos ativos, tais como abaixar-se, gesticular, sorrir ou fazer caretas, porquanto essas condutas afetariam seu direito à não autoincriminação. Legítima seria sua condução, durante o desenrolar do inquérito policial, para o local da identificação com a estrita finalidade de fazê-lo comparecer ao ato, sendo tratado como objeto de prova, não podendo opor-se à atividade estatal voltada à sua identificação pessoal, vez que não importaria, necessariamente, em autoincriminação.
Primeiramente, é preciso reconhecer que a distinção entre “cooperação ativa e passiva” é cosmética e deturpa o núcleo do direito de não produção de provas contra si mesmo. Em segundo lugar, é ilusória, na medida em que esvazia, de forma utilitarista, o direito fundamental do imputado ao obrigá-lo a participar do ritual probatório contra sua vontade, a pretexto de mera cooperação passiva. Em terceiro lugar, é um eufemismo chamar isso de “colaboração passiva”, quando na verdade é uma verdadeira coação, submissão ao poder.
Desse modo, o que se defende é que, respeitando o direito de não autoincriminação, cabe à acusação ou autoridade policial identificar outros meios de produção de provas referentes ao reconhecimento do investigado diferentes do reconhecimento pessoal presencial. O reconhecimento fotográfico seria uma saída para isso, mas sabendo que este não tem valor probante absoluto quanto a delimitar a autoria da conduta apurada.
O reconhecimento pessoal e fotográfico no processo penal, embora amplamente utilizado, exige rigorosa observância das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal. O julgamento do Habeas Corpus nº 598.886/SC pela Sexta Turma do STJ em 2020 consistiu em marco jurisprudencial disruptivo ao consolidar que tais formalidades não são meras recomendações, mas garantias indispensáveis à validade do ato, reconhecendo a nulidade do reconhecimento realizado em desacordo com os procedimentos legais.
Ainda assim, a prática forense demonstra que as resistências à aplicação da jurisprudência superior persistem nos Tribunais de Justiça, frequentemente ancoradas em interpretações equivocadas ou na negligência quanto à importância do rito obrigatório. Soma-se a isso o risco de falsas memórias e influências externas no ato de reconhecimento, que podem levar a graves erros judiciários, comprometendo a justiça e a segurança jurídica.
Nesse cenário, a Resolução nº 484/2022 do CNJ se apresenta como um avanço significativo ao rejeitar a técnica do show-up — reconhecimentos informais que induzem a erros — e ao valorizar o reconhecimento por line-up, que oferece maior controle e confiabilidade ao procedimento. Essa mudança visa assegurar um processo mais seguro e justo, alinhado com as melhores práticas internacionais. Além disso, a resolução reforça a necessidade de que a autoridade policial siga procedimentos rigorosos para evitar falsas memórias e garantir a integridade do reconhecimento.
Portanto, é essencial que a defesa continue a exigir o cumprimento das formalidades legais e que os tribunais se alinhem à jurisprudência do STJ, garantindo que o reconhecimento pessoal e fotográfico seja conduzido de forma técnica e imparcial, protegendo tanto a credibilidade do sistema de justiça quanto os direitos fundamentais dos acusados.
[1] Leia a íntegra da pesquisa produzida pelo gabinete do ministro Rogerio Schietti Cruz: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/Reconhecimento%20Formal%20-%202023.pdf
[2] LOPES, Mariângela Tomé. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 67-68